Square: Uma viagem musical além-Atlântico no quadrilátero

No dia 7 de dezembro de 2022, o então Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, anunciou a criação da iniciativa Capital Portuguesa da Cultura, acompanhada de uma dotação orçamental de 2 milhões de euros. A partir desse ano, anualmente, uma cidade será nomeada para este título, recebendo esse apoio financeiro para a realização de eventos culturais ao longo de doze meses. Em 2025, Braga foi a cidade escolhida (sucedendo, assim, a Aveiro), e um dos eventos de destaque no programa foi o festival internacional Square, cuja frase chave era: “Mapeando o Atlântico”.

Com a coordenação da editora e promotora portuense Lovers & Lollypops, o Square decorreu de 29 de janeiro a 1 de fevereiro, espalhando-se pelas quatro cidades do Quadrilátero Urbano do Minho (daí o nome do festival): Guimarães, Barcelos e Famalicão acolheram as tardes dos três primeiros dias, enquanto Braga recebeu todas as noites e o último dia na totalidade. Muitos dos concertos foram de entrada gratuita, embora nem sempre houvesse uma definição clara de quais seriam de acesso livre.

A diversidade de palcos conferiu ao festival uma produção ambiciosa e generosa em termos de recursos, garantindo uma qualidade sonora irrepreensível (fora uma exceção ou outra). Quer se tratasse de um mercado municipal ou de um auditório com mais de 500 lugares, o som mantinha-se cristalino, proporcionando uma experiência auditiva deliciosa. No entanto, esta dispersão de espaços revelou-se um desafio logístico para os festivaleiros. Para quem queria acompanhar todos os concertos, os percursos podiam tornar-se exigentes, com deslocações de até 30 minutos entre atuações separadas por intervalos de apenas 10 minutos. A intenção de explorar diferentes cenários urbanos foi louvável, mas para os mais dedicados esperava-os um grande desafio.

A programação do Square refletiu o seu conceito global, trazendo artistas oriundos dos três continentes banhados pelo Atlântico. Sem restrições de género, formação ou idioma, o festival proporcionou uma mistura eclética de estilos. Era possível viajar entre a música experimental, prog metal, funaná, rap e pop num só dia, garantindo uma experiência variada e refrescante, sem espaço para a monotonia. Além disso, apostou não só em artistas emergentes desconhecidos por todos mas também em algumas figuras que só os mais estudiosos reconheceram, assegurando uma proposta cheia de qualidade.

O Square destacou-se ainda por ser um festival de showcase. Mas o que significa isso? Um festival de showcases funciona como um ponto de encontro entre artistas, editoras, managers e organizadores de eventos. Mais do que um espaço de entretenimento, é um cenário propício ao networking, onde se estabelecem contactos e se negoceiam colaborações. A atmosfera por vezes tornava-se mais observadora do que participativa, com parte do público ali menos pelo espírito festivo e mais pelo olhar estratégico do scouting. Para quem foi com intenções puramente lúdicas, essa abordagem podia quebrar um pouco a magia do momento, industrializando a experiência. Para quem não foi com o intuito lúdico não sei, mas espero que tenham conseguido o que desejavam.

Julia Colóm. Fotografia: Inês Aleixo
Julia Colóm. Fotografia: Inês Aleixo

Curiosamente, notei que muitos festivaleiros que adquiriram o passe apenas pelo interesse musical não estavam cientes desse formato. O choque era visível quando percebiam que o público mantinha-se mais estático do que o esperado em concertos que nunca antes tinham visto sossego. O Square revelou-se uma proposta ousada, ambiciosa e culturalmente enriquecedora com um conceito bem definido que eu estava muito curioso para perceber como se concretizaria.

Dia 1 – 29 de Janeiro

O dia começou cinzento e chuvoso, deixando Guimarães mergulhada numa atmosfera mais triste do que o festival merecia. O que deveria ser um passeio descontraído entre salas de concerto transformou-se numa corrida apressada por entre as gotas da chuva, do parque de estacionamento até à CIAJ (Centro Internacional das Artes José de Guimarães).

A banda escolhida para abrir o festival foram os Skanderani, um sexteto de Pontevedra que trouxe a sua identidade vibrante para o palco. Apresentaram-se com um estilo marcante, vestindo trajes tradicionais africanos personalizados com emblemas de referências pop. Essa fusão de estética refletia-se também na sonoridade da banda: um psicadelismo quente, impregnado de influências do deserto, remetendo para os australianos Glass Beams, mas com momentos de explosão sonora imprevisíveis. Era música para enrolar a camisola na cabeça, improvisar um turbante e ondular os braços ao ritmo da melodia.

No entanto, desde o início ficou clara a frieza da audiência. Mesmo quando o vocalista soltava um enérgico “woh”, seguido de um solo de guitarra avassalador, a plateia mantinha-se estática, quase cerimoniosa. O contraste entre a energia fervilhante da banda e a postura contida do público criava um ambiente peculiar, mas isso não me impediu de apreciar a explosão de cor e som que se desenrolava diante de mim enquanto abanava a cabeça sem sair do lugar. A riqueza instrumental foi um dos pontos altos do concerto. Além do habitual trio guitarra-baixo-bateria, a banda trouxe uma paleta sonora diversificada com teclas, maracas, saxofone, bongos, sintetizadores e até um theremin. O resultado era um banquete sensorial, amplificado pelas projeções visuais que acompanhavam o concerto. A dado momento, percebi que um dos vídeos exibia a banda em versão animada, tocando para um auditório de esqueletos, um detalhe simultaneamente intrigante e perturbador. A única falha? Ter sido um concerto sentado. Ainda assim, foi uma abertura de festival memorável!

Terminado o concerto, chegou a hora de correr à chuva até ao Café Concerto do Vila Flor. Com um intervalo entre concertos de menos de 10 minutos, mal cheguei e já estava a começar. No palco, Jadsa, artista brasileira natural de Salvador, apresentou temas do seu disco Olho de Vidro e antecipou canções de um novo álbum previsto para este ano. Iniciou a atuação sozinha, acompanhada apenas da sua guitarra vermelha e voz. A sua sonoridade mistura samba com influências de rock e jazz experimental, sendo esta última mais evidente com a entrada de Antônio Neves no trompete.

Jadsa. Footgrafia: Sérgio Monteiro
Jadsa. Footgrafia: Sérgio Monteiro
Arianna Casellas y Kauê
Arianna Casellas y Kauê. Fotografia: Sérgio Monteiro

A fórmula inicialmente levantou dúvidas sobre a sua capacidade de preencher o espaço sonoro, mas surpreendeu. Embora em algumas músicas se notasse a ausência de outros elementos, houve momentos de brilho, especialmente nos temas do novo disco. Jadsa celebrou ícones brasileiros como Gal Costa, Itamar Assumpção e Rita Lee, com dedicatórias sentidas, garantindo boa disposição numa noite chuvosa. Apesar disso, o espaço, por não ser o mais acolhedor e envolvente, criou uma barreira entre artista e público, tornando a experiência mais distante do que se desejava.

De seguida, dirigi-me para um espaço mais acolhedor: a sala do Teatro Jordão, onde assistiria a um concerto que há já demasiado tempo falhara. Já tinha ouvido falar muito bem de Arianna Casellas y Kauê, mas por uma ou outra razão, sempre me escaparam quando atuavam perto de mim. Desta vez, não haveria desencontros.

A dupla, que transborda multiculturalidade ao unir influências da América Latina e de Portugal, apresentou um concerto de uma riqueza sonora impressionante. A ausência de instrumentos elétricos tornou a experiência ainda mais íntima. No palco, destacavam-se guitarras acústicas, tambores e um curioso tubo sonoro de percussão que adicionava um toque especial à performance. 

As suas vozes entrelaçavam-se de forma sublime, com Kaue assumindo um papel mais de coro, enquanto juntos contavam histórias sobre os seus avós, memórias de infância e vivências que nos transportavam diretamente para as suas mentes criativas. A atuação de Arianna Casellas foi marcada pela autenticidade, refletida na sua abordagem descontraída às músicas. O mais fascinante era a sua fluidez entre o português e o espanhol, alternando sem esforço entre um sotaque nortenho carregado e um espanhol acelerado, impossível de acompanhar para um simples português como eu. Longe de criar barreiras, essa mistura linguística apenas reforçava a sua ligação com os dois lados do Atlântico, aproximando-nos ainda mais da sua arte. Um verdadeiro deleite auditivo.

Após um concerto marcante, a atenção virou-se para os comfort, que atuavam num espaço peculiar, situado no caminho para a parte inferior do Teatro Jordão. Este local destacou-se no roteiro do festival, não só pela sua atmosfera underground, num beco rodeado de tijoleira, mas também pela péssima acústica. O volume excessivo e o eco horrendo tornavam a experiência desconfortável para apreciadores de música. O mais caricato era ainda o contraste gritante entre este beco sem condições e as galerias do Teatro Jordão, situadas mesmo ao lado. Era inevitável questionar como se sentiriam as pessoas responsáveis por desenvolver um espaço tão bem estruturado ao verem que, em vez de o utilizarem, optaram por um beco improvisado ao lado.

Embora a sonoridade da banda, reminiscente de Sleaford Mods e Kae Tempest, combinasse com o ambiente cru e industrial, para quem prefere uma experiência sonora de qualidade o local deixou a desejar. Ainda assim, o espaço estava bem preenchido, e o facto de o concerto ser gratuito e facilmente audível em qualquer freguesia de Guimarães atraiu muitos curiosos e entusiastas locais.

Para encerrar os palcos em Guimarães, trocou-se de cenário e entrei numa sala com excelentes condições, a Blackbox do CAAA, onde King Kami e João Parente trouxeram uma fusão de techno e funk. A adesão foi novamente forte, com muitos a marcarem o ritmo com o pé num DJ set animado mesmo à hora de jantar. Para quem, como eu, já sentia a barriga a roncar, permanecer no concerto deixou de fazer sentido, e a melhor opção foi ir para casa, descansar as pernas e recarregar energias.

comfort. Fotografia: Sérgio Monteiro
comfort. Fotografia: Sérgio Monteiro
Susobrino. Fotografia: Lais Pereira
Susobrino. Fotografia: Lais Pereira

As noites do Square durante a semana seguiram sempre um roteiro fixo: primeiro, um concerto na sala de cinema; depois, outro num palco improvisado ao lado do antigo balcão de pipocas, agora transformado em bar. O cinema do Braga Shopping é um espaço nostálgico para os bracarenses. Em tempos, foi o epicentro de idas ao cinema. No entanto, com o passar dos anos, perdeu público, as salas esvaziaram-se e o espaço tornou-se ponto de encontro para malandragem de adolescentes no escuro proporcionado por filmes de segunda classe. A pandemia acabou por lhe dar a machadada final. Ainda teve uma breve segunda vida como igreja evangelista, mas não durou (e bem). Agora, ressuscitou como palco do Square, uma escolha acertada para dinamizar um local que estava esquecido.

Com esse peso da memória, entrei na sala para ver um projeto que preferia ter esquecido: Susobrino. O artista belga de origem latina apresentava uma mistura de remixes com ritmos latinos, pontuada ocasionalmente por dedilhados na guitarra que demonstravam o seu talento, mas também um gosto musical fraco. Durante o concerto, pensamentos aleatórios surgiam: Eslei, emojis de unhas pintadas e pessoas apontando os indicadores para o céu, enquanto uma cabeça inclinada balançava suavemente. O cringe foi coletivo e a pista de dança ficou praticamente intacta.

Para fechar a noite, Retro Cassetta subiu ao palco. A proposta era curiosa: um DJ a passar clássicos marroquinos dos anos 80, aqueles êxitos populares ao estilo Tony Carreira, que até aprecio (não ironicamente). Mas às 00h45, já não faziam muito sentido. Com isso, o dia chegou ao fim. No dia seguinte haveria mais.

Dia 2 – 30 de Janeiro

Mais um dia de Square Festival, e desta vez o cenário mudou para uma das cidades mais musicalmente ricas do país, assim como uma das minhas favoritas: Barcelos. Se foi coincidência ou planeamento, não sei, mas o festival calhou em dia de feira.

Foi no meio do rebuliço deste cenário pitoresco que os Housepainters, um trio de pós/dance-punk vindo de Amsterdão, deram início aos trabalhos. Rodeados por bancas de fruta, peixe fresco e aquele cheiro inconfundível a produtos agrícolas misturado com um toque de psicotrópicos exalados por alguns festivaleiros, a banda trouxe muita atitude que merecia mais do que uma plateia ocupada a tirar notas no telemóvel.

Os Housepainters destacaram-se pela dinâmica fluida entre os membros, alternando papéis de liderança tanto nos instrumentos quanto nas vozes. Havia ali química e um groove que pedia menos braços cruzados e mais pés a mexer. No final, ficou a sensação de que este concerto tinha tudo para ser ainda mais explosivo num ambiente de festival mais tradicional, pois havia ali um cenário perfeito para transformar o coração de uma feira numa pista de dança improvisada.

Depois deste espetáculo improvisado, tentei a minha sorte no concerto de Caamaño & Ameixeiras no Museu da Olaria. Mas a lotação esgotada deixou-me de fora, o que acabou por se transformar numa oportunidade para explorar a cidade, beber uma cerveja e trocar impressões com outros festivaleiros igualmente barrados. Após esta pausa para respirar Barcelos, segui para o Teatro Gil Vicente.

Housepainters. Fotografia: Lais Pereira
Housepainters. Fotografia: Lais Pereira
Ricardo de León. Fotografia: Sérgio Monteiro
Ricardo de León. Fotografia: Sérgio Monteiro

Quem subiu ao palco foi Ricardo de León, músico do Panamá, trazendo consigo a folk do seu país através da guitarra e da voz. No entanto, o concerto não me arrebatou como esperava. Alguns deslizes vocais, tropeços inesperados e uma certa falta de brio em determinados momentos quebraram o encanto. Talvez tenha sido o impacto da saída abrupta de algumas pessoas do público, talvez apenas um dia menos inspirado, mas ficou a sensação de que, apesar do evidente talento, algo não encaixou completamente.

Decidi também sair um pouco mais cedo, não só porque o concerto já tinha mostrado tudo o que tinha para oferecer, mas também por receio de enfrentar novamente a frustração de ficar à porta do próximo espetáculo. Além disso, sabia o que vinha: aquele barulho bom que eu gosto. Os Hetta, diretamente do Montijo, já dispensam apresentações. Para quem gosta de hardcore, são obrigatórios. Para quem não gosta, o melhor é fugir enquanto pode, porque isto é pura violência sonora e física. Ainda assim, para meu espanto, este concerto não foi tão caótico como esperava, provavelmente por se tratar de um festival de showcase. Mas num espaço tão pequeno como o Barlos, um antigo centro comercial agora praticamente deserto exceto por uma teimosa loja de CBD à entrada, o cenário estava montado para uma verdadeira porradona brava. Para mim, foi perfeito.

Estava ali, na fila da frente, a ver o vocalista Alex Domingos a dar as suas cambalhotas, enquanto o resto da banda, João Pires (guitarra), João Portalegre (bateria) e Simão Simões (baixo), saltava loucamente. Os Hetta nunca falham, seja na entrega do som ou na energia ao vivo. Mas há algo que me intriga mais do que a sua performance impecável: como é que o cabelo do Alex Domingo está sempre perfeito? Se alguém souber o segredo, que me diga—é para um amigo, claro.

A nossa última paragem na estação de Barcelos foi a Discoteca Vaticano, onde nos esperava Julián Mayorga, um artista colombiano que parece saído diretamente de uma bad trip. Vestido com um fato multicolor hipnotizante e um par de braços extra cozidos no casaco, Julián trouxe ao palco algo que só posso descrever como a atuação de um extraterrestre latino a tocar música experimental comunista. Foi um espetáculo intrigante, mais visual do que propriamente musical. Entre pistolas alienígenas e capas estampadas com sapos vermelhos, o concerto prendeu-me pela teatralidade, mas a música em si… bem, não me conquistou.

Com a noite já avançada, fiz uma pausa estratégica para descansar antes do grande destaque seguinte: Unsafe Space Garden, uma das bandas mais interessantes do panorama português. Se tivesse de os descrever, diria que são o cruzamento entre Os Padrinhos Mágicos, Divertidamente e uma boa dose de LSD, e mesmo assim talvez não fizesse jus à sua excentricidade. Já os vi várias vezes e nunca deixam de surpreender, sendo que cada concerto oferece sempre uma experiência única.

Hetta. Fotografia: Lais Pereira
Hetta. Fotografia: Lais Pereira
Unsafe Space Garden. Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Unsafe Space Garden. Fotografia: Adriano Ferreira Borges

Mal entramos na sala, percebi que estava num universo à parte. Cartazes com mensagens da banda espalham-se pelo espaço, incluindo uma pérola que, apesar de cómica, nos relembra de manter os pés no chão: “Sabia que a vida não é uma merda?”. Musicalmente, encaixá-los num género é um desafio. Digamos que têm uma base de math rock psicadélico com um toque pop e tempos estranhos. Para os entendidos, gosto de chamar-lhe “música alternativa com uns tempos esquisitos e, de vez em quando, há gastalhada”. Quem sabe, sabe. A presença em palco foi, como sempre, irrepreensível. Desde os fatos personalizados à maquilhagem, tudo transporta o público para dentro do mundo da banda de Guimarães. Cada concerto deles é uma experiência imersiva, e para mim, é sempre uma espécie de terapia musical. 

Depois de muita dança, energia e distorção, o cansaço venceu. Era hora de recarregar baterias, porque os próximos dias prometiam ser ainda mais intensos e mais longos.

Dia 3 – 31 de Janeiro

A sexta-feira marcou o início do terceiro dia do Square Festival, desta vez em Famalicão. Com os dois dias anteriores recheados de programação incrível, a fasquia estava alta e a cidade tinha um desafio pela frente.

O dia começou no Café Concerto da Casa das Artes, com Mynda Guevara. A rapper lisboeta, que canta em crioulo, trouxe uma atuação que mais parecia um concerto de listas do secundário. Depois de ouvir o seu trabalho em casa, tinha alguma expectativa, mas a falta de energia e o clima abafado da sala fizeram-me perceber que o melhor plano era sair, apanhar um pouco do sol das 16h e refrescar-me com uma cerveja.

No fim, a audiência desceu as escadas para embarcar numa viagem improvável até à Eslováquia, cortesia de SJU. O conceito até tinha potencial, mas o concerto acabou por sofrer de um problema recorrente em muitos dos projetos deste festival: o esforço excessivo para ser quirky. Entre comentários do tipo “esta música é sobre gatos” ou “esta música é sobre pessoas que têm plantas porque a minha melhor amiga tem plantas”, o espetáculo tornava-se aleatoriamente absurdo, num esforço contínuo extremamente forçado de tentarem relacionar-se com a audiência. Além disso, dava para perceber que adorariam ter uma backing band, mas optaram por maximizar o uso do Ableton. Nada contra o digital, quando bem utilizado, mas chega um ponto em que ouvir bateria eletrónica e camadas de instrumentos pré-gravados torna a experiência um pouco cansativa. As músicas variavam entre hits e misses, e no final, o concerto ficou apenas na categoria do “ok”. Faltava-lhe substância.

SJU. Fotografia: Adriano Ferreira Borges
SJU. Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Verde Prato. Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Verde Prato. Fotografia: Adriano Ferreira Borges

Se o concerto anterior já me tinha deixado pouco entusiasmado, o seguinte não fez muito para mudar esse cenário. Verde Prato, artista basca, subiu ao palco do auditório da Fundação Cupertino de Miranda, um espaço com excelentes condições para concertos, mas que, infelizmente, acabou por acolher mais uma performance morna. Sozinha em palco, acompanhada apenas por uma batida e um sintetizador, Verde Prato dava a sensação de estar a construir algo, mas sem nunca chegar a lado nenhum. Como se estivesse a brincar com efeitos, esquecendo-se de que havia ali uma plateia de pelo menos 100 pessoas à espera de algo mais estruturado. Para mim, foi ainda mais desinteressante que o concerto anterior, mas, curiosamente, a audiência pareceu envolvida. Talvez seja eu o problema.

A minha sensação de desalinhamento com a programação do dia só se acentuou com o concerto seguinte. Planta Carnívora, rapper chilena, atuou no CRU, um bar que exala rock n’ roll e identidade famalicense. No entanto, o concerto foi um enigma difícil de decifrar: um espetáculo de rap que não sei bem como descrever. “Ao menos tem energia”, pensei, enquanto decidia dar um descanso aos ouvidos e apanhar ar lá fora. Mas nem tudo foi perdido neste dia. Finalmente, algo que me entusiasmava: Fidju Kitxora, um nome que já me tinha despertado curiosidade numa talk do primeiro dia sobre multiculturalidade. Durante essa conversa, ouvi que este senhor tem um gosto peculiar por caminhadas longas no deserto—estamos a falar de percursos de mais de 70 quilómetros sozinho.

O seu projeto musical mistura eletrónica com afro-house e funaná, o que, para mim, já era suficiente para estar presente. E que surpresa! Ouvindo agora em casa, não tem nem metade da força que apresentou em palco. Ao vivo, junta bateria e guitarra, tornando tudo muito mais pesado e ritmado. Uma verdadeira máquina de groove, daquelas que tanto dá para dançar como para simplesmente sentir a força da música. Este é que é o produto de caminhadas. Tenho que experimentar.

(Infelizmente, não consegui ver o concerto até ao fim, porque decidi embarcar numa missão paralela: ver um concerto do Sérgio Godinho fora do festival. Para surpresa de absolutamente ninguém, foi uma grande merda. Está muito velhinho o nosso Sérgio. Mais valia ter ficado a vibrar com Fidju Kitxora. O regresso ao festival foi mais demorado do que planeado. O concerto terminou tarde, e antes de voltar à maratona musical, ainda tive de fazer uma paragem estratégica para comer qualquer coisa.)

Fidju Kitxora. Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Fidju Kitxora. Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Huggen Luft. Fotografia: Sérgio Monteiro
Huggen Luft. Fotografia: Sérgio Monteiro

Voltei ao Square já depois da 1h da manhã para ver Huggen Luft, um projeto ucraniano que mistura IDM, EBM e noise. Ou seja, eletrónica intensa, uma guitarra ocasional e vocais hipnóticos. E que surpresa agradável! Para quem aprecia nomes como Chelsea Wolfe, Tricky ou Kraftwerk, este concerto foi ouro puro. A sala de cinema transformou-se num espaço perfeito para dançar e mergulhar no som denso e atmosférico que a banda trouxe. Um dos melhores momentos da noite.

A abertura do palco de música eletrónica ficou a cargo de De Schuurman, que teve a sua atuação desviada para o Braga Shopping em vez do Juno. A razão para o sucedido foi o Juno não ter capacidade para suportar a guinchadeira insuportável que este artista gosta de disparar a volumes desumanos. E ainda bem, porque o Juno não merece ser maltratado com isto. Este artista é mestre em fazer música de carrinhos de choque no volume máximo, e eu, que já estava na reta final da minha energia, encarei o concerto como um sinal divino para me retirar.

Dia 4 – 1 de Fevereiro

Chegamos ao último dia do Square! Hoje jogava em casa, e a programação estava insana: 28 concertos num só dia, com até cinco espetáculos a acontecer simultaneamente. Para navegar por este labirinto sonoro era preciso olho clínico, pés rápidos e um mapa mental detalhado da cidade. Felizmente, quem me acompanhou teve a sorte de ter ao lado um verdadeiro agente do rock, sempre pronto a traçar o melhor percurso entre palcos e tascos.

A jornada começou às 16h, e logo com um momento que ficará marcado no meu coração. Maggie Nicols, lenda do free jazz e mestre da improvisação vocal, apresentou-se no belíssimo Museu Nogueira da Silva, e eu estava curioso para ver como seria o espaço pois apenas tinha visitado o jardim, nunca o salão onde seria o concerto. Entro e deparo-me com um espaço iluminado por um imponente candelabro de cristal, onde repousava um piano majestoso. Sentada à sua frente, uma senhora de cabelos brancos, de postura elegante, calçando uns sapatos de sapateado que prometem algo especial.

Com mais de 70 anos, esta artista escocesa tem uma voz gigante e um espírito livre, sem medo de explorar o som em todas as suas formas. Ora sussurrava docemente, ora soltava gritos dignos ao estilo de Yoko Ono e, estranhamente, mesmo com tanto caos, aquilo tudo transmitia-me uma calma inexplicável. Era um concerto sobre libertação criativa, sobre apagar as barreiras mentais e simplesmente deixarmo-nos levar pelo som. E quando Maggie se levantou do piano, começou a fazer sapateado e a cantar, e foi nesse momento que percebi: este concerto era verdadeiramente especial.

Maggie Nicols. Fotografia: Lais Pereira
Maggie Nicols. Fotografia: Lais Pereira
George Silver. Fotografia: Inês Aleixo
George Silver. Fotografia: Inês Aleixo

Depois de um espetáculo tão arrebatador, a fasquia estava altíssima. Mas eis que a tocha passa para um projeto que ninguém pediu. Gato Sapato, um grupo de folk de comédia musical sem piada nenhuma. Para mim, quem faz músicas com rimas emparelhadas como “tito/copito/arrebito/fanico” devia andar com um distintivo para ninguém lhes passar um microfone. Pareciam uma versão pretensiosa e sem graça de um espetáculo do Somos Portugal. O melhor era seguir caminho.

A caminhada pelo coração da cidade levou-me ao mercado municipal, onde me deparei com George Silver. Sozinho em palco, manipula eletrónica e bateria como se estivesse a decifrar uma equação cósmica para a batida perfeita. À sua frente, uma mesa sobreposta à bateria, cheia de fios e botões, fez com que a sua performance pareça mais uma experiência laboratorial do que um concerto. Mesmo assim sentiu-se a falta de mais músicos. Seguiu-se Fantasmage, um duo punk rock espanhol que, sem rodeios, terá sido um dos pontos mais fracos do festival. Aviso para todos os aspirantes a punk rockers: só porque aprenderam três acordes, não significa que está na hora de formar uma banda e atirar-se de cabeça para os palcos. É só isso. Chegou então a hora sagrada do jantar. Uma pequena pausa para recarregar energias porque a noite prometia uma maratona de concertos. Precisava de estar bem desperto para a overdose de concertos que se seguia.

A segunda metade do dia arrancou com Maria Reis no Lustre, trazendo ao palco o seu mais recente disco, Suspiro….Tenho uma relação curiosa com os concertos dela: gosto dos discos, aprecio o trabalho em Pega Monstro, mas ao vivo há sempre algo que me incomoda. Talvez seja a estética do projeto, ainda mais vincada a solo, ou a sua presença algo distante, difícil de decifrar: será timidez, introspeção ou simplesmente o seu jeito natural? O que me faz mais confusão, no entanto, é a postura da banda, que transmite uma certa apatia, como se estivesse apenas a cumprir calendário. Senti que era hora de testar outro caminho e saí a meio do concerto para ver se ainda apanhava um pedaço de Quadra, que atuava no outro lado do centro da cidade, na sala de cinema do Braga Shopping. E que bem fiz.

A experiência foi quase cinematográfica: entrei na sala precisamente quando eles estavam a tocar um cover de “Paixão” dos Heróis do Mar. Apressadamente, atravessei a sala e meti-me na fila da frente, pronto para absorver toda a energia da banda bracarense. Apesar de alguns percalços técnicos, a atuação foi impecável e cheia de entrega. O mais notável? O contraste total com o concerto anterior. Aqui vê-se uma banda que está genuinamente a divertir-se em palco independentemente de tudo, e isso é altamente contagiante.

Maria Reis. Fotografia: Inês Aleixo
Maria Reis. Fotografia: Inês Aleixo
Ale Hop. Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Ale Hop. Fotografia: Adriano Ferreira Borges

Agora, chegava o momento de tomar uma decisão difícil. O festival entrava no seu ponto de saturação máxima, com cinco concertos a acontecer em simultâneo. Felizmente, o trabalho de casa estava feito e a escolha recaiu sobre um espaço ainda desconhecido: o SOMA. Este novo templo da música ao vivo ainda não abriu portas oficialmente, mas já deu para perceber que promete. A noite seguiu com Ricardo Martins, um baterista com um currículo impressionante, passando por projetos como Pop Dell’Arte, PAPAYA e Adorno. Aqui sim, fazia sentido um artista a solo acompanhado apenas pela eletrónica e pelo seu instrumento. Ele era o espetáculo! Carismático, entregue e hipnotizante, transformou a bateria numa entidade viva, manipulando o som com efeitos eletrónicos e um microfone que balançava inquieto no meio da tempestade rítmica. Eu estava deslumbrado com este concerto.

Depois do deleite rítmico, veio um pesadelo norueguês chamado Psudoku. Durante boa parte do tempo, o músico esteve mais preocupado em queixar-se dos pedais ao técnico de som do que em tocar, coisas de malta do prog. O projeto, alegadamente de grind progressivo, parecia apenas um homem em crise existencial a castigar uma guitarra com velocidade absurda. Assim tivemos a insatisfação de ouvir barulho desconcertante, onde a guitarra gritava mais alto do que qualquer outro elemento da banda. Confesso que não percebi bem o objetivo – e talvez nem ele.

Felizmente, depois deste ataque sonoro sem rumo, chegou a recompensa: Ale Hop, artista peruana de música experimental que, já às 1h30 da manhã, nos ofereceu exatamente o tipo de desconstrução musical que eu adoro. Se há algo que me fascina na música experimental é a forma como os músicos desafiam o próprio conceito dos seus instrumentos. E foi isso que Ale Hop fez. Com a guitarra pousada sobre as pernas, batia-lhe como se fosse um tambor, explorando os sons mais inesperados e levando-nos a um transe sonoro. Explosões repentinas, silêncios carregados e texturas desconcertantes, tudo sem uma estrutura definida, mas com um magnetismo absoluto. Perguntaram-me como é que consigo gostar disto. Porque me fascina a forma como se chega a estes sons. Há um momento na vida de um músico em que ele já domina tanto o seu instrumento que decide virá-lo do avesso e desafiar as regras. E eu cá estarei para ouvir. Com um fecho tão imersivo no SOMA, restava apenas o último destino: o Braga Shopping, onde o festival se despedia com os DJ sets de Noia e DJ Fucci. A pista estava ao rubro, mas para tristeza da audiência, a festa teve de acabar às 4h da manhã, quando ainda havia energia para mais umas horas.

O rescaldo

O Square, apesar de ter sido ligeiramente prejudicado pela falta de energia da audiência, que muitas vezes parecia mais preocupada com negócios do que em viver os concertos, conseguiu compensar com uma programação tão diversa que havia sempre algo para agradar a todos os tipos de público, desde quem prefere ver um concerto sentadinho até quem gosta de se perder numa pista de dança. A oferta cultural foi extremamente rica, a ponto de se tornar difícil acompanhar tudo. Além disso, a estrutura do evento proporcionou uma experiência única de passeio pelas cidades, permitindo que a música e a arte se cruzassem com a vida urbana de Braga, Guimarães, Barcelos e Famalicão de uma forma muito orgânica. Foi uma primeira edição ambiciosa, com uma produção invejável, que acertou em cheio na forma como trouxe cultura para perto das pessoas e transformou o Norte num grande circuito musical. O Square já mostrou ao que veio, agora é só fazer mais, porque este festival tem tudo para crescer e se enraizar como um marco cultural.

Filho do rock, do doom e de todos os géneros musicais que nos façam abanar as ancas e a cabeça, reside em Braga onde estuda engenharia. Poderão encontrá-lo em qualquer cave onde haja barulho e em qualquer local onde haja cerveja a preços abaixo da média.

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