Quase a completar um ano desde que Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo lançaram Música do Esquecimento, um disco que ainda podemos considerar o mais recente da banda paulista, Sophia Chablau (voz, guitarra), Téo Serson (baixo), Theo Ceccato (voz, bateria) e Vicente Tassara (voz, guitarra, teclas) vieram a Portugal apresentá-lo. Primeiro, em Lisboa, no Musicbox, numa casa a meio-gás mas com muito amor para dar, e depois no Porto, na Socorro, perante uma casa cheia pronta a celebrar estas cantigas carregadas de emoção.
Depois de, em 2021, terem divulgado o seu álbum homónimo Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, os jovens paulistas apresentam-nos em Música do Esquecimento um disco coeso e pensado através de um novo mundo metafísico centrado na busca incessante da palavra certa, “toda palavra carrega, destrói, recria”, como se escuta na canção “No príncipio era o Verbo”.
No entanto, bastaram apenas algumas palavras para Sophia Chablau E Uma Enorme Perda de Tempo, com a ajuda na produção do pianista e compositor Vitor Araújo e de Ana Frango Elétrico, nos tocarem com a sua palavra e melodias, reafirmando a sua identidade musical distinta. A essencia pubescente do grupo perdura através das tématicas da religião, sexo e amor, que são depois combinadas com timbres, ora experimentais e ruidoso, ora com melodias mesticulosas, orquestrais e ornamentadas.
A malha “Segredo”, lançada de antemão como single, é exemplo disso. Além de ilustrar a intensidade do que é ser jovem nos dias que correm, os versos e o poder de cada palavra “Mas se você quiser / eu viro um segredo seu / não faço barulho nem chamo atenção / de ninguém” corrompem as barreiras linguísticas. Não só porque exaltam as vivências de muitos ouvintes LGBTQIA+, mas também porque conseguem captar a atenção de plataformas internacionais de música alternativa. Os Gorillaz, por exemplo, adicionaram “Segredo” à sua playlist semanal onde destacam artistas emergentes, ou, quando o grupo foi considerado pela revista americana SPIN uma das 22 bandas recomendadas de 2022, numa crítica de Ana Leorne, editora da Playback.
Música no Esquecimento termina com uma mensagem que dificilmente cai no esquecimento. “Deus Tesão” vai além de ser uma mera canção, transformando-se numa espécie de hino. Várias vozes, reconhecíveis ao longo do disco, entoam em harmonia: “Se até Deus sentiu desejo / pra criar a Terra / Qual é o problema d’eu sentir vontade, querida?”
Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo conseguiram comprovar-nos que a criatividade artística não tem limites, desde que tenhamos liberdade e tesão para o fazer. Eis uma longa conversa acompanhada por um café e alguns croissants, onde a Playback não só descobriu mais sobre o que é Musica do Esquecimento, como também da cidade de São Paulo e do Brasil.
Estrearam a vossa tour europeia em Espanha, onde tocaram em Madrid, no dia 29 de maio, no Templo Club, e no Primavera Sound de Barcelona, no dia 1 de junho. Como correu esse arranque de digressão?
[Theo Ceccato] Esta é a primeira vez que saímos do Brasil para tocar. Para mim, é muito diferente. Cada país vai ter sua receção diferente, e isso é uma coisa que não se consegue perceber muito bem. Portanto, será sempre uma surpresa. Mas acho que está muito gostoso! Começar com o Primavera Sound de Barcelona é muito chique porque, para nós, tocar nesse festival era inatingível.
[Sophia Chablau] E foi muito legal ver os outros artistas e tocar no mesmo palco que a Beth Gibbons, os Blonde Redhead… foi realmente da hora. Na turnê, você tem um processo: em que dos 100%, 1% é o show, que equivale a mais ou menos uma hora, mas que são muito loucos, e os 99% do tempo fora do concerto, que também estão sendo incríveis, mas tem outros percalços, dificuldades e aventuras…
Antes de começarmos a falar do vosso Música do Esquecimento, expliquem-me o significado da playlist no vosso Spotify: Sophia Chablau’s Billie Eilish Supers playlist.
[Todos] [Risos]
[Vicente Tassara] O Theo tinha um programa de rádio na pandemia que estava misturado com nosso Instagram, onde fazia uns conteúdos sobre música.
[Theo] É. Comecei no Instagram da banda, e depois fui para uma rádio mesmo, só que depois parei.
[Vicente] O programa era inspirado na Billie Eilish porque ela tinha feito isso em algum programa no Instagram, onde tinha escolhido 15 músicas da vida dela.
[Theo] Não, acho que era aquela coisa do Pitchfork…
[Sophia] E aí nós também fizemos. Essa playlist não é feita com a música purana da nossa vida, mas da música daquele ano da juventude e adolescência.
[Theo] Talvez tivéssemos apagado do nosso Instagram, mas, em 2020, tinha o vídeo da Sophia explicando as 15 músicas.
Basicamente, é uma playlist de músicas das vossas vidas, não é?
[Vicente] É da nossa vida. É muito engraçado ver essa playlist agora e pensar que tínhamos, sei lá, 19, 20 anos quando a playlist foi criada. Já está totalmente desatualizada-
[Theo] E também não é uma coisa que você necessariamente continua amando, mas que você amou muito.
[Sophia] São bases muito importantes. Influências muito do inconsciente, sabe? Atemporais, assim.
Quando é que decidiram começar a criar este segundo disco? A iniciativa foi, de certa forma, pressionada pela pandemia?
[Sophia] Acho que já tínhamos muita música e a gente tem uma vantagem enquanto banda porque nada nos pressiona para fazer as coisas a não ser a qualidade de coisas que não fizemos. Neste disco, acho que fomos pressionados pelas nossas próprias criações. Estávamos querendo tocar, querendo estar junto, e a pandemia fez com que tivéssemos que passar muito tempo juntos, o que possibilitou que tivéssemos mais tempo para arranjar [as canções] com mais calma, compor alguns intensivões. Cozinhamos ali os primórdios do que podemos chamar hoje de Música do esquecimento, embora fossem muito diferente do que tocamos agora.
Aliás, vocês já tinham vários temas compostos quando gravaram o vosso primeiro disco [Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo]. A malha “Segredo”, por exemplo… Foi a única feita nessa altura ou houve mais?
[Theo] Havia umas até que foram compostas antes de formarmos a banda. Por exemplo, a “Música do Esquecimento” é um tema que o Téo já fez há bastante tempo.
[Vicente] A “beijar morder trepar” também já a tínhamos composto.
[Téo Serson] O negócio é que o primeiro disco teve um corte muito dado por ele mesmo. Não sei se você já ouviu a história da banda, mas a Sophia deu um show no Rio de Janeiro, e nós arranjamos as músicas para esse show. As músicas surgiram dez dias antes para fazer esse show. Nove dias depois, fomos gravar os temas. Esse foi o primeiro disco. Tudo o que não estava lá era o segundo disco. Portanto, o corte foi muito dado por isso. As músicas que estavam antes não entraram porque elas não faziam parte desse momento.
Ou seja, vocês consideram que este segundo disco é mais coeso porque, para além de na altura já terem músicas guardadas, conseguiram ter mais tempo e muito mais pensamento para as fazer?
[Téo] Perfeito. Acho que o primeiro disco tem um tom de projeto, uma unidade que se deu no espaço.
Um momento, não é?
[Sophia] Um momento. Acho que no segundo disco, viramos uma banda. É mais calculado. A gente é uma banda, embora até isso eu discorde. Acho que estamos cada vez mais se entrosando na linguagem musical que a gente está fazendo.
O que é que significa ser uma banda, para ti?
[Sophia] Acho que é ter um certo vocabulário muito bem definido. É criar um dialeto, sabe? As bandas que eu gosto são as bandas onde eu sinto que essa linguagem existe.
[Téo] Em termos de música, isso fica muito nítido, porque, no primeiro disco, cada música era um estilo diferente: uma é uma balada, outra é uma coisa mais groovada, outra é uma coisa mais rock’n’roll… No segundo disco, as músicas têm um vocabulário próprio. Todas, por mais diferentes que sejam, são novos estilos. E por isso, acho que a ideia é ir chegando cada vez mais nesse estilo.
[Vicente] Mas é engraçado que, pelo recorte temporal do primeiro disco, e até pelo facto de ter sido composto e arranjado num período muito curto e gravado logo depois, acho que ele tem uma coesão e ele captura muito uma certa vibe da gente. Ainda por ser muito curto e de atirar para muitos lados, ele é muito coeso. Sempre me choca o quanto ele carrega uma vibe muito específica. Acho que o novo é um pouco mais intenso, mas que vai em várias direções. Não sei, mas às vezes me pego ouvindo o primeiro disco e penso: “Caramba, ele era mais junto do que me lembrava”.
Acho que conseguem encontrar sentido nesse primeiro disco porque capturou o momento em que a foi dada a criação da vossa banda. Portanto, a desorganização ganha sentido.
[Sophia] Sinto que estávamos ensaiando para um momento de extrema potência de-
[Vicente] Botar para quebrar!
[Sophia] Para mim, o que torna o segundo disco mais coeso é o plano do show.
Foi pensado para ser tocado ao vivo?
[Téo] Não, ele não foi pensado para o show. Mas acho que o show dele, com as músicas do primeiro disco também meio se juntando, é realmente coeso e que não fica faltando. Está tudo ali mesmo. Não que o outro faltasse, mas era muito mais caótico. Cada música deste disco é muito mais uma música.
Há alguma música que, ao chegar ao momento de gravação, tenha mudado completamente?
[Sophia] Sim, sim. Tem uma clássica que a gente gosta de falar.
[Theo] A “Casio”!
[Vicente] Agora “Embaraço total”.
[Téo] Até mudamos o nome.
[Theo] Mas foi uma música que tocamos o arranjo por um ano, em turnê. Chegámos ao estúdio, ensaiamos com o produtor, Vitor Araújo, e estava tudo bem. Quando chegamos ao momento de gravar, ele falou: Está um lixo. [Risos]
[Sophia] Não, acho que foi mais assim. Gosto de todas as músicas, mas a “Casio”, para mim, é deprimente. É a música da Nickelodeon, ou que parece que vem de um MTV.
[Theo] E depois falamos assim: esta é uma música muito especial e queremos muito que entre no disco. Começamos a gravar essa versão antiga e o Vitor disse: não vai dar. Então respondemos: vamos mudar. Então a gente se juntou, em um ou dois dias, e refez.
Na “Qualquer canção”, parece-me que a frase “Eu não vou fazer qualquer canção só para dizer que eu sinto agora”, define este disco. O que é que acham?
[Sophia] Acho que me lembro de você [Vicente] escrever isso num release. Achei uma ótima definição, mas confesso que nunca conversamos profundamente sobre qual seria a tese do disco. Só que, em algum lugar, Música do Esquecimento dialoga muito. Tem várias frases que meio tentam chegar ao que estávamos querendo dizer e essa é uma delas. Ela diz muitas coisas principalmente porque é uma frase muito curta e vem desse novo momento de ter a opção de criar um instrumental super grande com uma frase super curta. Com a produção do Victor Araújo, acho que arriscamos muito mais do que no primeiro disco, sabe? Então acho que sim, em certo sentido.
[Theo] Nunca vai ter uma coisa que defina alguma coisa, porque nada é pensado, frio e calculista. Mas de facto, essa música comunica muito a gente como pessoas. É uma canção linda que amo de paixão e acho todas as palavras perfeitas. Desde a primeira vez que ouvi, fiquei emocionado.
[Téo] Uma das coisas que ela traz, e que acho legal, é a ideia de não tomar a canção como uma coisa já meio dada e pronta: não quero compor uma canção na minha janela, me sentindo mal. Não. Por isso, é que vem a busca por compor canções estranhas, sabe? Por desbloquear um pouco também, liricamente, o que se espera de uma canção. E daí, essa música anuncia isso textualmente, mas várias músicas fazem isso de uma forma mais doida: “O Último Sexo”, do Theo, ou “As coisas que não te ensinam na faculdade de filosofia”, que de repente entra a Marilena Chaui no meio do nada. Ninguém entende porquê-
Mas consigo encontrar sentido na Marilena Chaui. A autora, na sua filosofia, fala muito sobre a cultura…
[Theo] Não, esse negócio é só porque é… gratuito!
[Vicente] Sim, porque eu tinha a letra e melodia escrita (“Não me leve a mal”) guardada na gaveta. Foi na pandemia que nos reunimos para inventar umas músicas novas, e aí tinha essa música e mostrei para eles. Só que, ao mesmo tempo, nessa época, também estava estudando muito a Marilena Chaui na faculdade e tinha ficado completamente maluco. De repente, me veio uma música à cabeça, assim: “Estudando Marilena Chaui. Só que cantava isso várias vezes na cabeça, até fiz um beat de rap para cantar isso. E foi enquanto mostrava a música que tive a ideia genial de juntar as duas na cabeça, assim como uma piadinha. Eles acharam muito legal, mas não foi nada deliberado. Apesar de achar muito sentido nessa música, não tem nada de muito consciente nessa brincadeira.
[Téo] Você entra nesse hole de formas para deixar uma canção esquisita. Essa canção do Vicente vinha toda numa toada [canção acompanhada por uma letra], confessional, sentimental, e de repente você coloca… Marilena Chaui. Acho que isso é um pouco a frase de há pouco: “Eu não vou fazer qualquer canção/ só pra dizer o que vai ser agora”. Por isso, vou brincar, misturar e inventar a moda.
[Vicente] Acho que até havia um problema da Marilena Chaui que atravessou o disco, que era entender como é que é possível um filósofo pensar o novo a partir do velho. Estava tentando fazer uma leitura do filósofo Baruch Espinosa que não o reduzisse a um filósofo do século XVII e fizesse ser interessante para o presente. Achei que tinha alguma coisa haver com o problema do disco, sabe? Como podíamos falar de coisas novas usando linguagens velhas, que é um problema de todo artista, só que não sabíamos resolver se não fazendo. Você pode ficar maquinando, mas às vezes só precisa juntar as coisas pela brincadeira e, de repente, encontra uma coisa que não cabia na linguagem original.
Sabendo que vocês trabalharam muito com Ana Frango Elétrico, por exemplo, como conseguem manter a vossa sonoridade original?
[Sophia] Acho que isso é só porque nós não somos eles. Acho que cada um tem o seu jeito de pensar, e porque ao sermos uma banda também, traz um valor. Existem alguns momentos em que alguém toma um pouco mais as rédeas de um determinado processo, mas é muito democrático quando fazemos o som, sabe? A gente vai discutindo, brigando e chegando nos lugares que quer chegar, o que faz com que a gente consiga se desdobrar mais. Por mais que talvez tenha uma referência muito na cabeça do que estou ouvindo agora, não é o mesmo que o resto dos membros estão ouvindo, sabe? Não é que a gente não se queira misturar, até porque somos contra isso. Olhando de fora, acho que é uma coisa que eu também percebi muito quando viemos para a Europa. Isso é até uma coisa bem engraçada. As pessoas acham que fazemos um som tropical e os europeus falam que o que fazemos é quase uma localização geográfica do som. Não tem nada haver com o que fazemos. A gente não mora em nenhum lugar tropical, moramos numa cidade maluca. Uma mega metrópole. Apesar de a gente também gostar de ser influenciado pelas pessoas, por Ana Frango Elétrico ou Vitor Araújo, acho que um dos principais fatores que faz com que a gente se diferencie não é só porque somos diferente deles. É porque temos visões musicais muito diferentes. Então, não é uma coisa muito planejada, muito intencional, muito pensada. Acho que o facto de discordarmos muito faz com que a coisa ganhe diferenças constantemente e que fique totalmente uma mistura maluca.
Numa entrevista à Folha de S.Paulo ao um de vocês disse que a banda, antes de Sofia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, chamava-se Sophia Chablau e A Música do Esquecimento. Expliquem-me o porquê da mudança.
[Téo] Não. A banda chamava-se apenas Música do Esquecimento, e, no começo, era só nós os três [Theo, Téo e Vicente]. Depois, a Sophia conseguiu esse show e falou: vocês fazem a banda para mim nesse show. E daí ficou Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo.
Então quer dizer que este segundo álbum serviu para homenagear os projetos que vocês tinham guardados?
[Theo] As músicas muito velhas que temos neste disco são as músicas que a gente tocava antes de nos juntarmos. Acho que a música “Música do Esquecimento” tem a ver com essa ideia de fazer uma música que seja esquecida do resto e que não tenha haver com nada.
Mas como é que isso se transforma no Música do Esquecimento?
[Téo] Conheci o Theo há muitos anos, somos amigos de infância. Depois, conheci o Vicente na faculdade porque fizemos filosofia juntos e tínhamos um grupo de estudos de Nietzsche. E daí a ideia de um texto, especificamente, que se chamava “Vantagens e Desvantagens da História para a Vida”. A ideia desse texto era pensar o esquecimento como uma força criativa, ou seja, o exercício de você, ainda que fictíciamente falando, fingir que não fazia ideia de tudo o que já foi feito. Tentar fazer um som do nada, o que der na cabeça.
[Sophia] Voltando também à resposta anterior. Acho que “Qualquer canção” é uma das menos canções do disco, no sentido da forma da estrutura, porque só tem uma frase. Então, acho que também tem um debate, um debate até muito brasileiro-
Mas a faixa “Segredo” tem a estrutura convencional: verso, refrão, verso; e também funcionou como um hit internacional. Como é que vocês reagiram a esse reconhecimento?
[Téo] Não temos nada contra… Por isso é que não é desconstruir nesse sentido de reinventar, mas brincar com o hit. E a Sophia é uma grande hit maker.
[Sophia] Sinceramente, tô cagando. Gosto muito de ouvir música. Já tive meus momentos de ouvir ruído e tal, mas o que gosto de ouvir atualmente é cançãozona. Adoro cantar junto, chorar, me emocionar. Quando crio alguma música que promova isso na vida de outra pessoa, me realizo muito mais do que quando faço uma música que é totalmente cabeçuda. Ao mesmo tempo, gosto de fazer música cabeçuda. Estou fazendo para provar nada para ninguém, sabe? Acho que a “Segredo”, pra mim, é isso: uma música do fundo do meu coração. Em nenhum momento falei: vou escrever esse hit. Até porque não é um hit.
No primeiro disco, vocês lançam a faixa “Deus Lindo”. No segundo, surge a “Deus Tesão”… estamos a falar de um mesmo deus que evoluiu, ou?
[Theo] Totalmente. Um Deus que evoluiu e em que há também uma ruptura sonora. Apesar de ser uma coisa engraçada, as duas músicas foram gravadas num certo tempo. Na “Deus Lindo”, gravou de um jeito mais precário dentro do estúdio. Tudo estava vazando, mas só precisamos de gravar o primeiro take. A “Deus Tesão”, fizemos um churrasco de comemoração no final do primeiro disco, montamos o samba mais capenga que você pode imaginar e fez aquela gravação. Então foi tudo… um momento. E acho que as músicas também se misturam, né? Antes, quando começamos a banda, a gente se definia como rock anarcogospel, inspirado no Negro Leo.
O que é anarcogospel?
[Theo] O Negro Leo teve uma viagem com a igreja evangélica e com a Bíblia. O Leo é um cara muito inteligente que está sempre pensando a música de um jeito muito sociológico, ao mesmo tempo que muito artístico e viajadão. Então ele teve uma onda com gospel. Quando lemos o texto dele, quisemos fazer uma apropriação. O disco dele [Action Lekking (2017)] fala bastante sobre isso. Era um conceitinho engraçado de um som que, para a gente, era muito inspirador e que queríamos muito fazer.
[Vicente] Acho que, na realidade, o que une as duas músicas é um pouco o desejo de profanar um pouco a palavra ou de falar… “Deus lindo gospel, cospe em mim”. É divertido-
[Sophia] E a gente fez essa música para o Negro Leo. A sexualidade e Deus são coisas que vêm juntas. Quando a gente fala sobre Deus e sexo na mesma música, tem haver com aquilo que falamos na canção “Deus Tesão”: “Se até Deus sentiu desejo de criar a terra…”. Gosto muito de citar as Irmãs de Pau porque elas fizeram um show que realmente mudou a minha vida. As Irmãs de Pau são duas meninas transexuais e elas começam a cantar uma batida de padre. Um gospel, só que é só putaria! Hoje em dia, no Brasil, a gente vive das políticas fiscais, liberdade de mercado e prisão para os corpos, né? E acho que é uma certa subversão falarmos sobre Deus. No Brasil, com o Jair Bolsonaro, rolou muito uma apropriação de Deus, uma apropriação da nação, ou seja, o conservadorismo e a inclusão voltaram a ficar muito presentes, reprimindo muito a ciência sexual. Essa repressão, em qualquer debate sobre sexualidade, é muito protagonizada pela direita no Brasil. Então, ao você ser de esquerda, você passa também a falar mais sobre isso. Putaria e cristianismo estão juntas desde o começo dos tempos e muitos artistas já souberam usar isso muito bem: a Madonna, por exemplo.
Há pouco falaram da vossa admiração pelo Negro Leo. Ele participa no tema “Quem vai apagar a luz”. Como chegaram a ele?
[Vicente] Ele circulava nos mesmos espaços que a gente em São Paulo e no Rio de Janeiro, tanto que, a primeira vez que a Sophia conheceu ele, foi num show de Ana Frango Elétrico. Acho que estávamos montando o disco e decidimos enviar um mail a convidá-lo para participar. Isto dois anos antes de gravarmos o disco. Depois, gravamos e foi super tranquilo porque o Vitor Araújo também já tinha gravado um monte de coisas com ele e eles são super amigos. Isto foi feito num dia em que ele passou lá no estúdio, mas não participou na composição. Ele apareceu para cantar e dar umas contribuições muito certeiras.
[Sophia] Lembro-me que estávamos lá no estúdio ouvindo a voz dele e era surreal. De repente, estava aquela voz que já tínhamos ouvido em outras músicas. Foi como se você fosse gravar uma música e tivesse um feature com o Paul McCartney e quando ele abre a boca não tem como errar. Tudo o que você ama, ele faz. O Vitor Araújo é um cara muito perfeccionista e o Leo chegou lá e gravou e ficou perfeito. Lembro-me que o Vitor falou: “nossa, como é bom trabalhar com alguém que é rápido”.
Disseram que o Vitor Araújo é um produtor muito perfeccionista. Isso ajudou-vos a tornar o álbum mais coeso? O quão importante foi ele para o vosso disco?
[Téo] O Vitor foi o peso da coesão e do aperfeiçoamento. Acho que ele tem um poder, como se tivesse amarrado a nossa banda como uma pedra. Além de um grande músico e grande compositor, ele é uma pessoa com um gosto inegável e tem ideias perfeitas. As várias coisas que chegávamos com ele no estúdio, sentíamos que estávamos inventando a roda. A quantidade de repertório que ele tinha também foi muito foda.
[Vicente] Acho engraçado que toda vez que falam sobre o Vitor nas entrevistas, descrevem ele como um cara da música erudita, mas ele é muito mais da música popular. Ele vive muito no encontro dessas duas linguagens.
[Sophia] Acho que é quase injusto falar que o Vitor é erudito, porque o cara é tão popular e tão amante da música popular brasileira. Quando ele estava a produzir o disco, falou várias vezes: eu quero que o som de vocês não soe nem masculino, nem gringo, vocês são meninas do Brasil. Vocês não podem entrar numa coisa do brutal do rock, um som masculino rockeiro, vocês não podem entrar numa noite que vocês querem fazer um som de gringo, vocês são brasileiros, vocês têm que fazer o som brasileiro. Então tudo que fazíamos era mais brasileiro, ele ficava muito emocionado. Uma vez, ele e o Vicente, quando foram gravar o “Time to say goodnight”, lembro-me que o Vicente estava tocando um negócio, ele falou: “Não, temos que fazer uma coisa mais Clube da Esquina. Está muito Sigur Rós. Não gente! Mais Clube da Esquina!”
Na parte final da “Deus tesão”, há um silêncio profundo e a Sophia diz qualquer coisa numa língua diferente-
[Todos] Não, não é a Sophia.
[Theo] Quem falou foi a Yara Ktaish, uma amiga nossa da Síria, que inclusive, a gente a conheceu pelo Vitor Araújo. A Yara Ktaish fez uma tradução da letra da música em Árabe clássico.
Porque é que decidiram colocar essa parte?
[Vicente] Porque é a língua de Deus, não é? Tem um negócio que… na visão cristã, o texto e a palavra são uma tentativa humana de dizer a verdade da vida. Ela não é a palavra de Deus, mas é uma tentativa humana de acenar para aquilo que diz a verdade de Deus. Acho que tem uma certa brincadeira. Sinto que o disco todo tem uma certa crise com a linguagem, e qualquer canção fala um pouco isso, né? Acho que todas as músicas são atravessadas por esse desejo de falar uma coisa, mas as palavras não conseguem transmitir isso. Mas depois, você chega na última frase… e torna-se numa grande brincadeira. Porque é que não posso falar se Deus falou e fez o mundo, então eu também posso decidir e falar o que me apetece.
[Sophia] Tem uma parada que acho que é importante falar dessa música. Por mais interpretações que tenha, acho que essa música também tem haver com uma atirada com Deus. Deus não apeteceu fazer as coisas por fazer. Deus fez as coisas porque ele estava sentindo tesão e a gente faz as coisas porque sentimos tesão em fazê-las.
“NÃO EXISTE ARTE SEM CULTURA
BOTE PRA FORA
PERCA SEU TEMPO: SE ORGANIZE.
POR UM MUNDO ONDE TODOS TODAS E TODES POSSAM SONHAR
E ESTE SONHO MUDE VIOLENTAMENTE O MUNDO.”
Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo
No vosso Bandcamp, no final da descrição deste novo disco têm escrito o manifesto acima, que me chamou bastante atenção, porque, em Portugal, o Orçamento de Estado para a cultura é de pelo menos 2%. Como é a situação da cultura no Brasil?
[Sophia] O Brasil é um lugar com o capital muito concentrado, em que o dinheiro está em pouquíssimas mãos, e que, estranhamente, o Estado não é um dos detentores. Não que ele não seja, mas ele não se faz ser, justamente, o detentor desse capital. O Estado brasileiro precisa de se fortalecer nesse sentido para ser, justamente, o que eles queriam. Acho que, no sentido da cultura, essas pessoas que detêm o capital optam por ter uma abstração do que é a arte. A gente debate na tribuna em que arte é uma instância quase espiritual da vida, e não uma parte essencial da possibilidade de existência das pessoas – o que eu discordo. Quando você diz que arte é cultura, você está querendo dizer que nós somos agentes culturais e as nossas escolhas enquanto artistas são escolhas culturais e políticas. As nossas atitudes com a turnê, onde tocamos, com quem tocamos, o porquê de fazermos tal show, o que queremos construir, o que acreditamos… isso é extremamente político e extremamente cultural. Temos que entender a arte como cultura, porque aí também tem relevância para o Estado e para a sociedade. Acho que é muito contra a ideia de que a arte é uma coisa separada da vida e é muito evidente que não.
[Vicente] Sinto que está rolando no Brasil, no momento, uma coisa no mercado da música em específico, que tem haver com a concentração do dinheiro em coisas como os festivais e artistas gringos. O dinheiro não está circulando para que a música seja uma coisa que participe na vida das pessoas. Isso é uma grande bolha que está rolando agora de um boom imenso de festivais, de turnês caríssimas que ninguém vai, porque elas são impossíveis de aceder. Tem ainda uma coisa interessante em São Paulo, no estado onde a gente mora, uma instituição que é o SESC [Serviço Social do Comércio] que recebe o dinheiro do Estado para patrocinar atividades culturais, e ela é uma das grandes forças motrizes da cultura no estado de São Paulo. Enquanto músicos, a gente vive, em grande parte, porque o SESC permite que a gente tenha shows e pagar um cachê legal. Então, temos muita consciência de que precisa de um movimento estável para fazer a cultura, no nível mais baixo de movimento, sobreviver. E é assim que a nossa carreira, assim como outros artistas pequenos no Brasil, é viabilizada. É triste porque parece que a tendência é cada vez mais o contrário.
Fotografia de destaque: Helena Ramos