Estou sentado num autocarro. Pelo céu, irrompe um azul esbelto, onde poucas nuvens oferecem breve e bem-vinda sombra. É domingo, 30 de julho. Pela cabeça, as memórias de Lamego chegam como fogo de artifício numa noite escura. Fazem-me sorrir. Sinto saudade. Já estou com vontade de voltar.

Até há poucos dias, nunca tinha vindo a Lamego. Apesar de três dias ser muito pouco para descobrir a vasta história de um local, cheguei à cidade do distrito de Viseu para a 12ª edição do ZigurFest e decidido a entender um bocadinho melhor esta localidade e a personalidade que a torna, como todas as outras tantas, única na sua própria “margem”.

Há anos que desejava ir ao ZigurFest. Mas havia sempre alguma coisa que impedia isso de acontecer. Falta de dinheiro, impossibilidade de transporte, falta de compinchas, um certo medo de partir à descoberta de novos locais (estúpido, eu sei). Lembro-me de encontrar o festival no Facebook – devia correr o ano de 2015 ou 2016 – e de ficar super fascinado com o facto de existir um festival de música, nos seus mais variados feitios, em Lamego. Of all places! Acho que uma parte de mim sentia inveja de Cucujães não ter algo da mesma envergadura. Mas de alguma forma queria experienciar o ZigurFest. E este ano surgiu finalmente a oportunidade.

Quando abandonei Lisboa, na passada quinta-feira, num autocarro todo ele semelhante àquele onde me encontro agora, senti euforia. Muita euforia. “Eu vou ao ZigurFest.” Finalmente! Gosto de pensar que este sentimento surge porque estou a viver coisas que nunca consegui viver na minha adolescência. Soa triste, mas é verdade. E ia ao ZigurFest com amigos. Perdoem-me a lamechice, mas esse pormenor só me deixava mais excitado. Só iria tornar a experiência melhor. E tornou.

Quinta Feira, 27 – Dia 1

Na quinta-feira, o festival não foi em Lamego. Tive de apanhar o shuttle do festival para deslocar-me a Penude, à Associação Cultural e Recreativa de Penude de Baixo (localizada no topo de um monte, no meio de verdes), onde os primeiros acordes da 12ª edição do festival lamecense aconteceram. Aí, fui ao encontro do workshop “A tradição tem um novo sabor”, dado pelo chef barcelense Bruno Andrade Senra, onde encontramos este a palestrar sobre técnicas para aprimorar um puré (green flag logo a abrir). Inscrevi-me no workshop do Bruno porque, além da minha relação próxima com culinária (cortesia da minha avó), passo muito do meu tempo livre a pensar em como posso melhorar aquilo que cozinho para mim e para amigos (surpresa: não passo a minha vida só a pensar no que quero escrever!). Ou então, só queria aproximar-me ainda mais do meu fascínio com The Bear. Nem sei.

Não estava muita gente presente no workshop, o que se por um lado podia ser um entrave, por outro serviu para aproximar mais os presentes de Bruno e para me permitir uma melhor observação do que aconteceu. Vi um seitã nascer à frente dos meus olhos, colorida por água de beterraba. Vi o Bruno a fascinar um puto com a sua destreza e conhecimento – espero que ele mantenha o seu fascínio pela gastronomia daqui para a frente. No final, os pratos servidos estavam excelentes. Mega props ao Bruno pelas refeições que serviu à equipa do festival (e a mim), e pela disponibilidade e carinho que disponibilizou ao longo dos dias de festival. Fiquei muito feliz por conhecê-lo.

Horas mais tarde, ainda em Penude, e já de barriga cheia, chegou a hora dos concertos. Após um pequeno atraso e uma luta intensa contra o frio de rachar que se fazia sentir, finalmente, música. Primeiro, a apresentação da residência-concerto de Puçanga. A seguir, o rock livre dos Amuleto Apotropaico.

 

Puçanga no ZigurFest 2023. Fotografia: Pedro Jafuno
Puçanga no ZigurFest 2023. Fotografia: Pedro Jafuno

O espetáculo que Puçanga apresentou em Penude surgiu de uma residência de portas abertas para a comunidade, onde trabalhou “na recolha de elementos musicais e etnográficos regionais para criar música nova e pensada para o festival”, lê-se no site do ZigurFest. Em palco, acompanhada por dois músicos – saudamos o bombardino – e três vozes locais, Puçanga tocou canções que cruzavam o seu universo sonoro – o do trip hop textural e do hip hop algo pujante – com a exploração das melodias e tradições que foi buscar ao universo de Penude e além-fronteiras (tocou uma canção tradicional venezuelana lá para o meio também).

A dado ponto durante o concerto, Puçanga atirou uma máxima que me ficou na cabeça: Que o “folclore e o underground são a mesma coisa”. Dei por mim a pensar sobre o assunto, até porque nas minhas recentes considerações sobre o assunto sinto que trilhei caminho por devaneios semelhantes. Concluí então que o espetáculo de Puçanga era um de urgência. Não só pela qualidade da fusão – lembrou-me uns Bandua em momentos -mas por aquilo que significou. Um lembrete que as tradições, sejam estas mais ou menos artificiais, são muitas vezes mantidas por comunidades de margem, como o Rancho Regional da Associação Cultural e Recreativa de Penude de Baixo, que surgiu no final para apresentar uma dança das fitas ao ritmo de eletrónica dançável. Não seria o único momento do ZigurFest que suscitaria a pensar sobre o assunto.

 

Amuleto Apotropaico no ZigurFest 2023. Fotografia: Pedro Jafuno

Entretanto, e com o fresco da noite a fazer-se sentir ainda mais no alto de Penude, os Amuleto Apotropacio, duo formado por Francisco Oliveira e António Feiteira, cujos caminhos se cruzaram entre o Colectivo Bergado e Terebentina, aqueceram as hostilidades com o seu rock extremamente livre. Bebem do jazz, da no wave nova-iorquina, do noise japonês de um Keijo Haino – disso não há dúvidas. E também não restam dúvidas sobre a energia com que sobem ao palco. Os ataques à guitarra, com a garra de quem quer (e sabe) fazer barulho, ecoam imediatamente pela memória. As incursões pela bateria, entretanto, são de quem sabe tornar-se um só com o instrumento e tocar o que está a vivenciar no momento. No final, uma bandeja largada sobre o chão revela-nos o clímax de tudo: os Amuleto Apotropaico sabem fazer barulho do bom e temos de os manter debaixo de olho daqui para a frente. Há disco para breve, ao que parece.

Sexta-Feira, 28 – Dia 2

Felizmente, o frio de Penude não causou mazelas, e o segundo dia do ZigurFest começou, após dormida, com alguns passeios por Lamego. Almocei com companheiros de viagem n’O Grotto II (recomendo a pizza vegetariana) e acabei a descobrir mais do que poderia imaginar sobre Danni Gato (não veio ao Zigurfest, não se preocupem).

Ao início da tarde, chegou a hora de apanhar mais uma vez o shuttle, desta vez em direção ao recém-inaugurado Centro Cívico de Lamego, para o workshop conduzido por Inês Castanheira, onde eu e mais uns quantos nos divertimos a construir um circuito eletrónico (de forma DIY) para gerar sons e ruídos. Levei para casa um brinquedo com o qual posso irritar os meus vizinhos e brincar para gerar melodias através da física. Parece-me tudo certo no final do dia.

Após um breve jantar, onde me sentei com os Máquina – que daí a algumas horas iriam estar a partir tudo na Olaria – e tive a oportunidade de ouvir uma moda alentejana (inesperada, mas bem-vinda), desloquei-me ao Teatro Ribeira Conceição (TRC) para a primeira apresentação da residência-performance de Ana Oliveira e Silva com os Caretos de Lazarim.

 

Ana Oliveira e Silva no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo
Ana Oliveira e Silva no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo

Nesta minha vinda ao ZigurFest, tentei ao máximo abster-me de descobrir exatamente ao que ia, especialmente nos espetáculos criados a partir de residências. Durante a performance de Ana Oliveira e Silva, logo à priori, fiquei surpreendido com o seu cenário mínimo e a vestimenta da performer. Era como se uma assombração se tratasse, mas, ao mesmo tempo, não deixava de ecoar beleza. Dei por mim com dificuldades em entender o que estava exatamente a experienciar. Era como se as pressões do passado desabassem sobre mim. Pensei em Restos do Vento, do Tiago Guedes, e da forma como a tradição pode deixar mazelas se não for orientada para trabalhar novos futuros. Saí abalado e confuso do teatro. Gostei muito.

Entretanto, na Olaria, a multidão juntou-se para os concertos da noite. Imiscuí-me pelo meio em busca de amigos e um local para assistir à ação de perto. Primeiro, foi o hip hop psicadélico do underground de AZIA.

Confesso que antes deste concerto de AZIA no ZigurFest ainda não estava totalmente on board com a música da vencedora dos Novos Talentos FNAC 2022. Os beats pesados impressionam, mas o seu flow e escrita, a lembrar um Allen Halloween, não me tinham ainda entrado totalmente (com Halloween, para ser honesto, demorei também algum tempo a entender a cena). Mas depois de ver com atenção o concerto da rapper e produtora portuense na Olaria, fiquei a perceber um bocadinho melhor o que torna a sua música fascinante. AZIA escreve sobre o quotidiano de uma forma mundana. Soa real. Quando isto se alia ao seu beatmaking exímio – as suas deslocações à sua MPC foram impressionantes de assistir –, faixas como “Nada Fixe” ou “Em Thalamus”, extraídas do disco Causa Torpe (vale a pena ouvir) prenderam-me. Há algo hipnotizante com a música de AZIA – e não são só as vozes na minha cabeça a falar do bom concerto.

Por quem já estou totalmente on board é pelos Hetta. O quarteto com base no Montijo, formado por Alex Domingos (voz), João Pires (guitarra), João Portalegre (bateria) e Simão Simões (baixo), “devolveu” o hardcore a Lamego. Agitou a Olaria e deu um concerto que surpreendeu uns quantos e confundiu outros. Afinal, a música dos Hetta não é de “fácil” escuta. É barulhenta, catártica. Bebem de influências do screamo como os Orchid ou Adorno e do seu passado de hardcore em bandas como os Violent Pup ou Nagasaki Skateboarding. Mas para quem gosta da coisa, os Hetta são do melhor que há por terras portuguesas. E eu gosto muito daquilo que os Hetta estão a fazer.

Hetta no ZigurFest 2023.
Hetta no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo
Hetta no ZigurFest 2023
Hetta no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo
Hetta no ZigurFest 2023
Hetta no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo

Com Headlights, EP de estreia lançado em 2022, os Hetta apresentaram a possibilidade de revitalizarem o hardcore português. Não o fizeram com esse intuito, mas está a acontecer diante dos nossos olhos. Quase por acidente, mas os Hetta estão a cumprir o que prometeram. Estão a arrastar putos para os seus concertos e a inspirar outros a criar bandas. Quando Alex se iça acima do público para voar, há o cuidado de não o deixar cair uma única vez. É como se segurassem numa parte de uma pedra preciosa que não se pode partir. Admiram-nos, e há razões para tal. Quando os riffs de malhas como “Sugar Glass” ou “Ritalin Kid”, principal faixa de destaque do recente split da banda com os finlandeses Alas e Letterbombs e os norte-americanos Apostles of Eris, editado pela reputada Zegema Beach Records, se fazem escutar, o público explode em moshpits. Parece que na Olaria as coisas são assim. Ainda bem que são. Nem algumas gotículas de chuva que decidiram aparecer fizeram mossa.

Quem também não devem desperdiçar a oportunidade de ver ao vivo são os MÁQUINA. (estilizado como MДQUIИД), o trio formado por João (guitarra), Tomás (baixo) e Halison (bateria). O disco de estreia, DIRTY TRACKS FOR CLUBBING, lançado em janeiro, soa excitante. É como se o krautrock de uns NEU! e o dance punk dos tempos áureos dos The Rapture se encontrassem para tomarem ketamina e tocarem juntos de seguida. E se em disco soa excitante… Ao vivo é ainda melhor. É em concerto que os MÁQUINA. se encontram no seu habitat natural e tornam qualquer lugar por onde passam no club mais sujo do mundo. Na Olaria, não foi exceção. Cada passo de dança, cada crowd surf – e foram muitos! – cada partimento de chão valeu a pena quando se escuta malhas como as dos MÁQUINA., que além das músicas de DIRTY TRACKS FOR CLUBBING, também estrearam em Lamego algumas novas que já estão a deixar mossa.

Máquina no ZigurFest 2023
Máquina no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo
Máquina no ZigurFest 2023
Máquina no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo

Por cada linha de baixo sujíssima e pesadíssima tocada por Tomás, o público respondeu com a intensidade necessária de quem sabia que a bateria de Halison nos iria comandar até à próxima paragem. Só que a próxima paragem não é uma de descanso – é uma de mais festa. Liberdade. Quando as guitarras de João rasgam pelo meio da sujidade, o capacete é abanado. Pelo meio disto, copos voam. Garrafas partem-se e algumas viram-se (fiquei com cerveja na camisola e não me importei nadinha). Powerbanks e carteiras ficam perdidas. Pescoços vão ficar doridos no dia seguinte (o meu ficou). Mas é assim mesmo que deve ser quando encontramos esta maquinaria da pesada por aí fora. Concertaço para fechar o segundo dia de ZigurFest.

Sábado, 29 – dia 3

No último dia de festival, tirei a manhã para visitar a zona em torno do Castelo de Lamego. Comecei por visitar a exposição Ana Hatherly – Poeta Chama Poeta na Galeria Solar da Porta dos Figos – Casa do Artista, onde fiquei com interesse em descobrir mais sobre a obra e vida da artista, poeta, ensaísta, realizadora, investigadora e professora. A exposição, integrada no Programa de Exposições Itinerantes da Coleção de Serralves, pode ser contemplada até dia 1 de outubro. Se forem a Lamego, recomendo visitarem.

A seguir, uma passagem pelo Núcleo Arqueológico do município, onde fui forçado a ignorar vertigens para um lembrete que por aqui também se fez história, e pela Cisterna da cidade, um local pelo qual nutri particular fascínio, pela sua imensidão e beleza conjugada com o seu nível de funcionalidade. E ainda aprendi a palavra “mamarracho”. Parece-me tudo certo. Entretanto, o Santuário da Nossa Senhora dos Remédios, que desejava visitar, ficou para outra ocasião…

Após o almoço e de uma bela finada, a tarde levou-me ao Parque Biológico de Lamego, onde ao lado de Hugo Martins (aka Cálculo), uma crowd maior do que se esperava juntou-se para captar sons da Natureza e outros elementos para, mais tarde no Centro Cívico de Lamego, tentar em conjunto construir uma malha. O ZigurFest chamou a este momento de “Ecobeats 101”. O nome revelou-se adequado.

No Parque, o passeio foi belo e relaxante, um lembrete recheado de ASMR para preservar a Natureza. No Centro Cívico, apesar de um início algo lento, a aula do produtor e rapper barcelense encaminhou-se. Ver Cálculo a trabalhar no Ableton para criar o ritmo e a batida da malha – que não foi completada antes do início da próxima vicissitude do programa do Zigur – entusiasmou-me para, um dia, também tentar fazê-lo (mas não com sons da Natureza!).

ben yosei no ZigurFest 2023
ben yosei no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo

Após o término do workshop, seguiu-se o concerto (e palestra) de ben yosei – o momento pelo qual mais estava à espera do festival. lagrimento, o seu mais recente disco, é um dos meus álbuns favoritos de 2023 até ao momento, onde o músico apresenta em formato de “música devocional” um conjunto de canções belíssimas que refletem sobre um Portugal de “margem” e sobre o papel que a religião ainda ocupa nesses espaços e pessoas.

Apesar de neste momento me encontrar bastante desligado de religião, o disco do ben tocou-me imenso por ver partes do meu crescimento espelhado nas canções do longa-duração. Daí a minha comparação recente de lagrimento com Gótico Português dos Glockenwise: Ambos os discos tocam em costelas minhas que estavam adormecidas, e levam-me a ponderar sobre a minha relação com as minhas origens e de que forma estas se enquadram no meu eu atual.

Portanto, a apresentação ao vivo de lagrimento no ZigurFest deixou-me bastante emocionado. Envergando uma máscara e um fato que torna Rafael Trindade em ben yosei – o capuchinho negro da música devocional de Liceia –, a sua interpretação de canções como “o pote”, “bó” ou “anjo” – onde o próprio ben se emocionou, tal como eu – deixou o público em silêncio a escutá-lo. E devidamente. Este tipo de música é para atentar em silêncio para máximo efeito.

 

Rita Silva no ZigurFest 2023.
Rita Silva no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo
Rita Silva no ZigurFest 2023.
Rita Silva no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo

Voltei a Lamego a pensar no concerto de ben yosei e as horas passaram. O final do ZigurFest já não estava longe. Mas havia ainda mais qualquer coisinha para desfrutar, nas vizinhanças do Museu de Lamego. Foi para lá onde me dirigi para assistir ao belíssimo concerto de Rita Silva, artista que veio a Lamego apresentar o seu mais recente trabalho, The Inflationary Epoch, editado em 2022 pela Colectivo Casa Amarela. Algures entre uma Caterina Barbieri e uns Harmonia, pela forma como consegue introduzir ritmo às suas explorações de ambient e drone, a música de Rita Silva fez o público dançar um bocadinho, levando a que uns quantos – espero – tenham transcendido tanto quanto eu. Belíssimo.

Next, um regresso. Não ao ZigurFest – aqui não existem repetições de cartaz –, mas a Lamego, onde tocaram em 2013 pela última vez na cidade antes de um hiato que durou uma década. Os Gesso regressaram este ano aos discos – sem que nada o fizesse prever – com Nunca os Céus Se Tornarão Lugares, que vieram a Lamego apresentar.

Já conhecia os Gesso de nome, trio de Santo Tirso formado por Joel Fausto (guitarra e voz), Flávio Sá (baixo e teclados) e Rúben Sequeira (bateria e voz), mas nunca tinha escutado a sua música. Depois do concerto que vi no ZigurFest, fiquei com uma curiosidade imensa de ir ouvir os seus discos. A sua sonoridade aproxima-se do stoner rock – lento e psicadélico, mas com bastante pujança – mas não deixa de, pelo menos ao vivo, envergar-se por devaneios que os aproxima mais do pós-hardcore do que propriamente das conjeturas criadas por malta que gosta de fumar bons pavios. A dado momento, o próprio sistema de som do palco não aguentou – mandaram a luz abaixo. É sinal que foi, primeiro, um bom concerto, e segundo, ruidoso. Ninguém queria de outra forma. Agora é hora de fazer o trabalho de casa devido…

O fecho do ZigurFest 2023 ficou a cargo do produtor Silvestre, que apresentou ao público um set belíssimo de despedida ao festival que me deixou hipnotizado. Perdido entre os sons da batida lisboeta e as delícias das raves britânicas, Silvestre veio a Lamego apresentar senhoras malhas da sua discografia, tanto antigas como frescas, colocando ênfase nos dois EPs que lançou este ano, Osga (um dos melhores projetos da eletrónica portuguesa do ano) e Resina.

Silvestre no ZigurFest 2023
Silvestre no ZigurFest 2023. Fotografia: Inês Aleixo

Em quase duas horas de set, malhas como “Night Bus to Peckham”, “Ganzas”, “Sem Crew”, “Todos Bem”, uma cover de “Olha o Robot” dos Salada de Frutas, ou “Party” serviram como catarse final ao público lamecense – afinal, isto era música para partir chão e abanar anca, mesmo quando a luz voltou a ir abaixo. O bom humor por parte do produtor, DJ e patrão da Padre Himalaya, foi a cereja no topo do bolo para fechar esta edição do ZigurFest que, bem que diferente das anteriores, provou que o festival continua a ter muitas léguas para andar em termos de longevidade. Um bem-haja a isso.

O rescaldo

Horas antes de tudo se dar por concluído, fui beber um fino com António Silva. E qualquer conversa que começa por citar Floribella – afinal, o ZigurFest 2023 foi “super hiper mega rif-xei!”, exclamou o co-fundador do festival – , só pode ser boa.

Perguntei ao António que balanço fazia desta 12ª edição do ZigurFest, uma edição que fica marcada por receios, pela “mudança de data” e pela “redução significativa de orçamento” por parte da DGARTES que, confessa António, obrigou a equipa por detrás do Zigur a serem “cautelosos e a reconsiderar várias coisas”. O resultado? Uma edição que fica para a posteridade como “laboratório”, e que reflete o espírito de inovação (aqui não utilizado apenas como um chavão do empreendedorismo neoliberal) que sempre moveu o festival.

Sobre a mudança de data, António Silva indicou que o ZigurFest precisava desta “prova de vida”. Anteriormente, o ZigurFest decorria ao mesmo tempo que as festas da Nossa Senhora dos Remédios, no final de agosto. “Era muito fixe o Zigur ocorrer ao mesmo tempo que as festas porque vias sempre pessoas na rua”, recordou António. “Mas não dava para perceber o impacto real do festival”, acrescentou, porque era impossível discernir“quantas pessoas vinham efetivamente só para o festival, [enquanto que] este ano deu para perceber esse impacto.” Entre risos e um pedido de desculpa pela “pouca modéstia,” António considera que o festival “passou com distinção” o desafio.

Para o futuro, fica no ar a ideia de expandir o festival – mas ainda nada confirmado. Para já, ficam lançadas apenas ideias: mais workshops, mais residências. “Queremos fazer mais residências fora da cidade de Lamego”, revela António, para que depois o resultado seja celebrado na cidade. E claro, é este o sentimento que tem movido o ZigurFest desde que começou em 2011: o de “andar para a frente”, de não se deixar “fechar numa caixinha”, de continuar a “oferecer desafios”, tanto à equipa que o organiza como ao público, tanto o de Lamego como o que vem de fora para o festival.

Em Portugal, um país onde os festivais grandes são cada vez mais parques de diversões a céu aberto com música de fundo, é nos festivais “pequenos”, como o ZigurFest, que o coração musical realmente bate. São estes que fazem as coisas girar e acontecer, onde a descentralização realmente acontece. Onde há real espírito crítico, sem nenhum aborrecimento envolvido.

Estou sentado num autocarro. Lá fora, o sol brilha. Lisboa aproxima-se no horizonte. Penso nos dias que vivi. Sinto tristeza por terem terminado, mas sorrio. Fico já com vontade de regressar. Em 2024, se tudo correr bem, há mais ZigurFest para desfrutar, mais ZigurFest para pensar, ali algures para o final de julho outra vez. Lá estarei. Espero que vocês também.

Fotografia de destaque: Inês Aleixo. Podes ver a fotogaleria completa do ZigurFest 2023 aqui.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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