Tentarei ser o mais breve possível pois a banda é constituída por quatro elementos e não pretendo estar a massacrar o leitor. Podia falar de problemas sérios como o preço da habitação, o aumento da inflação e a consequente falta de perspectiva que um jovem sente quando conclui os seus estudos. Em vez disso, levanto uma questão mais superficial: Porque razão as pessoas deixaram de vestir fato e gravata no dia-a-dia?Quando olhamos para fotos do século passado ou séries que retratam esse período, constatamos que, em regra geral, até aos anos 60 as pessoas usavam fatos no dia-a-dia. Por outras palavras, “vestiam-se bem” (claramente isto é relativo porque cada um terá o seu gosto no que toca à forma de vestir).
Comecemos pelo calçado. Embora continue a haver quem use o mesmo tipo de sapatos, é cada vez mais raro encontrar um engraxador de sapatos na rua (claramente um ponto negativo pois extinguiu-se uma profissão). As calças, geralmente do mesmo tecido que o casaco ou pelo menos a combinar, eram presas à cintura (que nesses tempos parecia ser no umbigo) por cinto ou suspensas por suspensórios. A camisa formal para dentro das calças, por vezes coberta por um invejável colete com direito a relógio de bolso. A mítica gravata abraçada ao colarinho (na opinião do Afonso, meramente estético e nada funcional; na minha, muitas vezes a peça mais importante, pois era a que diferenciava das restantes peças de vestuário na cor e por vezes no padrão). Há uns tempos fui a um festival infame de música e optei por usar uma camisa mais formal e uma gravata e quase todas as pessoas olharam e estranharam. A minha resposta foi: “estou a tentar trazer as gravatas de volta e sugiro que façam o mesmo”. Os penteados seguros por quantidades industriais de cêra (ou, como eu gosto de chamar, “besunto”) – um excelente exemplo será o penteado da personagem Don Draper. Finalmente, o chapéu. Por vezes uma boina ao estilo da personagem Thomas Shelby ou um elegante fedora ao estilo da personagem Nucky Thompson.
Ao longo dos anos, fomos assistindo a várias formas de vestir e a várias modas. Embora continuem a surgir novas roupas e novas modas, atualmente é mais difícil definir uma “forma de vestir”. Vemos pessoas a vestirem-se de variadas maneiras, muitas vezes aproveitando modas do passado – anos 80 ou 90, etc. – e isto talvez se dê graças ao fácil e imediato acesso que temos a imagens do passado. No entanto, não é comum ver-se alguém de fato e gravata na rua, tirando quando este vai a uma ocasião mais “formal”.
Concluo acrescentando à pergunta introdutória a seguinte afirmação: E por que razão é tão estranho ver alguém que o faça nos dias de hoje?”. Uma amiga minha fez uma afirmação interessante: “a maioria das pessoas não é feia, apenas não se sabe vestir e não sabe o que a favorece”.
– António Cunha Lopes
Carte blanche: segundo o senhor Google é francês para “posso escrever sobre o que me apetecer”, o que me mete algum medo. Primeiro, como alguém que é eternamente assombrado pelo 10 no exame de português do 12° ano, o conceito de escrever um bom texto para ser publicado parece-me otimista no mínimo. Se tenho uma veia de Saramago é aquela que estava responsável pela pontuação. Em segundo, porque preciso de efetivamente falar sobre alguma coisa que seja interessante ou pelo menos engraçada. É o que falta na Internet. Mais um gajo a falar para o vácuo. Já pensaram o quão louco é que hoje em dia numa rede social qualquer uma opinião de um prémio Nobel possa aparecer no mesmo ecrã que a opinião do Sr. Zé que acha que as casas de banho mistas vão destruir o tecido moral da sociedade? É fixe. A Internet é fixe. Falando em Sr. Zé: Fiquei a pensar no atentado à decência que são as tascas gourmet que começaram a aparecer em Lisboa. No outro dia, passei por uma que se chamava “Task” e passaram-me pela cabeça várias ilegalidades. Acho que é um tema de que não se fala o suficiente. Arrisco a dizer que o partido que pegar nisto quase de certeza que ganha as eleições. #NaoGentrifiquemABifana.
Como isto é para uma publicação de música se calhar seria por bem pelo menos tocar no assunto. Como ainda estou um bocadinho a ressacar de 2023, achei que a melhor maneira de o fazer seria com uma lista de coisas boas (5) que descobri no ano passado (pela ordem que me vieram à cabeça e provavelmente com algum esquecimento grave):
1 – Socorro. Loja de discos, com sala de concertos, no Porto. O chamado três em linha de coisas boas. A minha parte favorita é mesmo a sala de concertos. Fica na cave e inspira aquele caos à la Barreiro Rocks de que tanto sinto falta.
2 – Capote Fest/Black Bass/Évora em geral. Dois festivais, um deles a que fui como artista, e outro a que fui como espectador, ambos igualmente bons. Ir a Évora é perceber o quão horrível é ir ver concertos a Lisboa.
3 – Arda Recorders. Bom café, bons bolos e para aí o valor de dez apartamentos no Terreiro do Paço em microfones. Experiência meio surreal. Obrigado Bia e João.
4 – Sandes de leitão do Nelsonft na Mealhada. Ah e tal não tem a ver com música – tem sim. Experimentem ir tocar ao Norte e parar lá para almoçar. Faz valer a viagem toda.
5 – Toda a gente que conheci este ano, artistas e não só. É demasiada malta para me lembrar de todos, então vai aqui um amor geral. Sei que para quem lê efetivamente isto não serve de grande coisa. É o que é.
Fechando com coisas boas para 2024 (é agora que metem a “Egossistema” a tocar de fundo), aconselhava o excelente EP 18/23 dos Walter Walter, acompanharem o trabalho da associação cultural Hey, Pachuco!, e uma (ou mais) visitas à Sala 6.
É isto, xau.
– Afonso Ferreira
Conta-me como foi… o EP perdido.
Por volta dos longínquos anos de 2018 ou 2019, surgiu no mundo do underground musical uma banda de seu nome Matricidas. Biel e Belito foram as mentes por trás deste projecto que fez alvoroço num período de dois anos.
Biel e Belito conheciam-se desde tenra idade, de tão tenra idade que não conseguiam precisar qual tinha sido a primeira interação um com o outro.
O que o mundo não sabe é que eles e suas famílias são oriundas da longínqua Нохчийчоь, mais precisamente da cidade Гуьмсе e tiveram de sair do país devido aos diversos conflitos políticos durante os anos 90.
Pequenos e recém chegados a Portugal, os jovens deparam-se com uma sociedade completamente diferente à do seu país natal. Contudo, nada os impede de criarem raízes e amizades com as restantes crianças. Sem dificuldade aprenderam a língua portuguesa e facilmente começaram a entender os gostos dos miúdos portugueses, em suma: futebol, Fátima e fado.
Como foi dito anteriormente, foi fácil a sua integração. Para Belito, os primeiros anos foram muito marcados pelo futebol. Divertia-se imenso quando jogava com os amigos da escola e, para ele, era algo simbólico, sagrado e nostálgico. Quando tinha a bola nos pés, lembrava-se dos amigos que tinha deixado em Гуьмсе e do clube que tanto adorava. Por outro lado, Biel voltou-se mais para Fátima e inexplicavelmente afeiçoou-se tanto aos feitos milagrosos da Nossa Senhora que daí em diante apenas se apaixonou por raparigas com o nome Fátima.
Após passarem a escola primária e básica entre futebol e Fátima, Biel e Belito ganharam uma nova paixão: o fadado Fado. Os dois passavam horas e horas a ouvir LPs da Amália, do Carlos do Carmo, do Conan Osiris, do Alfredo Marceneiro. Ou seja, as grandes lendas do fado. Foi nessa altura que decidiram juntar-se e formar uma banda. Mas primeiro precisavam de aprender os aspectos essenciais da matriz do fado, e matricularam-se no liceu de música chamado “SBUD Os Italianos”. Andaram por lá três anos e a disciplina mais reveladora foi a intensa e enfadonha aula de Solfejo (para quem não sabe, Solfejo é a arte milenar de conseguir descobrir acordes dentro de quintas diminutas com sétimas acrescidas em Lá para Ré). O que os impactou não foi tanto o conteúdo lecionado nas aulas, mas sim terem conhecido um aluno chamado Nicki Santero, típico rapaz rebelde que não está na escola para rezar mas sim para ensinar os mais novos o que era música barulhenta, tipo Sepultura ou Capitão Fausto.
Os dois jovens ficaram tão maravilhados que decidiram mudar o seu estilo. O que o mundo não sabe, nem ouviu, é que a primeira versão dos Matricidas era um projeto de fado. Mas o que o mundo sabe é que foi daqui que surgiu uma das mais extremas ramificações do fado. Aqui nasceu o Fado Hardcore.
Biel e Belito ensaiavam com muito afinco para aperfeiçoar o novo estilo musical, e assim que as duas primeiras músicas foram lançadas redefiniu-se o panorama do underground português. As músicas “Calço o Samba” e “Dias de Sol&Dão” criaram uma aura mística em torno da banda e fez com que conseguissem abrir para algumas bandas conceituadas, como por exemplo os Zetta ou os Fábrica.
Os concertos dos Matricidas, pelo que diziam, eram muito à frente do seu tempo, e várias vezes foram chamados de Eusébios do fado hardcore. O choque foi tanto que depois de um concerto no Salão do Pérola Negra foram abordados pelo produtor Gil Berto (famoso por produzir o seu projeto musical Kill Gil) para fazerem um EP produzido pelo próprio. Este momento, por estranho que pareça, foi o início do fim da banda. A fama começou a subir-lhes à cabeça e muita gente começou a convidá-los para fazerem DJ sets, e a partir daí os seus egos dispararam em direção ao Sol.
Biel e Belito começaram a entrar numa espiral maluca de noitada sim, noitada sim sem parar e totalmente não saudável. Mas mesmo com este ritmo frenético conseguiram lançar o single de abertura para o vindouro EP que se chamaria Ganda Lança. Este novo single, de seu nome “Vaskas Vaskas, Vaskas Vaskas!”, era uma balada, não como aquelas da rádio, mas sim ao estilo fervoroso do fado hardcore, como só os Matricidas conseguiam fazer.
É pena que esta tenha sido a última canção a ser lançada pela banda. Após finalizarem as gravações do que seria o EP, Biel e Belito foram festejar à grande para o Salão do Pérola Negra e foi também nessa noite que conheceram o Sr. Moscatel, famoso por não dar ressaca, mas também famoso por criar realidades paralelas na mente, onde os espaços temporais não existem e as narrativas são criadas por Elefantes da Sorte que se encontram sentados na Areia da Praia enquanto fofocam sobre A Corda do Elefante sem corda. E foi assim que o espaço-tempo diluiu a história do EP perdido dos Matricidas, uma obra prima do fado hardcore, e um trauma para o underground nacional.
– David Yala Rodrigues
Música e Amizade
Quando penso em pessoas (ou grupos de pessoas) que me fizeram querer começar a fazer música existe sempre um nome incontornável: a Cafetra Records.
Quando tinha 15 anos, comecei a aperceber-me de que havia todo um meio musical alternativo: pessoas a fazer canções em português de uma forma independente e menos convencional.
Nessa altura, ainda não tinha liberdade para ver os concertos destas pessoas. Porém, anos mais tarde, essa liberdade começou a florescer e foi aí que comecei a ir a concertos com maior regularidade.
A primeira pessoa da Fetra que acabei por ver ao vivo foi o Éme, no Super Bock em Stock de 2018, salvo erro. Lembro-me de essa ter sido a minha porta de entrada para a Cafetra.
A verdade é que, quando essa porta se abriu, nunca mais se fechou. Nas irmãs Reis, encontrei algo que nunca senti por outra banda. Acho que nunca mais ouvi música da mesma maneira após ter ouvido Pega Monstro pela primeira vez.
Nunca me vou esquecer da primeira vez que ouvi o Alfarroba: um disco tão cru, mas tão sincero, que desabou qualquer tipo de equívocos que eu tinha sobre a arte de exprimirmos o que sentimos através da música.
Desde então, e muito graças à Hey,Pachuco!, associação à qual pertenço, já tive oportunidade de programar e conhecer vários membros da Cafetra.
Palavras nunca vão ser suficientes para agradecer a forma como este grupo de pessoas me inspirou a sair da minha zona de conforto e a expressar-me musicalmente sem papos na língua ou hesitações.
A meu ver, a maior beleza da música é o conseguir conectar pessoas. A verdade é que, depois desta reflexão, entendo que grande parte dos meus amigos vem precisamente desse mundo. E isso é incrível.
– André Amado
Podes escutar 18/23 nas várias plataformas de streaming.