No universo do fado, onde a alma se revela em cada nota e a nostalgia é uma presença constante, Sérgio Onze surge com uma proposta única, que já estava destinada a marcar o seu lugar no atual cenário musical português (pelo menos é o que por estes lados achamos). Sérgio encontrou no fado o eco perfeito das suas vivências e emoções, mas também o espaço ideal para a sua reinvenção. Em 2024, traz-nos o seu álbum de estreia NÓS, onde explora as raízes do fado com uma frescura surpreendente num equilíbrio delicado entre tradição e modernidade, bem captado pela produção de Ricardo Ribeiro e Agir.
Composto por catorze faixas que se destacam pela intensidade emocional e pela forma como Sérgio enlaça as suas duas grandes paixões – a música (fado) e a moda -, NÓS é um disco que fala de encontros, desencontros e de quem somos no meio de tudo isso. A voz do fadista desliza pelas melodias tradicionais, mas não se inibe de experimentar, criando novos diálogos com sonoridades modernas. O resultado? Um fado vibrante, vivo, que reflete tanto a Lisboa das vielas antigas quanto a cidade cosmopolita que abraça a mudança, a calmaria e a agitação.
Conversámos com Sérgio Onze sobre o caminho que o trouxe até aqui, as inspirações por detrás dos seus NÓS e a forma como as suas experiências em palco revelam uma nova etapa na sua jornada. Falou-se ainda sobre o seu outro lado – a moda – e como estas duas artes se entrelaçam na sua vida, criando uma narrativa estética e sonora que o define.
Desde muito novo que estás envolvido no fado. Subiste a um palco pela primeira vez aos cinco anos e ganhaste a Grande Noite do Fado aos nove anos. Como é que o fado surgiu na tua vida?
Surgiu de uma forma muito natural. Desde já, não tenho ninguém na família ligado à música. Nem sequer tinham muita predisposição, nem perdiam muito tempo a ouvir. Mas eu andava sempre a cantarolar em casa e os meus pais acharam que eu tinha jeito. De uma forma não muito séria, quase como uma atividade extracurricular, eles inscreveram-me numa escola de canto. Na altura, era uma senhora muito velhota que dava aulas a alguns miúdos, era a Ilda Ventura, e ela fazia e compunha algumas canções e nós cantávamos. Mas sempre num espírito muito saudável e infantil, claro. Desde aí, comecei a participar em alguns festivais da canção infantojuvenis pelo país, que acabavam por tornar-se momentos de convívio – encontrávamo-nos em diferentes pontos do país, criávamos amigos, etc. Na verdade, nem pensava muito na competição, mas sim nesta partilha que existia. Entretanto, houve um dia em que a professora disse aos meus pais “acho que o Sérgio tem muito jeito para cantar fado”. Foi uma surpresa para os meus pais porque, lá está, nem consumíamos fado em casa. Mas a resposta acabou por ser “se ele gostar, força, está tudo bem”, e assim foi. Como disseste, aos nove anos ganhei a Grande Noite do Fado e, a partir daí, nunca mais parei de cantar fado. Comecei a frequentar com mais regularidade espaços de fado, de uma forma descomprometida, sempre acompanhado pelos meus pais ou pela professora. Também foi por volta desta altura que fui para uma escola de fado, onde conheci outros fadistas e comecei a ter um bocadinho mais de noção do que era o fado, que não tinha até então. Não tinha porque era um miúdo. Conheci pessoas como a Sara Correia, que hoje em dia está em alta e ainda bem, a Teresinha Landeiro, e outros que não têm tanto conhecimento do público mas que são igualmente fadistas incríveis. Depois, com o passar do tempo, comecei a perceber que o fado era o que me fazia, de facto, sentir, e não outros estilos musicais.
Que artistas ouvias quando começaste a consumir fado?
Na verdade, era muito influenciado pela professora que te falei, que me mostrava alguns fadistas mais antigos, como o Fernando Farinha, o Carlos do Carmo, a Beatriz da Conceição, etc., e que, ainda hoje, são referências para mim. Mais tarde é que comecei a construir as minhas próprias referências e a perceber, de facto, o que me fazia sentido e quais os fadistas que realmente gostava de ouvir e que me inspiravam.
Já passaste por múltiplas casas de fado em Lisboa. Como é que essas experiências, em diferentes ambientes e contextos do fado tradicional, moldaram a tua abordagem ao género e a tua identidade enquanto fadista?
Se calhar por ter feito este caminho mais tradicional, digamos assim, sinto que é muito difícil encontrar uma forma de ser fadista sem passar por este processo. O fado é muito mais do que cantar, é quase que uma forma de estar na vida. O meio fadista é muito específico, ora as pessoas, ora as histórias, ora o facto de passares muito tempo a viver a noite. Tudo isto é muito específico e constrói-te muito enquanto pessoa também. Portanto, acho muito estranho um fadista não passar por este processo nas casas de fado, até porque é lá que se aprende. O fado é uma tradição oral. Nós aprendemos com os fadistas mais velhos. Atenção que cada vez existem menos fadistas no ativo dessa altura, mas felizmente tive a oportunidade e a sorte de ainda apanhar alguns artistas das antigas gerações, como é o caso da Maria Amélia Proença, com quem falo muitas vezes e até entra no meu disco com a faixa “Legado (Interlúdio)”. É uma mestra. São as pessoas ideais para te passarem ensinamentos, ensinamentos estes que são fundamentais para a tua construção enquanto fadista. O fado tem algumas regras que precisam de ser compreendidas: é muito importante saber quais são as bases, o que se faz e o que não se faz, o que é um decassílabo, o que é uma sextilha, o que é um fá menor, etc. Portanto, acredito que as casas de fado são o sítio indicado para que isto aconteça. Tal como as escolas de fado, pelo menos considerando a minha experiência. O que eu quero dizer é que ninguém aprende a ser fadista a estudar, mas sim a ouvir os outros e a tirar as suas próprias percepções. Isto porque o fado é uma música que por ser tão simples torna-se muito difícil. O fado começa sempre por querer contar uma história e, aos poucos, acabas por ir percebendo que formas e camadas podes dar às tuas histórias com a tua interpretação. Isto foi, sem dúvida alguma, um dos principais ensinamentos que as casas de fado me trouxeram.
Se o fado fosse uma pessoa, que papel desempenharia na tua vida? Um amigo, um confidente, uma paixão ou algo completamente diferente?
Confidente, sem dúvida. Na verdade, é quase que uma junção de tudo o que disseste, mas também acho que o confidente acaba por englobar tudo. O fado é a forma mais pura e natural que tenho de me expressar, ou seja, quer esteja bem quer esteja mal é a cantar que consigo expressar-me melhor e chegar a uma possível resolução. Embora, em certas alturas, ache que estamos meio que chateados [risos]. Sei que isto soa estranho [risos]. Mas às vezes sinto que não estamos na nossa melhor fase de relação [risos], o que faz parte. Para cantares fado tem que haver uma grande entrega, porque não só estás totalmente exposto como também estás muito vulnerável, e isso pode ser complicado, porque nem sempre queres estar nesse lugar. Ou seja, é importante saber criar uma barreira e não entregar em demasia, porque senão arriscas ir para um sítio que não é propriamente saudável.
Há algum momento específico da tua vida em que sentiste que o fado te “salvou” ou te deu uma nova perspectiva? Como achas que este estilo consegue, ao longo de séculos, tocar nas emoções mais profundas das pessoas?
Como falámos há pouco, canto fado desde muito novo, portanto não me conheço sem fado. Mas, na verdade, nunca me tinha imaginado a ser realmente fadista. Era algo inerente à minha pessoa. Era algo tão natural que nunca tinha pensado de uma forma mais séria, de “isto vai ser a minha profissão”. Até porque desde sempre achei que havia qualquer coisa que tinha que se tornar maior para que isto pudesse acontecer. Digo maior no sentido da própria construção do ser fadista, ou seja, do que é que teria para apresentar enquanto fadista e marcar uma posição. Mas com o passar do tempo fui percebendo que o fado é um mundo de possibilidades, e é por isso que acho que o fado é sempre atual, isto porque o próprio fadista pode escolher aquilo que canta. Sinto que é uma coisa que ainda não está a ser feita por todos os fadistas. Sinto que mesmo as gerações mais novas não têm tanto este trabalho de investigação, digamos assim. O fado funciona com músicas tradicionais que foram feitas há centenas de anos e nós continuamos a cantá-las. Mas o fadista tem a liberdade de poder pôr nessas músicas as palavras que quiser. Naturalmente que, hoje em dia, não vou dizer nem vou cantar o que os fadistas de há cinquenta anos diziam e cantavam. Isto porque não me revejo nas histórias – pelo menos, em parte delas. Não são minhas, não são as que estão a acontecer agora no mundo, não é o que eu tenho para dizer agora. Tenho que ser eu a construir a minha própria história. E é por isto que acho que o fado é sempre evolutivo, mesmo sem grandes transformações musicais. Nos dias de hoje, o fadista tem a possibilidade de escolher aquilo que quer dizer e as palavras que lhe fazem sentido. Isto é o mais incrível.
Quando não estás a cantar, que papel é que o silêncio desempenha no teu processo criativo? Sentes que o silêncio entre as notas do fado também carrega uma mensagem ou emoção?
Sim, sem dúvida. Às vezes os silêncios até falam mais do que a própria música. São super importantes, porque são, no fundo, respirações. Respirações no sentido de… Como se houvesse uma pausa. Como a vida a ter intervalos, basicamente.
Há pouco falavas sobre as gerações mais novas. Como vês o fado nos dias de hoje? No que diz respeito à experimentação, sentes que há uma maior abertura, como acontece no teu álbum de estreia?
Sim. Na verdade, acho que é extremamente necessário haver essa abertura para a experimentação. No meu caso, tenho é muito cuidado e respeito pela forma como apresento e como dou nome às coisas, ou seja, o fado – tradicional – é fado e tem uma forma muito específica de o ser. Não o podemos desvirtuar nesse sentido. Isto é, não podemos chamar fado a coisas que não o são. Sinto que precisamos de ter mais esse cuidado para as pessoas também não ficarem baralhadas e para não se perderem coisas importantes que caracterizam este estilo musical.
Para não se perder a essência do fado, basicamente.
Exatamente. Não podemos chamar fado a uma fusão com a electrónica só porque tem uma guitarra portuguesa pelo meio. Por exemplo, não digo que a faixa “Sapatinhos” do meu álbum é um fado, porque não é um, ponto. Sim, está dentro de um universo fadista, porque quando canto sou fadista, mas não posso dizer que aquilo é um fado. Lá está, tem tudo a ver com a forma como apresentamos as coisas. Mas como conseguiste perceber, estou super receptivo a experimentar coisas diferentes e até a ter artistas mais contemporâneos a escrever para fado tradicional, porque isso também é possível, e além disso acho uma escolha muito interessante. Relacionando com o que te dizia há pouco, é o ir buscar músicas antigas e dar-lhes uma história nova. Mas aqui o ponto é que há outras construções que não podemos chamar fado. Na verdade, acho que alguns artistas estão a fazer muito isso e, se calhar, não têm um único fado no disco. Se calhar será uma fusão musical ou outro estilo de música urbana portuguesa. Será outra coisa que não fado. Mas isso é uma pergunta que tem pano para mangas [risos] e várias opiniões, obviamente.
O título do teu disco, NÓS, aparenta ter uma forte carga simbólica, mas nenhuma faixa tem esse nome. Fala-me um pouco sobre o conceito por detrás desse título e o que estes “nós” representam para ti.
Na verdade, já sabia que o disco iria chamar-se NÓS desde praticamente o início do processo de criação, mas nunca pensei ter uma faixa com o mesmo nome. Queria que transmitisse, de facto, essa carga simbólica de que falaste, que se resume a estes nós que se vão atando e desatando durante a minha construção enquanto pessoa e fadista. Ou seja, os caminhos que fui escolhendo, os sims que disse, os nãos que disse, os meus conflitos interiores – que neste processo saltaram muito à vista [risos], tive que me debater a sério com eles. Portanto, o disco para mim acabou por ser um processo muito interior. Sinto que era necessário mergulhar nesses conflitos para perceber aquilo que queria dizer e cantar. Vejo também o NÓS como um novelo com vários nós de diferentes áreas, mesmo até a própria construção de pessoas que participaram no disco, foram nós que se foram atando à minha pessoa e às minhas ideias – o facto do Ricardo Ribeiro, o mestre do fado, entrar como produtor, e também o Agir. Um nó muito pouco provável, portanto.
O que te levou a esse “nó muito pouco provável”? De que forma é que o Ricardo Ribeiro e o Agir trouxeram novas perspectivas ao fado que estás a construir?
Na verdade, esta possibilidade que tinha de juntar estes dois artistas, que são de universos completamente diferentes, atraiu-me muito. Sempre quis que este primeiro disco me apresentasse enquanto fadista e que, portanto, as pessoas que o ouvissem tivessem esta fácil leitura de “é um fadista que estamos a ouvir”. Não fazia sentido ser de outra forma porque, lá está, canto fado desde sempre. Para falar sobre o Ricardo, tenho que mencionar a Carminho que também surgiu na minha vida muito naturalmente e é uma pessoa que admiro imenso. Antes de avançar com o processo do disco, troquei algumas opiniões com a Carminho e chegámos ao nome do Ricardo que, na verdade, já tinha mostrado interesse em trabalhar comigo. Já conhecia o Ricardo há algum tempo, e sempre o admirei muito, mas estava a anos-luz de imaginar que ele viria a produzir um disco meu. Nem olho para isto como uma escolha, mas sim uma sorte, ter tido o Ricardo a trabalhar comigo, o que me deixou muito feliz e agradecido.
Só que, lá está, não queria um caminho completamente fechado do fado tradicional. Embora seja um disco de fado, queria que, de vez em quando, houvesse um vento que soprasse e nos tirasse desse lugar. Lá está, não transformar o fado noutra coisa, mas dar-lhe um novo rumo – e é aqui que entra o Agir, que me foi sugerido pelo Ricardo. O próprio Ricardo disse-me até “sinto que sozinho não consigo fazer este trabalho, se calhar o Agir poderia ser interessante para juntar-se a nós nesta construção”. O Agir já me tinha ouvido a cantar e também, na altura, mostrou interesse em trabalhar comigo. Até me podiam dizer “podias trabalhar só com o Agir que tu sendo o fadista que és continuava a dar certo”. Sim, mas sentia que precisava de alguém que me desse uma base mais sólida e me fizesse crer que aquilo que estava a fazer estava certo. O Ricardo foi fundamental nesse aspecto, sem nunca desvirtuar o caminho que eu procurava. Tal como não me fazia sentido trabalhar só com o Ricardo, também não me fazia sentido trabalhar só com o Agir. Mas com os dois, por mais estranho que pareça, faz sentido [risos], e assim foi. Começámos a trabalhar os três em conjunto e foi mesmo uma junção muito fixe.
Quanto tempo demoraste a construir o disco?
Olha, comecei a gravar o disco sozinho p’raí um ano antes da pandemia e, pronto, depois foi interrompido, e ainda bem. Aí estava a fazer o disco com quase tudo produção minha, mas tendo a consciência de que havia coisas que não tinha capacidade nem o conhecimento para o fazer. Mas, na verdade, nem sequer era um disco para lançar cá para fora, era apenas para começar a ter noção daquilo que poderia vir a ser o disco, era uma espécie de maquete. Não esquecer que estava habituado só a casas de fado, que é uma coisa muito diferente. Quando estou prestes a lançar o meu primeiro single – já depois da pandemia – conheço a Carminho. Isto até parece que foi o universo-
Foi o destino.
Talvez [risos]. Conheci a Carminho nas casas de fado, onde ela me pergunta o que eu andava a fazer, e eu respondo-lhe que estava prestes a lançar o meu primeiro single. E ela diz-me “por favor, não lances nada antes de eu ouvir, vem beber um café comigo, tenho muito interesse em saber o que andas a preparar”. Quando falei com ela percebi que, de facto, aquilo ainda não estava pronto. As palavras dela foram qualquer coisa do género “tu vais chegar lá, mas para isso precisamos de trabalhar mais”. Sinto que isto já fez parte do processo para o disco que saiu. Fez-me regravar tudo o que tinha. Melhorar. Depois, foi só basicamente voltar a rever e a alinhar os temas – o que ia ou não entrar, o que fazia ou não sentido, o que precisava ou não de ser melhorado. Suponho que o processo mesmo em si tenha começado há uns três anos. O processo de gravação foi de meio ano, acho. Depois, a partir de uma certa altura, tive que acelerar o processo, porque tinha o apoio do Museu do Fado, ou seja, tinha um prazo para terminar o disco. Desde aí foi tudo meio a correr, mas estávamos já todos “isto tem que acontecer”. Confesso que até já estava a fritar-me o sistema [risos], mas já vinha com uma preparação de há mais tempo.
O disco inclui ainda canções da autoria de artistas como CONAN OSIRIS, Joana Espadinha e Teresinha Landeiro. Fala-me sobre estas colaborações.
Olha, todas elas aconteceram também de forma muito natural e meio random [risos]. À excepção da Teresinha que, como te disse, conheço há muitos anos. Começámos a cantar mais ou menos na mesma altura e, desde então, temos vindo a acompanhar o crescimento fadista um do outro. Portanto, fazia-me muito sentido que a Teresinha escrevesse para o meu disco. Foi muito simples, do género “Teresinha, quero que escrevas para o meu disco um fado tradicional, escolhe o que achares que faz mais sentido, até porque já conheces a minha forma de cantar e o que eu gosto de dizer e cantar”. Não lhe dei limitações. Escreveu-me a letra da “Se Partires Não Digas Nada” e estava na mouche.
Conheci a Joana quando trabalhei como stylist para o novo disco dela (Vergonha na Cara) – foi a própria que me contactou. Portanto, tive a oportunidade de conviver mais com ela e conhecê-la melhor quando começámos a trabalhar para a imagem do disco dela. Já era muito fã do trabalho da Joana, mas eu, Sérgio stylist [risos], não tinha ideia nenhuma de falar sobre o meu trabalho enquanto fadista. Não me fazia sentido e até poderia parecer que estava a aproveitar-me da situação. Na verdade, até uma certa altura distanciava muito as duas áreas: as pessoas do fado não sabiam que trabalhava como stylist, e as pessoas do styling não sabiam que era fadista. Até cheguei a usar dois nomes diferentes. Só que depois em conversa apercebi-me que a Joana sabia que eu cantava, e apercebi-me que a Carminho tinha sido uma pessoa importante para nós os dois – a Joana chegou a escrever alguns temas para a Carminho. Um dia, a Joana disse-me “gostava muito de escrever alguma coisa para ti, se tiveres vontade” e eu “claro que sim, tenho muita vontade” [risos]. Ainda bem que isto aconteceu. Foi engraçado a Joana ter-me escrito o “Amanhã” porque, na altura, estava numa fase mais complicada, com alguns problemas de ansiedade e etc, e o tema refletiu um pouco isso, sem ela própria saber.
Com o CONAN talvez tenha sido o processo mais engraçado de todos. Não o conhecia pessoalmente, mas gostava muito do trabalho dele. Sempre achei a cena irreverente dele muito interessante. Houve um dia em que fui ver o concerto de apresentação da Rita Vian ao Lux com uns amigos e ela cantou um tema escrito pelo CONAN (“Deixa-Me”) que começa “Eu já sabia que queria / Ficar até nascer o dia”. Opa, ouvimos aquilo e os meus amigos até começaram a dizer “Sérgio, esta música podia ser tua”, isto porque sou sempre o último a querer sair das festas [risos]. Já estava com alguns copos, sinceramente [risos], mas achei muita graça àquilo e saí de lá com a ideia de “quero e vou conseguir um tema do CONAN”. Imagina, era daquelas ideias que supostamente no dia a seguir passaria, mas houve qualquer coisa que me fez avançar com isso. Falei com um amigo em comum que temos para perceber se havia a possibilidade de chegar ao CONAN e assim aconteceu, ele respondeu-me muito rapidamente. Não sabia, mas ele já me tinha ouvido cantar e disse que seria um gosto enorme escrever um tema para mim. Perguntou-me sobre o que é que eu queria que ele escrevesse e como eu não tinha nenhum tema que falasse sobre a dualidade entre ser stylist e fadista disse-lhe “queria falar sobre isto, já vesti tanta gente, acho que agora é a vez de me vestir a mim próprio e vir-me apresentar ao mundo”. O CONAN escreveu um tema que pode parecer que não, mas que encaixou na perfeição, e que veio a chamar-se “Sapatinhos”. É quase como uma metáfora: procurar sempre um lugar de leveza mesmo nas situações mais complicadas. Tornou-se muito autobiográfico.
Outras canções têm por base poemas de poetas/fadistas, como é o caso de Manuel Andrade, Fernando Farinha, Francisco Radamanto ou António dos Santos. Como é que ocorre a escolha de um poema ou de uma letra para dar-lhe vida em forma de fado? Há algo que procuras especificamente nesses textos, ou é mais um sentimento que te envolve quando os lês?
É mais um sentimento, sim. Sou muito da palavra e, lá está, acho sempre que o fado nasce da palavra, como já te tinha dito. Ocorre tudo muito naturalmente, ou seja, não estou à procura de um tema ou de uma mensagem em específico. Procurar letras para o fado funciona muito desta forma, ires ler poetas populares ou poetas mais antigos ou… Aliás, pelo menos eu vejo desta forma porque infelizmente há cada vez menos poetas atuais a escrever para o fado. Portanto, acabas por ter que recorrer a outros poetas. Quando acabo de ler um poema que gosto, ponho de parte. Depois, com o passar do tempo, dou por mim a cantá-lo na minha cabeça, ou seja, parece que já associei o poema a uma música tradicional, mas de uma forma muito natural. É quase como se a letra ganhasse uma vida. Lá está, não procuro algo em específico, é-
Algo que vem de dentro, que sentes.
Exatamente. É uma cena sensitiva.
Alguma vez iremos ouvir algo escrito por ti?
Ai, duvido muito [risos]. Houve uma altura em que tentei escrever, mas acho mesmo que não é a minha vocação. Gostava muito, mas infelizmente não tenho mesmo essa capacidade, esse dom da escrita. Talvez um dia, num devaneio qualquer… mas teria que sentir algum valor naquilo, e não penso que seja em breve, de todo [risos].
O fado tradicional é conhecido por expressar saudade e dor, mas também há espaço para a alegria. A faixa “Morena Aí Do Canto” até explora um bocadinho isto. Como equilibras essas emoções nos teus próprios trabalhos e interpretações?
Não é de uma forma muito pensada, sinceramente. O fado tanto canta a alegria como a tristeza, como tu própria o disseste e muito bem. De facto, a maior parte do tempo canta sobre a tristeza – são os temas que me custam sempre mais, mas pronto, são escolhas minhas. Mas também não sou essa pessoa por inteiro, ou seja, também tenho um lugar feliz, um lugar de luz dentro de mim. Na verdade, quando comecei a escolher o repertório para o disco, dei por mim a pensar “ele é todo triste”, embora não fosse uma coisa que me preocupasse. Se tivesse que o ser, seria. Ou seja, não pensei “preciso aqui de uma faixa mais alegre para as pessoas ficarem contentes”. Não. Simplesmente achei que isso [um disco triste] também não me traduzia por inteiro. Portanto, abri espaço para temas mais felizes, mas por mim. Se calhar, num próximo disco, até vou cantar só coisas tristes ou só coisas alegres, nunca se sabe. Neste fazia sentido ter um bocadinho dos dois-
Tem a ver com a forma como tu estás na vida.
Sim, é isso mesmo. Acaba por refletir aquilo que eu sou e como estou na vida. No processo deste disco, como também já te tinha dito, houve períodos em que não estava muito bem, tal como também houve períodos em que andava super feliz. Isto acaba inconscientemente por ser representado no disco, e ainda para mais, no primeiro disco, é mesmo importante apresentares-te de uma forma geral, ou seja, o que tens feito até aqui, quem és, etc.
Sobre os teus períodos menos bons, mencionaste crises de ansiedade durante o processo de construção do disco. Quando o terminaste, sentiste que foi algo terapêutico?
Olha, médio [risos]. De certa forma, sim. Não te vou mentir, o processo do disco deixou-me muito ansioso. Não teve a ver só com isso, obviamente, mas contribuiu. Na verdade, ainda bem que assim foi, porque tive a oportunidade de ir desconstruindo isso, sabes? Quando comecei a preparar o disco, apesar de estarmos aqui a falar de um período curto, foi muito intenso. Sinto que comecei o processo sendo uma pessoa e acabei sendo outra. Muito mais saudável e feliz. Mas, ao mesmo tempo, deixou-me portas abertas de coisas que ainda tenho por resolver. Não são processos de agora, são processos de vida, portanto não há essa ansiedade de urgência, mas acabam por ter um determinado peso. Às vezes ponho-me a pensar que, se calhar, o facto de ter conhecido a Carminho, de ter a ajuda dela no disco, bem como o Ricardo e etc, tornou-se uma pressão para mim. Uma pressão que eu próprio criei em mim, atenção. Fui eu próprio que me pus neste lugar de ter que corresponder, o que é uma estupidez, porque tens que ser quem tu és e as pessoas estão contigo porque gostam daquilo que fazes. E acho que isso também não veio despoletar lugares tão bons assim no meu processo. Além disso, quando estás neste processo que é vivido tão intensamente, uma das perguntas que mais te fazem é “o que é que tens a dizer às pessoas?” Normalmente não pensas nisto no teu dia a dia. Se calhar até porque nem tens nada a dizer. Tens é que contar a tua história até aqui, que pode ser mais ou menos intensa, com mais ou menos peso, mas não tens que fazer disso uma preocupação. Os outros também vão ver em ti coisas que tu próprio não vês, portanto é só mesmo levar as coisas com a maior naturalidade, eu acho. É focar e pensar “calma, está tudo bem, e tudo vai acontecer como tiver que acontecer”.
Já levaste este teu álbum de estreia a vários palcos, como o Centro Cultural de Belém, o Sol da Caparica, o Caixa Alfama e, mais recentemente, o Museu do Fado, que chegou a esgotar. Como tem sido esta experiência?
Muito fixe. Quando acabas um disco é tipo incrível. Porque estiveste, de facto, a trabalhar para aquilo. Nos primeiros tempos é estranho, porque também tiveste ali tanto tempo dedicado e, de repente, acabou, já está cá fora, e tu não consegues controlar. Mas depois com o passar do tempo é maravilhoso. A partir do momento em que apresentas o teu projeto às pessoas meio que deixa de ser teu, passa a ser de quem te está a ouvir. E é incrível, mesmo. E ainda para mais foi em diferentes ambientes. Por exemplo, estar no Sol da Caparica é completamente diferente de estar no Museu do Fado. São públicos diferentes, mas saber que podemos chegar a diferentes núcleos também é brutal, é isso que queremos que aconteça e é para isso que nós trabalhamos. Depois, muitos nervos à mistura, não te vou mentir [risos]. Às vezes a morrer, mas faz parte, é mesmo assim.
O NÓS foi editado pelo Museu do Fado. Como surgiu esta parceria?
Mais uma vez surgiu através da Carminho. Quando andava naquela troca de ideias com a Carminho sobre o disco, ela também percebeu que o facto de não estar a acelerar o processo como poderia era porque, de facto, não tinha forma de o fazer, até mesmo a nível financeiro. Houve um dia em que ela me ligou do nada e disse-me “Sérgio, é só para dizer que tens o apoio do Museu do Fado para gravares o teu primeiro disco, mereces”. Foi ela que tratou de tudo e, por isso, ser-lhe-ei eternamente grato. O Museu do Fado apoia, de facto, alguns jovens fadistas e até fadistas mais antigos, mas eu não sabia, muito menos de que forma poderia contactar ou como podia fazer isto acontecer. E a Carminho teve um gesto mesmo muito gentil.
Há pouco falei-te até de usar dois nomes diferentes e, na verdade, também veio da Carminho [risos]. O meu nome é Sérgio da Silva, e era esse o nome que usava como fadista, e Sérgio Onze para o styling. Não me perguntes porquê, mas na altura tinha esta coisa de dividir os dois mundos, o que acabou por tornar-se um pouco confuso porque as pessoas já não sabiam muito bem se se tratava da mesma pessoa ou não. Na altura, a Carminho disse-me “oh Sérgio, não podes ser Sérgio da Silva, tens que ser Sérgio Onze, é um nome que funciona muito melhor, as pessoas vão logo associar à tua pessoa” e eu “achas mesmo?” Sérgio Onze não me soava muito bem. Entretanto, depois da reunião da Carminho com o Museu do Fado, fui lá e eles até já tinham a data para me anunciar – eles marcam logo a data de apresentação do disco, por isso é que há um prazo para o terminar – , e já estava apresentado como Sérgio Onze. Basicamente, a Carminho já tinha avançado com essa escolha de nome. Portanto, já não tinha opção de escolha [risos].
No meio disto tudo, ainda venceste a categoria digital dos Prémios Play/Sagres que, na verdade, foi o que te levou ao palco do Sol da Caparica. O que é que significou para ti?
Estava zero à espera, de tudo. Para já, quando recebi a notícia que estava nomeado para essa categoria fiquei meio histérico [risos]. Fiquei muito feliz com a nomeação dada pelo Ricardo Ribeiro. Até podia haver esta associação de “ah, ele produziu o disco”. Naturalmente que sim, conhece-me melhor nessa área porque trabalhou comigo e sabe o meu valor ou as minhas capacidades. Do que conheço do Ricardo, ele é uma pessoa muito justa, se ele achasse que eu não seria pessoa para estar nomeada, ele não o iria fazer, nem iria escolher evidentemente trabalhar comigo. Depois da nomeação, estava super contente e tranquilo, e muito longe de imaginar que ia ganhar o prémio [risos]. Para já, porque era fado, que acaba por ter um núcleo mais fechado, não é um tipo de música que chegue a tanta gente, ou se calhar a gerações mais novas como é o caso do público do Sol da Caparica. Mas estava tudo bem. Quando percebo que a coisa começa realmente a ganhar essa dimensão e estou num caminho de possivelmente vencer, fiquei “isto não está a acontecer” [risos]. E olha, aconteceu mesmo [risos]. Demorei um bocadinho a processar o que tinha acontecido, mas fiquei muito feliz. E depois no Sol da Caparica estava também muito feliz por estar ali.
É sinal que a malta está atenta ao teu trabalho, e que gosta.
Sim, lá está, é sinal que as pessoas estão a ouvir e a dar valor. Ainda para mais, ouvi todos os nomeados, já conhecia o trabalho do Miguel Carmona e da Joana Almeirante, só não conhecia o do Lucas Pina, e são todos artistas incríveis, que tal como eu estão a começar, portanto há muito caminho para fazer, mas todos eles com muito valor.
Já mencionaste que tens também uma carreira como stylist. De que forma as tuas duas paixões — música (fado) e moda — se influenciam mutuamente?
Olha, tem tudo a ver com o facto de gostar de contar histórias. Digo sempre que o styling é uma forma de eu contar histórias mas só que com roupa. É uma forma que também tenho de me expressar. Este é o ponto comum que encontro entre as duas áreas. São ambas formas de expressão, no fundo.
Vês então paralelismos no processo criativo de desenvolver uma peça de roupa e criar uma canção.
Sim. Imagina, sou muito visual, ou seja, quando há uma música, estou a pensar nela visualmente. Não no processo de cantar. Num pós. Há sempre essa linguagem visual. E, naturalmente, no styling também. Posso estar a criar um editorial e a pensar numa banda sonora por trás. Há sempre um ponto de ligação entre as duas coisas. Às vezes até brinco com isso, estou a fazer um editorial ou qualquer coisa assim e penso “isto é mesmo à fado”. Digo isto para mim, claro [risos]. Sei que as pessoas não vão possivelmente entender o que quero dizer com aquilo, mas é algo que está no meu subconsciente que me remete para esses lugares. Acabo sempre por beber dos dois lados.
Para terminar, fala-me um pouco da tua relação com a MORADA, a agência que te acolheu, e o que andam a preparar para os próximos tempos.
Cada vez sinto mais que tive muita sorte em todo este processo, mas a sorte dá muito trabalho e posso dizer que trabalhei muito para chegar aqui. Ou seja, isto é um processo de construção de há muitos anos. Comecei a cantar em miúdo e, quando dou por mim, quero ser fadista, quero fazer disto vida, com tudo o que isso implica, e comecei a trabalhar nesse sentido.
Não tive nenhuma agência até quase a fase final do processo do disco. De facto, algumas agências mostraram interesse em trabalhar comigo, mas senti que queriam moldar, de certa forma, o caminho que eu queria e não era, de todo, isso que eu procurava. Sempre quis ser muito fiel a mim próprio. Então acabei por recusar alguns convites. Outras pessoas simplesmente não tinham disponibilidade, de momento, para trabalhar comigo – levei alguns nãos nesse sentido. Não tinha ouvido falar da MORADA até o Alex D’Alva me falar sobre eles. O Alex encontrou-me numa campanha em que eu estava a fazer o styling do ModaLisboa e disse-me “Sérgio, gosto muito de te ouvir cantar, estás a trabalhar com alguém?”. E ele nem sequer sabia que eu estava a gravar, e eu já estava mesmo na fase quase final de gravação. Falou-me então da MORADA e eu contactei-os. Numa fase inicial eram para fazer apenas comunicação do disco e distribuição digital, até porque mais uma vez disseram-me que tinham a agenda cheia, os artistas estavam fechados e não tinham espaço para trabalhar mais ninguém, e eu “ok, na boa, vamos trabalhar a comunicação e distribuição e depois logo se vê”. Entretanto, depois de verem o meu primeiro concerto de apresentação no Centro Cultural de Belém, marcaram uma reunião comigo e mostraram interesse em começar a trabalhar comigo de uma forma mais regular, ou seja, a agenciar-me. Há pessoas que, se calhar, não têm essa noção, mas é mesmo muito difícil conseguir oportunidades, é um meio mesmo muito difícil. E a MORADA deu-me essa oportunidade. São pessoas que me entendem super bem, que nunca me criaram limitações. Obviamente que me aconselham, e ainda bem, mas nunca me incutiram um caminho que eu não quisesse, que não fosse o meu. Estou super agradecido por trabalhar com eles, mesmo.
Novidades… Já temos alguns concertos marcados. Vamos ter agora dois concertos de apresentação na FNAC, dia 1 de novembro na FNAC Chiado e dia 24 de novembro na FNAC Colombo. Temos algumas datas para o ano já marcadas em alguns auditórios, que depois irei revelar, e brevemente irão sair alguns vídeos que estamos a trabalhar. Não serão tanto videoclipes, mas pequenas apresentações que quero fazer. Alguns vídeos até são de temas que gravei. Por exemplo, tenho uma faixa no disco que é “Por Saudade Ou Por Memória (Disse-te Adeus)”, que gravei ao vivo na Tasca da Bela – Casa de Fados, onde canto todas as sextas-feiras, há muitos anos, e quis registar esse momento. Portanto, é uma das muitas coisas que vão sair em breve.
Sérgio Onze canta NÓS em novembro nas FNACs do Chiado (1 de novembro) e do Colombo (24 de novembro). Os showcases têm entrada grátis.
Fotografia de destaque: Ricardo Santos