“A cantiga é uma arma”, cantava o GAC, Grupo de Acção Cultural – Vozes na Luta, em 1975. A canção, escrita por José Mário Branco, é a declaração definitiva daquilo que foi o papel da música na Revolução dos Cravos.
Se ainda se luta por cumprir Abril, a memória de canções como esta – assim como “Depois do Adeus”, canção de Paulo de Carvalho que venceu o Festival da Canção de 1974 e tornou-se senha da Revolução, ou, claro está, “Grândola, Vila Morena” de Zeca Afonso, entre outras tantas (e nunca esquecer o papel que as canções independentistas africanas tiveram na história de Abril) – é vital para que o espírito de combate revolucionário se torne “permanente” e não apenas uma exceção, como explicou o investigador António Brito Guterres numa crónica publicada no Diário de Notícias.
Trabalhos recentes como Bem Bonda (2021), de Criatura, 2 de abril (2022), d’A Garota Não, ou Prétu 1 – Xei di Kor (2023), de Prétu (o mais recente alter-ego de Xullaji), mantêm viva a ideia do GAC. Estas obras, apesar das suas sonoridades díspares, servem como contraproposta ao pensamento individualista vigente e operam com o intuito de, como referiu recentemente Prétu ao Rimas e Batidas, unirem “as pessoas contra esta ideia universalizada de ódio”.
O pensamento de Prétu aponta, como muita da obra de Xullaji, em direção a um ideal comunitário, onde é possível que, dentro do mesmo sítio, pessoas de “vários backgrounds” se cruzem num momento de “união e aceitação”. Isto é o que Luísa Cativo, DJ e ativista portuense, tem a dizer sobre como a cultura noturna e o clubbing podem funcionar como instrumento para criar “pontos de contacto para possível consciencialização do público para o contexto político que estamos a viver neste momento”. Mas será possível que a noite seja mesmo uma arma?
A noite como arma nas grandes cidades
Quando o relógio bateu na meia-noite de quarta (24) para quinta-feira (25), já a pista de dança do Hard Club se tinha transformado num átomo em movimento. Corpos singulares bailavam lado-a-lado, suor pingava pelo chão, o som da batida ecoava pelos cantos da sala de espetáculos portuense. Era a Rave da Liberdade a fervilhar.
O evento, uma produção do Hard Club com curadoria de Luísa Cativo, serve como mote para algo que a DJ tem cultivado ao longo da sua carreira. Desde os seus tempos como uma das responsáveis pelas emblemáticas festas Thug Unicorn que, como a Timeout recentemente lembrou, materializaram a “cultura do Tumblr” na “vida real” em “meados da década passada”, que Cativo se tem dedicado a usar o clubbing como ferramenta para tentar incitar um pensamento comunitário nos públicos e coletividades com que entra em contacto. A Rave da Liberdade é mais uma entrada no seu portfólio onde a música eletrónica e a luta revolucionária andam de braço dado há mais de uma década.
Mas porquê só agora? Luísa Cativo explica. A Rave da Liberdade é, simultaneamente, uma proposta diferente para se celebrar a liberdade e os 50 anos da Revolução de Abril (em Lisboa, a proposta do Musicbox para a noite de 25 de abril com curadoria da BANTUMEN e de Tristany Mundu apontou na mesma direção), e um momento para tentar consciencializar o público da noite do Porto para o “contexto político” que se vive em Portugal, refere a DJ portuense. “Vamos celebrar 50 anos de Abril com um governo de direita e 50 deputados eleitos de um partido de extrema-direita”, indica Cativo.
O resultado das eleições legislativas do passado dia 10 de março serviu como a derradeira confirmação de algo que já se sentia no nosso país há um bom par de anos. Portugal, como muitos países da Europa e do Ocidente, não é imune ao discurso populista de uma extrema-direita ágil, tanto em termos de comunicação como de financiamento. A proposta de Cativo com a sua Rave da Liberdade é tentar criar (novos) canais de comunicação para que um discurso progressista, de união e de tolerância chegue a mais pessoas. O clubbing e a noite são as formas que lhe são mais “próximas” para isso, mas a DJ refere que é “importante haver iniciativas em todas as frentes sociais” para que estes ideais cheguem às pessoas de outra maneira.
O Coletivo Sarilho marcou presença na Rave da Liberdade. Apesar da sua ainda breve existência – o coletivo surgiu em meados de 2023 –, este conjunto de jovens tem utilizado a sua plataforma para revitalizar o espaço noturno do Porto.
“No pós-pandemia, tem havido muita confusão na noite do Porto”, refere o coletivo. “Há uma mescla de ofertas culturais que parecem não resistir ao tempo”, indicam.
A pista dada pelo Coletivo Sarilho aponta para como a cultura noturna do Porto evoluiu nos tempos recentes. Por um lado, como a gentrificação selvagem da cidade tem levado ao encerramento de cada vez mais espaços culturais (o fecho do Café au Lait é o mais recente exemplo disso), empurrando agentes culturais e coletivos independentes para cada vez mais longe do centro; por outro, como os “resistentes” se relacionam com a cultura noturna de uma grande cidade como o Porto nos dias de hoje.
Em comparação com a altura em que organizava a Thug Unicorn, Luísa Cativo fala de uma mudança “recente” em muitos espaços do Porto e Lisboa face à politização desses locais. “Quando comecei com a Thug Unicorn [em 2012], não havia propriamente espaço para esse discurso”, lembra a DJ. “Havia a GRRRL Riot e pouco mais”, refere. “Na altura, a Thug Unicorn era menosprezada por causa disso”, conta. “Era olhada de lado e diziam que era uma festa de gajas”, assinala.
Atualmente, Cativo refere que, apesar das mudanças de discurso, é preciso ter cuidado com o simulacro performativo dessa alteração. “Acho que essa troca de discurso é mais estética do que propriamente por consciência política”, refere a DJ.
Daniel Duque, editor e diretor d’A Cabine, publicação portuguesa dedicada à música eletrónica, vive atualmente no Porto e conta como sente que, nos clubs da cidade Invicta, é “preciso mais do que um papel à entrada a apelar à não-discriminação”. “Há muita discriminação na cidade e poucos agentes do clubbing portuense promovem a importância da criação de espaços seguros”, conta, indicando o Planeta Manas, em Lisboa, as Ácida, no Porto, e festas interseccionais como a Dengo Club, organizada pelo DJ Saint Caboclo, como exemplos de boas práticas para a criação de espaços seguros.
“Muitas pessoas estão só interessadas em fazer com que elas e as pessoas à sua volta façam dinheiro”, relata Cativo sobre o circuito noturno em Portugal. Este é um sentimento partilhado por Rafael Henrique Victório, mais conhecido como Farofa, DJ, investigador musical, seletor, curador e produtor cultural brasileiro radicado no Porto desde 2014. É ele o responsável pela organização de festas como Kebraku, Batidão Baile Funk ou Juycy, e um dos principais agentes culturais responsáveis pelos elos criados entre a noite da Invicta e as comunidades de imigrantes da cidade.
Farofa, tal como Luísa e Daniel, indica que, apesar de algumas mudanças, a evolução que tem visto na politização da noite da cidade do Porto é “lenta”. “Muita da força política nova que ajuda a cidade a movimentar-se com mais força vem de trabalhos artísticos de imigrantes, que são ainda muito precários”, refere Farofa. “Depois, essas mesmas comunidades vêem a sua cultura ser instrumentalizada para gerar mais capital para locais que já têm dinheiro e privilégio”, assinala o DJ.
“Entender o clubbing como uma filosofia em que cada música tocada e cada festa organizada por uma minoria é uma história que deixamos tatuada na cidade irá tornar a luta mais fácil no futuro”, opina Farofa. Para isso, contudo, é necessário repensar como muitos destes espaços operam, refere Cativo. “As pessoas que pensam no clubbing de forma orientada para o lucro são as pessoas que fazem gatekeeping da própria cultura”, indica a DJ. “Isso acaba por estagnar a cultura porque faz com que não existam os recursos necessários para podermos expandi-la de forma saudável”, conclui.
“Este paradigma, naturalmente, dificulta a instrumentalização coesa do fenómeno e os próprios grupos de intervenientes diretos facilmente se deixam levar pela mesma voracidade capitalista que dizem combater”, refere o Coletivo Sarilho.
“A gentrificação trouxe-nos até uma comunidade mais esparsa”, refere Daniel Duque. Do mesmo lado da moeda, Farofa relata como a “gentrificação acelera e vem destruir e suprimir com mais força principalmente as minorias que vivem na cidade e são particularmente afetadas por esse processo”. “A questão do direito ao centro urbano é um assunto no qual nenhuma cidade quer entrar a fundo porque elas focam-se no dinheiro e no lucro e não nas pessoas que aqui vivem”, conclui o DJ.
É essa devoção ao grande capital por parte do espaço das cidades, onde os clubs tradicionais praticam preços cada vez mais caros, que torna complicado que o espaço noturno de cidades como o Porto ou Lisboa se tornem espaços de libertação seguros, onde o ethos progressista do clubbing possa singrar.
“Nos clubes caros, nas festas da moda ou até nos espaços centrais, será muito difícil haver espaço para a liberdade que se gostaria de ver e sentir”, refere Daniel Duque. “Enquanto assim for, será difícil passar da vontade para a prática”, conclui o Coletivo Sarilho. Portanto, que alternativas surgem a este paradigma?
A noite como arma fora dos grandes centros urbanos?
Num ensaio publicado na revista de crítica esquerdista norte-americana The Baffler, o escritor e cineasta Hubert Adjei-Kontoh questionava a relação da música de dança e da cultura noturna com uma economia e cultura de base capitalista e individualista. A dado ponto, escreve mesmo: “Não se ajuda ninguém ao fingir-se que dançar num clube caríssimo nos vai levar à revolução”.
Hubert, natural dos Estados Unidos da América, país onde as comunidades negras edificaram estilos como a disco, a house ou o techno, banda sonora de eleição de muitos clubs em Portugal e de muitas festas assinadas com selo de gentrificação™, justifica o seu cinismo dizendo que “tentar cortar a ligação entre arte e política é uma tolice, mas tentar ligar a arte de forma tão próxima com a luta política que esta se torna apenas materialista também o é”.
Aquilo que Hubert apresenta é uma tese semelhante às conclusões tecidas por vários dos elementos que operam na cena do clubbing citadino português. Talvez o problema tenha surgido logo ao início. Como Cativo refere, a cultura de clubbing em Portugal surgiu como “importação da burguesia” e, portanto, chegou ao país “já com as raízes algo turvas”. Não é à toa, portanto, que, em cidades como o Porto e Lisboa, onde existe mais capital a circular, existam agentes culturais interessados em monopolizar estas cidades (veja-se, por exemplo, a marca Porto. criada por Rui Moreira e o seu executivo), empurrando coletivos independentes para as suas periferias ou, noutros casos, para outros locais do país.
Em 2020, logo após o início do confinamento, Johnny Gil, produtor e programador cultural e músico, decidiu abandonar Lisboa após 12 anos a viver na capital e regressar a Cadima, freguesia localizada no município de Cantanhede, no distrito de Coimbra, terra dos seus avós. Aí, ele e “mais alguma malta”, edificaram aquilo que hoje é a Associação Cultural Lúcia-Lima, da qual é presidente e cujo mote é “descentralizar” de forma “auto-sustentável” através da criação de uma programação multidisciplinar e transversal a múltiplos setores da cultura.
Com a chegada da pandemia e a total paragem da atividade cultural, Johnny foi um dos muitos “artistas, programadores, produtores e técnicos” que se viram forçados a abandonar Lisboa devido ao impacto da “gentrificação completamente selvagem”. Afinal, como era possível continuar a viver em Lisboa com a ausência total de rendimentos tendo em conta o custo de vida na cidade?
As coisas não melhoraram. Em 2024, Lisboa é uma das cidades mais caras da Europa. Recentemente, o valor de renda média na cidade era 1700€, enquanto que o salário mínimo atualmente em vigor em Portugal é de 820€ e o salário médio no final de 2023 era de 1505€. Para agentes culturais, tendo em conta a precariedade e falta de apoios ao setor, o cenário não é um de facilidades. O abandono das grandes cidades surge assim como a opção derradeira para estes criativos. “Conheço dezenas de pessoas que foram obrigadas a sair de Lisboa e foram forçadas a voltar para as suas terras ou para sítios onde é possível criar coisas, mesmo com todas as dificuldades que isso envolve”, indica Johnny.
A Associação Cultural Lúcia-Lima é uma de muitas associações ou coletivos que surgiram nos últimos anos como tentativa de criar focos de resistência, conciliando isso com uma tentativa de democratização da cultura através da criação de um “novo circuito a nível nacional”. Exemplos são locais como Fafe, com a Malfeito, Espinho com o coletivo Salitre, Beja, com as festas Química, Guimarães, com o festival Mucho Flow (organizado pela Revolve), Braga, com o festival semibreve ou as Dark Sessions, Cartaxo, com as Cartaxo Sessions, Barreiro com o trabalho desenvolvido pela OUT:RA ou Hey, Pachuco!, múltiplas iniciativas na cidade de Coimbra como a Volúpia ou o Festival Apura, Ourém com o trabalho feito pela Albardeira Associação Cultural, Covilhã com o trabalho desenvolvido por editoras como a Ovelha Trax, Cem Soldos com o já estabelecido Bons Sons.
Como estes, há muitos outros – demasiados para enumerar numa só reportagem. Contudo, se os desafios num local como Lisboa ou Porto já são enormes, quando “escapamos” para este Portugal de “margem”, como diriam os Glockenwise, são ainda maiores. Em Cadima, Johnny Gil fala de “desafios gigantes”, ligados à falta de apoios – além da falta de apoios do Estado, a incorreta distribuição dos apoios das autarquias é referida como outra barreira – e à demografia da localidade. “Não há fixação de jovens e a população está profundamente envelhecida”, reflete Johnny. É por isso que a comunicação e as atividades realizadas pela associação têm isso em conta. Há muita comunicação feita diretamente com a população, ao invés de se cingir apenas ao mundo online, e as atividades são planeadas para “todas as faixas etárias, desde os mais novos até à geração mais sénior”.
Em Espinho, o coletivo Salitre, cuja criação foi inspirada pelo trabalho desenvolvido pela Lúcia-Lima, fala de como o seu maior desafio é a criação “de hábitos de consumo de música ao vivo na cidade”. Johnny Gil indica que a Lúcia-Lima tem perante si também esse desafio. “Não foi feita a pedagogia cultural de criar o hábito de ir a uma peça de teatro ou ir a um concerto”, indica. “Aquilo a que assisto agora é o mesmo a que assisti quando era mais novo – a valorização cultural continua a não existir”, refere Johnny.
A experiência do quão pouco mudou com a passagem do tempo não é única a Johnny e a Cadima. João Martins, músico em projetos como Summer of Hate ou Os Overdoses e membro do coletivo Salitre, conta como a cena cultural da cidade de Espinho estagnou ao longo das duas últimas décadas. “Desde o início do século que Espinho deixou de ter cultura de concerto ao ponto de, apesar de sabermos que há pessoas que gostam de música ao vivo, ser muito difícil arrastar público para ver concertos”, refere.
Todavia, os eventos organizados pelo Salitre em Espinho suscitaram curiosidade. O coletivo conta que, como são os únicos na cidade a oferecer “propostas alternativas” à população, contam com regularmente mais de 100 pessoas nos seus eventos. “Tentamos trazer a Espinho projetos que, se não fossemos nós, dificilmente passariam pela cidade”, indica o coletivo.
Este esforço coletivo para descentralizar é reforçado por Bernardo Matos, DJ e radialista ligade a iniciativas como o Palco RUC ou Festival Apura, em Coimbra. “A descentralização é a vontade de fazer as coisas acontecerem para além dos grandes centros urbanos e tem de ser movida por um esforço coletivo, pois depende de vários fatores e de vários intervenientes”, refere, acrescentando que “o que acaba por acontecer nestes locais é que as estruturas e o poder local não nos levam a sério e desconsideram totalmente o nosso trabalho por se tratar de cultura noturna. O estigma é real e temos que batalhar muito para realizar os projetos que queremos.”
Esta espécie de “conservadorismo”, como lhe chama Daniel Duque, é outra das barreiras que estes coletivos enfrentam. Como Farofa relembra, “festa é cultura, noite é cultura, música é cultura, clubbing é cultura”. Muitas vezes, a cultura da noite não é vista com bons olhos, mas, opina Luísa Cativo, quando chega a estes locais pode funcionar como catarse para “estimular” curiosidade em públicos cuja oferta cultural, na maioria do ano, se resume a dois ou três momentos pontuais e cuja exposição nesses momentos não é a propostas desafiantes que possam estimular o pensamento crítico.
No entanto, a DJ portuense refere que, apesar das contribuições vitais destes locais independentes para a vida cultural das suas localidades, os meios conferidos para que estes possam dar o seu contributo “são muito poucochinhos”. “Grande parte dos apoios e patrocínios vão para eventos que tornam cada vez mais a música num produto”, refere, acrescentando que “se não existem apoios da parte do Estado para a cultura e se não há salários dignos nem a mínima tentativa de tentar resolver a crise imobiliária, as coisas só irão piorar cada vez mais.É uma pescadinha de rabo na boca.”
A noite é uma arma?
Jodi Dean, teórica política norte-americana, diz que a utilização do termo “resistência” é, por si só, “uma derrota” (é por isso que tentamos evitar usá-lo nesta peça). Dean justifica a sua opção dizendo que a utilização da expressão “concede o terreno da luta, como se o que temos fosse o suficiente, como se isso fosse adequado, como se manter o status quo fosse possível sob o capitalismo e as mudanças climáticas.”
Se neste momento estamos a assistir à degradação a olhos vistos da superestrutura, como lhe chamaria Marx, regida pela devoção ao capital, podemos pensar, tendo em conta tudo o que foi dito, que estes locais não são locais e entidades de resistência (apesar de, certa forma, o serem). São, sim, locais e entidades que tentam construir uma alternativa às estruturas do Estado regidas pelo pensamento neoliberal e dinamizar as comunidades em seu redor para momentos de “união e aceitação” coletivas, como dizia Luísa Cativo no início desta reportagem.
Para Bernardo, a existência destes locais demonstra “uma tentativa de construção de comunidades que acolhem todes aqueles que a cidade”, neste caso de Coimbra, “esqueceu e pôs de lado”, refere. Por outras palavras, a existência destes locais serve para recuperar o controlo da vida noturna da cidade, conferindo uma nova “humanidade” ao “clubbing e à cultura noturna, porque o seu lado mais humano, político e social foi completamente destruído em prol do lucro”, indica Cativo. No limite, todo este exercício é uma tentativa de recuperar a nossa própria humanidade sem ficarmos presos aos campos de combate ditos “tradicionais” do pensamento progressista.
“Temos que pensar e agir para além da efemeridade da pista de dança”, indica Bernardo. “Entender a consciência de classe, de cultura e de festa através desses atos é importantíssimo”, acrescenta Farofa. É assim que nascem coisas bonitas e recheadas de esperança como os eventos organizados pelo Salitre. “Nos nossos eventos, através do convívio, da dança e da curiosidade, o público está a fazer agenciamento político sem se aperceber”, refere o coletivo. “E fazemo-lo com preços acessíveis, propostas arrojadas, fidelização de público, espaços seguros para todes”, acrescenta.
Estes momentos ténues de esperança conferem “ânimo”, refere Johnny Gil. Apesar de todos os obstáculos e da lentidão do processo – uma revolução não se faz num dia –, uma associação como a Lúcia-Lima ou um coletivo como o Salitre existe porque tem o ímpeto de criar uma alternativa sustentável ao sistema vigente. Com ou sem apoios, vão continuar a existir e a dar o melhor de si, muitas vezes trabalhando em conjunto para criar uma rede comunitária que trabalha em prol de “união, coletivismo e abraços”, como indica o coletivo Sarilho.
“De certa forma, trata-se de combater a gentrificação com a fomentação de comunidade de tal forma que não precisamos de chamar as carteiras fartas de quem só está de passagem e podemos depender de quem por cá vive e, consequentemente, esperemos nós, de quem por cá luta”, acrescenta o coletivo portuense. A dependência das comunidades locais, em si estimuladas por estes novos focos, é o objetivo final para um ímpeto para uma revolução cultural do qual a cultura noturna pode muito bem fazer parte. “Essas novas ideias, coletividades, associações, espaços, que estão a ser criadas neste país são efetivamente a alternativa àquilo, à selva que se está a passar nas grandes cidades”, conclui Johnny Gil.
Um sincero obrigada a todes aqueles que contribuíram para a criação deste artigo. Um obrigado ainda maior à Luísa Cativo por ter agilizado grande parte destes contactos e pela conversa que deu origem à ideia para esta peça.