O melhor concerto da minha vida: Godspeed You! Black Emperor

Ultimamente, tenho dado por mim a ser demasiado exigente com concertos. Não sei exatamente quando comecei com esses pensamentos, mas suspeito que seja uma consequência natural da frequência com que assisto a espetáculos. Desde palcos de bares pitorescos com o som mais horrendo possível, até a salas de espectáculos com acústica calculada ao milímetro, eu meto os pés onde for preciso para ouvir música ao vivo. A questão é que, hoje em dia, já não basta haver barulho para me convencer.Além disso, e talvez mais preocupante, desenvolvi um gosto pessoal mais apurado e uma veia crítica que, por vezes (sim, admito), roçará no exagero. Ainda me lembro da minha inocência, quando todas as bandas de grindcore que via ao vivo me pareciam incríveis e bastava vir um tupa tupa de uma bateria para eu abrir um moshpit. Agora, dou por mim a questionar tudo. Por mais que tente desligar o botão da análise, é mais forte do que eu. Não consigo.

Porém, a maior traição ao meu passado talvez seja outra: aprendi a gostar de ver concertos sentados. O meu eu de 17 anos teria um enfarte ao ouvir isto. Não me interpretem mal. Ainda há muitos momentos em que me atiro de cabeça para o meio da confusão, mas agora é preciso que a banda mereça mesmo. Talvez esteja apenas a ficar velho. Mas seja qual for a razão, há uma coisa que continua a ser verdade: um concerto verdadeiramente bom continua a ter o poder de me arrepiar, e agora mais do que nunca. Só que, agora, esse poder já não surge da mínima coisa – é uma busca constante. No dia 3 de março, fui ao encontro de um concerto que não foi apenas um arrepio. Foi um enorme estrondo. Na Casa da Música, no Porto, assisti ao melhor concerto da minha vida: o regresso a Portugal dos Godspeed You! Black Emperor.

Mal vi que os GY!BE iam regressar a Portugal em outubro de 2024, comprei imediatamente dois bilhetes sem consultar ninguém e liguei à minha companheira a  avisá-la do concerto e que não precisava de se preocupar, porque já tinha tratado de tudo. Não foi apenas pela banda em si, mas pela combinação perfeita entre um som impecável e a melhor sala de concertos do país.

Os Godspeed You! Black Emperor são daquelas bandas com que tenho uma relação que se construiu com o tempo. Em primeiro, porque quando era mais novo, não percebia muito da sua música. Não tinha o attention span necessário para ouvir instrumentais de 20 minutos. Contudo, forçava-me a ouvir na esperança de vir a conseguir desenvolver o meu gosto o suficiente para gostar da música estranha dos GY!BE.

Fotografia: Pedro Roque
Fotografia: Pedro Roque

Para ser sincero, comecei a ouvir GY!BE porque achava que eram uma banda de black metal (podem gozar comigo, vá). Não há bem uma explicação lógica para este mal entendido, simplesmente associei automaticamente a bandas que ouvia naquela altura, especificamente os Emperor. Além disso, nunca percorri a discografia completa da banda, apesar de não ser por falta de esforço. Como os álbuns da banda canadiana são longos, densos e repletos de camadas, preciso de vários meses a ouvir o mesmo disco para extrair tudo o que ele tem para oferecer. Talvez por isso exista uma certa idealização: mesmo sem conhecer tudo, sempre que oiço mais um disco de fio a pavio, soa sempre perfeito.

Mesmo assim, a minha preparação para o concerto, nos dias que o antecederam, foi mínima. Limitei-me a revisitar o álbum mais aclamado da banda, Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven, e a ouvir novamente o mais recente longa-duração da banda, No Title as of 13 February 2024, 28,340 Dead”, um dos meus favoritos de 2024 e uma poderosa manifestação de protesto contra as atrocidades praticadas por Israel na Palestina (se em fevereiro de 2024 o número era de 28 340 mortos, neste momento é acima de 50 000, com cerca de 48 000 deles a serem palestinianos). A digressão que os trouxe até ao Porto e a Lisboa (à Music Station) no início de março é no âmbito deste último lançamento.

Os Godspeed You! Black Emperor são uma banda canadiana independente liderada por Efrim Menuck (guitarra, tape loops) e que conta com as contribuições de Mauro Pezzente (baixo), Mike Moya (guitarra), Thierry Amar (contrabaixo), David Bryant (guitarra, tape loops), Aidan Girt (bateria), Timothy Herzog (percussão) e Sophie Trudeau (violino). Além de uma panóplia de músicos brilhantes, a atuação conta ainda com Karl Lemieux e Philippe Léonard a cuidarem das projeções visuais possíveis de ver ao longo da atuação.

Quando entrei na sala cheia, a expectativa era elevadíssima. A antecipação era palpável, e a energia no ar parecia carregar um peso especial. No entanto, em vez da explosão sonora imediata que esperava, o palco recebeu apenas um homem solitário de guitarra em punho. Não sabia que iria haver um opening act, mas fiquei muito feliz por esta guloseima inesperada. Mais tarde, vim a descobrir que se tratava de Mat Ball, guitarrista dos (também canadianos) BIG|BRAVE.

Mat Ball presenteou o público com uma sessão intensa de guitarradas ruidosas, entrecortadas por notas melódicas subtis, como se oferecesse pequenos momentos de fôlego no meio de uma tempestade elétrica. Embora fosse uma sessão de noise com elementos melódicos, todos os sons pareciam fazer sentido e não havia maneira de não ficar maravilhado com isto. O que fará ele no fim desta descarga emocional na guitarra? Chora? Bebe uma cerveja e ri-se da vida? Durante 40 minutos, despejou uma descarga emocional crua e eletrizante, prendendo a atenção da plateia sem necessidade de palavras. Não havia pressa, não havia compromissos com estruturas convencionais. Apenas som, textura, presença.

Vinte minutos após o término do concerto de abertura, entraram em palco os Godspeed You! Black Emperor, prontos para elevar o público ainda mais após o trabalho exímio de Mat Ball. Durante todo o espetáculo, não disseram uma única palavra em palco. Deixaram que os instrumentos e as imagens falassem por si.

Mesmo antes da banda entrar, já o palco transmitia uma aura intensa, com mensagens fortes e rasgadas que não deixam dúvidas sobre os seus posicionamentos políticos e sociais e as frases “Transphobes eat shit and die alone” e “Palestine Action” evidenciando a essência de revolta do grupo.

Nunca tinha assistido a algo como este concerto dos GY!BE. Foi um espetáculo longo, quase duas horas de música intensa, que me fez absorver emoções profundas sem que uma única palavra fosse dita. As canções transportaram-me para ambientes de tristeza. Porém, não se tratava de uma tristeza passiva. Era uma tristeza revoltada, indignada com o estado do mundo e com a miséria que o atravessa. Ao mesmo tempo, há uma luz de esperança que se infiltra nas composições. As projeções passadas guiaram-me na jornada do concerto, mas sem criar limitações. Seria possível olhar para a jornada tanto como uma perspetiva de crítica social como de descoberta pessoal, mantendo sempre o foco principal na inquietação.

Fotografia: Pedro Roque
Fotografia: Pedro Roque

A música dos GY!BE chega a ser brutalista, mas chamá-la “pesada” seria inadequado. As guitarras rugem como se a própria terra tremesse sob os pés. Os violinos gritam lamentos distorcidos que parecem atravessar o tempo. A percussão ressoa como um coração descompassado prestes a explodir. Tudo se desenrola com uma paciência cruel, como se a música se recusasse a ceder a qualquer urgência que não fosse a sua própria verdade. É música que respira, que cresce diante de nós, que nos envolve sem pressa e depois nos engole por inteiro. Na Casa da Música, o que presenciei foi um testemunho puro do que a música pode ser. A sua capacidade de nos fazer sentir e, acima de tudo, de nos recordar o papel essencial da arte no mundo. No mais recente álbum da banda, canções com títulos impactantes e bastante literais como “Raindrops Cast in Lead”, “Pale Spectator Takes Photographs” ou “Sun is a Hole Sun is Vapors” pintam quadros vívidos na nossa mente do genocídio a acontecer em Gaza.

É difícil mencionar um clímax no concerto porque foi tão perfeito como um todo que se torna  complicado realçar momentos específicos. No entanto, o que se destacou foi a capacidade daqueles grandes músicos elevarem músicas que em estúdio já eram perfeitas a um patamar musical que nem sabia ser humanamente possível. Numa sala que proporcionava a perfeição acústica, podia facilmente prestar atenção a cada instrumento isoladamente e ser engolido pela muralha sonora deste ensemble.

Entrei na casa da música às 20h e saí já eram quase 23h, ainda a processar tudo o que tinha acabado de experienciar. O impacto daquele concerto não se dissipou com a última nota. Pelo contrário. Parecia expandir-se dentro de mim, reverberando como um eco interminável. No dia seguinte, o arrepio ainda estava lá. Senti-me esmagado e, ao mesmo tempo, elevado. Havia algo de brutal na forma como os Godspeed You! Black Emperor nos confrontaram com o estado do mundo, mas também algo de profundamente humano na forma como nos deram espaço para sentir, interpretar e encontrar significado naquilo tudo.

Ao longo dos dias seguintes, dei por mim a revisitar mentalmente cada momento, cada crescendo, cada imagem projetada. Mesmo ouvindo as músicas em casa, na esperança de reviver o concerto, os sons escutados na Casa da Música continuavam a soar dentro de mim, como se se recusassem a serem apenas uma memória.

Filho do rock, do doom e de todos os géneros musicais que nos façam abanar as ancas e a cabeça, reside em Braga onde estuda engenharia. Poderão encontrá-lo em qualquer cave onde haja barulho e em qualquer local onde haja cerveja a preços abaixo da média.

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