A multi-narrativa
Eu vejo a nossa realidade um bocado como uma série de televisão infinita vista em primeira pessoa, em que somos um mero espectador preso no ponto de vista da personagem principal, vivendo circunstâncias criadas aleatoriamente pelo universo que na sua base estão fora do nosso controlo. Podemos chamar a essa história a narrativa principal.
É raro o período da minha vida em que não tenho uma série de televisão a acompanhar-me. Ou seja, para além da narrativa da minha própria vida, com as suas cenas, enredos, conflitos, sub-histórias e diferentes personagens, existe também uma narrativa alternativa paralela, ou mais que uma, que me acompanha durante um certo período de tempo. Esta narrativa tem um enredo geralmente mais cativante que o da minha própria vida (que em minha defesa não costuma chegar a patamares irrealistas para efeitos de dramatização) e personagens por quem, por esse período de tempo, crio uma ligação mais forte do que com algumas pessoas na minha vida. Estas personagens da narrativa alternativa podem chegar a um ponto em que as considero minhas amigas, pela afeição que crio com elas. Há 10 anos atrás comecei a ver Shameless (versão americana), se calhar a minha série de introdução a este vício leve, pela qual mantenho um carinho enorme. 10 anos depois, ao rever a série, tenho o mesmo carinho e ligação com as personagens daquela família disfuncional como tinha dantes. Esta “série do momento” torna-se uma espécie de casa, porto de abrigo e conforto que me acolhe quando eu quero sair da minha narrativa e ingressar noutra.
Sempre fui mais de séries do que de filmes. Talvez seja por se criar esta relação de continuidade e de conforto diário que não se consegue ter em duas horas. Não sou muito esquisito com o género, mas geralmente gosto de ter uma mais densa e uma mais entertainer em simultâneo, para situações específicas. Ou seja, misturar um Game of Thrones com um Friends, por exemplo. Um Breaking Bad com um Modern Family, ou um Peaky Blinders com The Office. Atualmente vejo From, uma série distópica de terror e drama e Community, uma comédia leve e simpática.
Isto fez-me questionar se, para além do amor pela arte do cinema, a minha vida não é interessante o suficiente para me satisfazer, e se preciso de uma escapatória da minha própria realidade através de uma série de televisão. Este assunto leva-me também a pensar na importância da arte na vida humana. Se pensarmos nas condições básicas da vida humana, a arte não tem qualquer importância. Precisamos de engenheiros para termos alojamento, transporte e água em casa, precisamos de médicos para alargarmos a nossa existência e termos uma vida saudável, precisamos de polícias e advogados para vivermos numa sociedade justa e controlada, mas para que é que precisamos de ver um filme ou de ouvir música? Teoricamente não é uma necessidade, conseguimos facilmente sobreviver sem a arte. Mas se tentarmos recriar na nossa imaginação uma vida sem qualquer forma de arte, a imagem a que chegamos é a de uma vida meramente prática e programada, sem forma de escaparmos a este pragmatismo e de ter alguns dos momentos mais emocionantes que podemos ter. Afinal de contas, deito uma lágrima e arrepio-me mais facilmente a ver uma série ou num concerto do que com momentos da minha narrativa principal.
Para finalizar, deixo algumas recomendações das minhas séries favoritas ao longo dos tempos, para os interessados:
- Shameless: como referido anteriormente, esta é das minhas memórias mais antigas de estar completamente envolvido numa série. Uma família problemática de um subúrbio de Chicago com um pai alcoólico e adicto e seis filhos que tiveram que sobreviver por conta própria muito através de crime e fraudes. As pequenas histórias das suas vidas são muito cativantes e estamos constantemente a torcer por eles, por mais errado que seja.
- Louie: realizada e representada pelo Louis CK, que retrata em cenários fictícios a sua vida como comediante e pai divorciado. Nesta série é incontornável a genialidade do comediante, com alguns dos momentos mais hilariantes que já vi.
- See: um mundo pós-apocalíptico em que a humanidade perdeu a visão e foi reconstruída de uma forma muito bem conseguida a pensar numa sociedade que não consegue ver. A história é muito progressiva e vai-se aprofundando e redescobrindo a cada temporada. Está repleta de cenários lindos e uma banda sonora imersiva.
- The Walking Dead: não que a série me tenha marcado muito, até porque abandonei ao fim de poucas temporadas, mas guardo a memória de partilhar esta série com a minha mãe, que não fazia assim tanta questão de ver zombies desentranhados a comer pessoas.
- The Last of Us: aqui sim, vale a pena ver zombies desentranhados a comer pessoas. Até porque os realizadores fizeram questão, e bem, de que essa não fosse a atração principal da série. É uma retratação perfeita do jogo de PlayStation da minha vida, com cenários e momentos idênticos e um casting muito bem feito. Tem momentos altamente emocionantes.
- Atlanta: Realizada e representada pelo Donald Glover (Childish Gambino), que interpreta um jovem a tentar tornar-se agente do seu primo artista na cena de rap de Atlanta enquanto batalha com dificuldades financeiras. É engraçada, empolgante e tem cenas muito fora da caixa.
- The Simpsons: por fim, não precisa de apresentações. Queria deixar a menção honrosa de um desenho animado que cresci a ver, e que me introduziu ao humor. Apesar de já nunca ver, pensar nos Simpsons traz-me uma sensação de casa e família.
– Ricardo Sebastião
Amigos amigos, negócios faz parte
Há uma certa relação específica que se desenvolve com os colegas de trabalho que não se costuma fundir com as relações de amizade longas e confortáveis que se vão construindo ao longo de vários anos. Esta relação de ofício geralmente tem um cheirinho de formalidade, é gerada pela ocasião e pode facilmente cair no esquecimento quando as circunstâncias de trabalho mudam. Ter uma banda, para o bem e para o mal, não se encaixa nesta gaveta de relações. Para quem vê de fora, é fácil pensar que ter uma banda é ir para o recreio cada vez que se vai trabalhar, onde brincamos com os amigos partilhando gargalhadas e navegamos num mar de criatividade com infinitas possibilidades de criar a banda sonora para as nossas vidas. E não me levem a mal, muitas vezes é precisamente isso. Aliás, é por esses momentos, por vezes tão intensos e felizes, que sei que é exatamente isso que eu quero fazer para sempre. Mas esses momentos ocupam uns 10% do nosso trabalho. E é nos restantes 90%, entre enviar emails, editar vídeos, fazer candidaturas, criar cartazes, definir prazos e cumprir esses prazos, que começa a entropia. Não há um chefe para nos dizer o que fazer. Se não partir de nós, não há avanço. Uma banda sem amizade não funciona. E uma banda só com amizade também não. A frase “amigos amigos, negócios à parte” não se aplica neste caso. É uma tarefa difícil gerir feitios, egos e opiniões quando nem sempre se partilha a mesma visão ou ética de trabalho. Mas uma coisa é certa: por mais zangas, choques e discórdias que possam haver, nada bate o sentimento de criar algo em conjunto com os melhores amigos.
Hobbies – Amizade, Parkour, Tags e Jogos de bola
Lembro-me de há uns bons tempos o Vasco comentar comigo que não tinha nenhum hobby. Na altura identifiquei-me com ele e ambos concordámos que era importante tê-los. Em primeiro lugar, um hobby, definido pela internet: “É uma palavra inglesa frequentemente usada na língua portuguesa e significa passatempo, ou seja, uma atividade que é praticada por prazer nos tempos livres. Um hobby não é uma ocupação a tempo inteiro, e tem como objetivo o relaxamento do praticante”. Numa profissão criativa como a nossa, que originalmente surgiu de um hobby, é fácil perder o foco, ou perder a magia inicial desta arte, quando somos sujeitos à disciplina naturalmente imposta por uma sociedade alucinante, onde tudo acontece tão rápido, e que exige uma produtividade acelerada. Considero eu que seja por isso que um hobby é tão importante na nossa rotina, é algo que nos dá gozo, que quebra a própria rotina e que nos traz de volta o sentimento de infância, onde a única preocupação era brincar e com o que brincar. Pior é quando o hobby se torna a fonte de maior motivação momentânea na vida, mas isso é outro tópico que poderia dar muito pano para mangas.
È engraçado o quão um hobby também pode ser uma boa fonte de união entre pessoas… comentava no início que eu e o Vasco nos tínhamos apercebido que naquela altura não tínhamos hobbies para além da música, que é agora o nosso trabalho, mas de facto temos tido ao longo da história da nossa banda bons hobbies e atividades de grupo que acabam por nos conectar sem que precisemos de usar palavras, a simples energia primordial de “brincarmos” uns com os outros acaba por nos conectar de uma maneira inconsciente. Nós os três conhecemo-nos pela primeira vez a jogar basquetebol no clube da nossa terra. Foi talvez este o nosso primeiro hobby conjunto, onde “brincámos” juntos pela primeira vez, é sempre bom voltar a fazê-lo e lançar umas bolas no campo do condomínio do Sebas.
Depois veio a música, a partilha de gostos musicais, a descoberta dos primeiros covers e a sensação de tocarmos juntos, seguida da possibilidade de criar algo em conjunto. O tal hobby que viria a tornar-se profissão.
Mais tarde, depois de uma breve passagem não muito bem sucedida pelo skate, que a dada altura foi um hobby de adolescência individual de cada um, redescobrimos, em conjunto, o parkour. Por causa do Sebas começámos a ver uns YouTubers de parkour, os Storror, bastante criativos e apelativos que não se cingem apenas aos típicos vlogs de uma sessão normal de treino, daí o despertar do nosso interesse. A parte mais interessante deste desporto é, sem dúvida, a superação de barreiras mentais: seja o salto pequeno ou grande, com mais ou menos perigo…Há sempre medo de falhar a acrobacia, porque um passo em falso pode ser a morte do artista e é aqui que reside essa superação mental: acreditar nas habilidades físicas que sabes que tens e atirares-te sem medo, e esta superação pode sempre ser transportada para a nossa vida em geral.
Agora, mais recentemente, através de um amigo nosso, eu e o Sebas descobrimos um pouco daquilo que é a cultura do graffiti. Aquilo que antes eram apenas rabiscos feios na parede ganhou toda uma outra dimensão quando entendi que cada tag era uma pessoa e que, neste meio, toda a gente se conhece sem conhecer um rosto físico. De alguma forma, este misticismo associado à marca de cada um fez-me despertar o interesse por esta cultura. Agora, dou por mim a andar de carro, de cabeça no ar, a olhar para todas as tags, throw up’s e pieces que andam por aí e a reconhecer muitas delas. É giro como podemos acompanhar a marca de uma pessoa pelo país ou até pelo mundo fora, tal como foi giro experimentar criar uma tag no papel e entreter-me a brincar com as letras.
Por último e talvez mais importante, por estar sempre presente ao longo da nossa vida conjunta, temos variadíssimos jogos de bola. Volley de praia, 50 toques com a bola no ar, raquetes, bilhar, ténis de mesa e spike ball são alguns dos jogos que mais nos acompanham durante o ano…uns mais na época de Primavera/Verão, outros mais na época de Outono/Inverno. Uma vez, eu e o Sebas oferecemos um mini bilhar ao Vasco. Claro que esta é daquelas prendas que servem a todos, quase como uma prenda coletiva que desde então não larga o nosso estúdio. Há pouco tempo a nova aquisição coletiva foi justificada pelo nascimento do Sebas, desta vez um Spike Ball, um jogo de equipa, em parte semelhante ao vôlei, mas não vos vou maçar mais ao explicar as regras do jogo. Incentivo-vos apenas a pesquisarem um pouco sobre este jogo super divertido na web.
Hobby, algo que talvez seja muitas vezes associado a uma atividade individual, porém pode também ser algo em que se ganha bastante ao praticá-lo em grupo, que, neste caso, fez parte de mais uma perspectiva de ter uma banda ;).
– Tomás Andrade
Podes escutar Amarílis nas várias plataformas de streaming.
Os Sogranora irão tocar em várias FNAC do país ao longo da próxima semana. Mais informações sobre essas datas aqui.