Carte Blanche a João Couto

A 15 MINUTOS DAQUI

Eu sempre vivi em Vila Nova de Gaia. Não a Vila Nova de Gaia idílica da vista emblemática do Porto, a das lendárias caves de vinho, a do fogo de artifício no S. João, a do postal bonito que todos conhecem bem… sou de Gaia. Aquela Gaia que, volta e meia, aparece nas notícias porque as equipas de futebol locais andaram à porrada com os árbitros ou umas com as outras, ou aquela em que acontece todo um Grande Cisma do Ocidente numa igreja paroquial porque se mudou de padre — a história que aconteceu na freguesia que morei em criança ia precisar de todo um outro artigo só para vos contextualizar — a Gaia em que os seus governantes estão envolvidos em esquemas de corrupção que culminam com entregas de “luvas” em casas de banho do NorteShopping… Essa Gaia. Uma terra em que se passa tudo e, ao mesmo tempo, não se passa nada

Mas atenção, não vos venho aqui falar sobre o quão épica e bizarra é a minha terra — até porque há outro músico, meu conterrâneo, que faz isso muito melhor que eu — mas tenho andado a pensar muito em como viver num lugar assim acabou a influenciar a minha música, e o que diz de mim.

Quando digo que “não se passa nada, mas ao mesmo tempo passa-se tudo”, não digo de forma pejorativa. Nada disso, até porque eu próprio sou assim. É uma dinâmica que sempre me assentou como uma luva e por isso sempre me senti em casa onde vivo. Emocionalmente, ou estou a mil ou estou letárgico. Quero ser o centro das atenções, mas também quero esconder-me à primeira oportunidade. Tenho uma ambição enorme e, ao mesmo tempo, se nada mudasse na minha vida, não reclamava.

Ver as coisas neste constante desfasamento fez com que a vontade de fugir e mudar de página, sem saber o que o futuro reserva, fosse o sentimento que mais procurava na música que ouvia em adolescente. Há qualquer coisa na euforia desse sentimento que dá vontade de engarrafar para poder beber um trago dele de vez em quando, quando a rotina começa a parecer demasiado mundana e aborrecida. A música tinha (e tem) esse poder em mim, de me dar um cheirinho desse sentimento. Viver onde vivo faz-me querer procurar esse sentimento, primeiro na música que me formou e, mais tarde, nas que comecei a escrever.

Quando finalmente tirei a carta de condução as coisas nunca mais foram iguais. Na zona onde vivo, não há transportes públicos, mas estou a uns meros minutos de uma estrada nacional, por isso conseguir a carta para mim não era só um certificado de independência, era uma necessidade. Ansiava pela liberdade de gerir os meus dias, as coisas que tinha de fazer, os estudos, as saídas à noite na faculdade. E quando essas saídas chegaram, quantas vezes me voluntariava a dar boleia a meio mundo só para poder ter o carro cheio e, logo a seguir, acabar a noite a conduzir sozinho, sem pressas, a ouvir os meus álbuns favoritos aos berros. Estava feliz em ambos os cenários (embora o segundo ganhasse mais vezes, confesso). Comecei a ver e viver num mundo em que parecia que tudo o que precisava não estava a muito mais que 15 minutos de distância de carro. Ou 5 canções de distância, sensivelmente. Ter o resto de Gaia mais o Porto, Espinho e Santa Maria da Feira a essa distância, para mim, era geografia suficiente. Ir a Braga, Chaves, Lisboa e até Algarve, para mim, era como ir a Marte. Era só em casos extremos.

Assim levei este ritmo de vida confortável nos primeiros anos de carro e, após terminar a licenciatura e me dedicar à música, cada viagem que podia fazer — para ver ou dar um concerto aqui e acolá, ir a estúdio, gravar uma entrevista, fazer um biscate qualquer — era o ponto alto da minha semana ou até do meu mês. O problema foi que me isolei bastante nesse período, e preferia cada vez mais viagens sozinho.

Com o passar dos anos, a minha rotina estagnou. Paguei o preço por andar constantemente indeciso se o que queria era isolar-me do mundo ou estar em todo o lado e muitas amizades foram-se revelando como amizades de circunstância. Muitos dos meus planos falharam a nível profissional e pessoal e, para me proteger, fiquei-me por um meio termo que só me satisfez a mim: o de continuar a viver no mundo de 15 minutos que criei para mim próprio.

Foi na minha música que acabei por encontrar forma de exorcizar e refletir sobre as minhas falhas e perceber onde é que realmente estava o meu melhor, e acabei, felizmente, por crescer imenso. Em 2020 — um ano que, escusado será dizer, foi transformador para todos — o mundo já não estava a 15 minutos. O mundo, mais que nunca, era o meu quarto e tive que arranjar forma de abrir janelas, se alguma vez quisesse deixar de estar limitado à minha geografia emocional. Muita videochamada, umas parcas visitas à família (mas bem aproveitadas), e acabei, a nível pessoal, por ter um dos melhores anos da minha vida. Nunca me senti tão ligado aos meus amigos, família e, desde então, faço por valorizar a sorte que tenho em quem me rodeia. De vez em quando, é bom pegar no carro e ouvir umas músicas sozinho, mas não preciso de o fazer tantas vezes.

Numa conversa em que, depois de mostrar canções novas a um grupo restrito e imperdoável de ouvidos amigos, a quem confiava a minha vida, um dos portadores desse par de ouvidos disse-me “as tuas canções mais recentes são sempre sobre querer fugir para algum lado, sobre estar quase a viver um sentimento mas nunca *estás* lá!”. Fiquei a pensar nesse comentário desde que o ouvi. A mistura entre esse comentário, uma ideia de canção que improvisei num story de instagram no tédio do confinamento e uma enorme gaffe que cometi numa videochamada sobre a distância de uma cidade a outra (vou-me poupar a humilhação e não vou dizer qual foi) levou-me a escrever uma canção chamada “15 Minutos”, que vai estar no meu próximo disco. Toquei-a em Lisboa há uns dias atrás e a mesma pessoa que disse aquele comentário estava na plateia. Não foi a primeira vez que ouviu essa música, mas nessa noite teve uma observação certeira: “já percebi, esta canção é sobre ingenuidade”. Eu próprio não tinha percebido isso (que, por sua vez, é extremamente ingénuo da minha parte).

Viver no meu mundo de 15 minutos foi recostar-me na ingenuidade, que por vezes foi saudável, mas aprendi, a tempo, que por vezes foi demais. Com a minha música estou a aprender que não preciso de escolher entre apatia e o extremo, e que a terceira opção não precisa de ser ingenuidade, que pode existir uma quarta, que é conexão. Viver um pouco mais no momento, experimentar, não só desejar e idealizar apenas o que pode acontecer. O mundo pode estar todo a 15 minutos daqui, mas pode também não estar e talvez seja esse o próximo passo, ver o que está além. Para o ano quero-vos mostrar um pouco do que vi além do meu mundo de 15 minutos, agora que o estou a conhecer. Como diria a minha canadiana favorita, “I Wanna Cut to The Feeling”.

Podes escutar “Caixas” nas várias plataformas de streaming.

João Couto termina a digressão “Canções sobre o meu Carro e o meu Quarto” no próximo domingo (3) no salão Novo Ático do Coliseu Porto. Bilhetes aqui.

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