Definir uma identidade musical própria não é tarefa fácil. Para Francisco Teixeira (voz e baixo), João Melo (voz e guitarra) e Ricardo Oliveira (bateria), que juntos formam os Mt. Roshi, o caminho até lá chegar tem sido marcado por uma evolução louvável desde o lançamento do seu EP homónimo em 2019, Mt. Roshi.
Em Mt. Roshi, o trio apresentou uma abordagem mais crua e experimental marcada por sonoridades lo-fi e psicodélicas, estabelecendo as bases da sua química musical. No entanto, a direção tomada em Não Vá o Diabo Apetecê-las, o seu álbum de estreia lançado em 2024, foi rumo a uma produção mais polida e uma coesão sonora, demonstrando assim uma maturidade artística digna de aplausos. Neste novo trabalho, Mt. Roshi mergulham nos dilemas quotidianos, refletindo a luta para manter a autenticidade da juventude. As letras, agora em português, abordam temas introspetivos e universais, enquanto a sonoridade se expande para incorporar influências do indie rock, punk, jazz, hip-hop e jazz de fusão.
Francisco, João e Ricardo conseguiram transformar as suas experiências pessoais e musicais num disco que não só reflete o seu amadurecimento e a sua amizade, mas também estabelece uma identidade sonora única no panorama musical português. Nada melhor do que os próprios protagonistas para nos dar a conhecer melhor a sua história até aqui e, por isso, a Playback decidiu conversar com os três compinchas, culminando num momento recheado de contemplações e gargalhadas.
O que vos uniu originalmente como banda?
[Ricardo Oliveira] Conhecemo-nos todos na escola, há muito tempo atrás. Na altura, eu já tocava bateria, o Chico tocava guitarra-
[Francisco Teixeira] Dava uns toques na guitarra, sim.
[Ricardo] O Chico dava uns toques na guitarra e o Johnny tocava baixo. Depois com mais outras duas pessoas… Convidaram-nos para tocar lá na escola e fizemos um concerto de covers aparentemente icónico [risos], pelo menos para nós. Depois disso, o Johnny foi morar para os Estados Unidos e, cada vez que ele voltava, juntávamo-nos só os três e, a partir daí, começou a surgir a dinâmica de banda, digamos que mais estabelecida. Desde então, começámos a fazer músicas nossas e a tentar ganhar uma sonoridade.
[João Melo] Eu e o Chico trocámos de instrumentos, na verdade [risos].
[Ricardo] Eia ya, pois foi.
[Francisco] Exato. Queres que explique, Johnny [risos]?
[João] Força [risos].
[Francisco] Isto aconteceu porque o Johnny quando foi para os Estados Unidos deixou-me o baixo antigo dele-
[João] Ah, pois foi [risos].
[Francisco] Foi do tipo “aprende aí que quando eu voltar vai dar jeito”. Então, sempre que havia tempo, eu ia tocar baixo com o Ricardo enquanto ele treinava bateria. Depois fomos metendo outras pessoas à mistura, mas sempre que o Johnny voltava, de facto, eu continuava a dar uns toques no baixo em vez de… Repara, é que na verdade eu não dava muitos toques na guitarra [risos]. No nosso concerto de covers a guitarra estava em mute a maior parte do tempo [risos].
[Ricardo] Por isso é que soou tão bem [risos].
[Francisco] Exato [risos]. Icónico [risos].
Lançaram em março do ano passado o vosso primeiro longa-duração, Não Vá o Diabo Apetecê-las. O título carrega um jogo de palavras marcante e um tom irónico. Como chegaram a ele?
[João] O título em si surgiu porque eu sou um bocado disléxico mentalmente [risos].
[Risos] Isto só me lembra a expressão «não vá o Diabo tecê-las».
[João] E bem. Mas a verdade é que eu passei a minha vida inteira a achar que a expressão era, de facto, “não vá o Diabo apetecê-las” [risos], só que os portugueses nunca abrem a boca. Disse isto uma vez num ensaio e riram-se todos. Depois começámos a pensar “espera aí, isto até é um título engraçado”.
De que forma traduz o conceito central do disco?
[João] Um dos pontos principais do disco, pelo menos para mim, é a ideia de que a qualquer momento as coisas podem correr mal, seja algo como um acidente de carro ou até mesmo pessoalmente, por exemplo, podemos entrar em estados mentais completamente brutos e depressivos. Mas, ao mesmo tempo, uma grande parte deste disco é também sobre amizade, neste caso entre nós os três, que sempre nos ajudámos uns aos outros em todo o tipo de situações. Basicamente, o Não Vá o Diabo Apetecê-las aborda o sentimento de gratidão para com todas as pessoas à nossa volta que nos dão amor, porque não vá o Diabo (ape)tecê-las e do nada isto pode correr muito mal e podemos ficar na miséria [risos], mas até aí há que ter sempre um grande amor e apreciação pelos outros.
[Ricardo] Vou chorar um bocadinho.
[João] Vá [risos].
Vocês usam o Diabo como uma metáfora para dilemas, inquietações e processos mentais, tais como ansiedade e depressão. Consideram que a música tem o poder de exorcizar esses “demónios” pessoais?
[Francisco] Sim. De certa forma, o nosso álbum nasceu precisamente desse exercício. O percurso que fizemos desde que o Johnny voltou… O Não Vá o Diabo Apetecê-las é um pouco o agarrar daquela questão da sonoridade que estávamos a tentar ganhar, como o Ricardo referiu no início, juntamente com o ponto que tocaste agora. Imagina, o contacto entre mim e o Johnny a tentar escrever letras e a fazer melodias foi muito isso, ou seja, foi agarrar naquilo que nós os três estávamos a passar. Logo, é um exorcizar dos nossos “demónios” pessoais. Foca na abertura que tu sentes quando estás a conversar com os teus amigos. Acontece exatamente [o mesmo] connosco. Todos sabíamos o que se passava com cada um. Portanto, o processo acabou por ser muito natural. À medida que íamos conversando sobre o que quer que fosse, íamos descobrindo a nossa forma de cantar sobre as cenas e, de certa forma, íamos definindo a nossa identidade.
Por exemplo, em faixas como “Véu”, “Despertador” e “Sporto” exploram precisamente temas como isolamento, depressão e ansiedade. Foi difícil trazer esses sentimentos à tona e transformá-los em arte?
[João] Depende, fomos os dois a escrever as letras-
[Francisco] Ya, ou seja, foram abordagens diferentes, mas dá-lhe Johnny, começa.
[João] Confesso que, na altura, estava a passar por um mau bocado a nível mental e a certo ponto pensei “ok, estou aqui com os meus pensamentos e estou a passar mal – escrevo sobre isto e até pode haver quem se identifique ou escrevo sobre outras coisas?” Portanto, para mim, não foi difícil porque mais valia fazer alguma coisa com estes sentimentos artisticamente do que mantê-los só para mim e, sei lá, estar a escrever sobre o que comi ontem [risos].
[Francisco] Lá está, a minha resposta vai noutra direção. Apesar dos temas serem parecidos, as abordagens das letras são diferentes. Mencionaste a “Véu” e a “Despertador” que, para mim, foram possivelmente as músicas mais difíceis, para ser sincero. Especialmente a “Véu”. O instrumental da “Véu” foi das primeiras coisas que fizemos, surgiu ainda antes da pandemia, logo depois de lançarmos o nosso EP. Andávamos a fazer umas jams e nasceu esse instrumental. Na altura, se não me engano, ainda cantávamos em inglês. Mas, ainda assim, a “Véu” foi das últimas canções a ganhar letra e a ser fechada. Na altura, foi muito difícil para mim estar sozinho em casa a articular tudo o que se passava – isto até acaba por ser a descrição da “Véu”. E, na verdade, penso que todos nós sentimos uma certa dificuldade em expressar o que estávamos a sentir quando mudámos do inglês para o português. Imagina, há níveis do quão honesto tu estás a ser com o sentimento que tu estás a tentar passar. Dá para o fazer, mas para nós tinha que ser em inglês. Só que em inglês, o nível de honestidade é… Não sei, parece que tu não estás, de todo, a ser honesto, parece que está cheio de metáforas, e ao passar para o português começámos a pensar cada vez mais “ok, já não dá para fugir do que nós estamos a sentir”. Mas, lá está, como para mim a “Véu” representa o culminar dos sentimentos depressivos e do isolamento foi, sem dúvida, a mais difícil. Mas depois houve um clique que não teve a ver só com o tema, mas também com o quão bem eu estava a sentir-me na minha pele a cantar estas coisas. Na verdade, o álbum também veio muito deste processo. Por exemplo, quando começámos a fazer o álbum eu não me sentia cem por cento confortável na minha pele de ser vocalista, de cantar letras, de falar sobre estas coisas e isso foi mudando com o tempo.
São também temas recorrentes a luta com a inércia e a busca pela identidade, como podemos ouvir em “Antes de Ires” e “Olá”. Sentem que este disco vos ajudou a encontrar um equilíbrio ou uma resposta a esses dilemas?
[João] Ricardo, queres falar? [risos]
[Ricardo] Os dilemas estão sempre lá, a diferença é que as ferramentas que tu tens para lidar com eles vão sendo outras à medida que vais crescendo. Quer queiras quer não, tu vais expressando-te de maneiras diferentes, daí eu sentir também que usar música ou arte no geral como forma de exprimir estes dilemas acaba por tecer um veículo. Mas, lá está, os dilemas continuam a estar lá, não sinto que não estejam [risos]. Podemos até ser pessoas mais resolvidas hoje em dia, mas nada desaparece assim instantaneamente, eu acho. Ou seja, estás noutro nível de maturidade, mas continuas a precisar de lidar com tudo.
Os dilemas continuam dentro de ti mas se calhar agora olhas para eles de uma outra forma.
[Ricardo] Olho com outra perspetiva, exatamente. É isso, sem dúvida.
Há um elemento-chave nas letras que são expressões populares. O que é que acrescentam à narrativa?
[Francisco] Johnny, queres que a gente-
[João] Vão, é que não me estão a ocorrer expressões populares nenhumas [risos].
[Ricardo] Parece que estamos num escorrega, tipo num Aquashow, “vai tu”, “não, vai tu” [risos].
[Francisco] [risos] Acrescentam algumas coisas. Por exemplo, contribuiu para aquela questão que eu estava ainda há pouco a falar sobre honestidade. É uma questão de reliability, ajudou-nos a comunicar melhor e a atar as pontas soltas do álbum, no fundo é isso. Ou seja, as expressões populares ligam os dilemas pessoais que estamos a articular com uma espécie de consciência cultural. Isso foi muito importante para nós no que diz respeito a toda a figura do Diabo. Pegando no que Johnny disse há pouco, sobre o clique que lhe deu quando ele diz “não vá o Diabo apetecê-las” e nós “man, lá estás tu outra vez” [risos]… Depois de pensarmos que a expressão ficou ótima e que dava um bom nome para o disco, começámos também a pensar “quantas expressões, na verdade, é que existem na Literatura Portuguesa que referem o Diabo?” E acabámos por fazer umas brincadeiras com isso, ou seja, metemos um sentido nosso naquilo que é a figura do Diabo. Além disso, usarmos expressões populares ajudou a aproximar-nos mais de quem está a ouvir, porque a certo ponto já não somos nós com a nossa lírica específica, é uma junção das nossas letras com expressões da nossa língua e é assim que tentamos passar uma mensagem. Depois disso começámos a unir o álbum todo. Quando se fez essa piada com o título, já tínhamos umas sete ou oito músicas, mas ainda não estávamos a fazer o exercício de “como é que elas se vão ligar”, embora nós tivéssemos a noção que, no fundo, elas ligavam-se entre si. Depois que começámos a brincar com as expressões nasceram as últimas músicas, “Não Vá o Diabo Apetecê-las” e “Advogados do Diabo”, e aí é que casámos tudo.
[Ricardo] Além disso, também tem a ver com o próprio percurso do álbum, ou seja, não é por acaso que o álbum começa com “Não Vá o Diabo Apetecê-las” e termina com “Advogados do Diabo”. Ou seja, diria que são ambas expressões de amizade – tens um início a falar sobre amizade e um final a falar que vai ficar tudo bem e que faz parte. Mas depois todo o recheio, por assim dizer, é que é o verdadeiro percurso da figura do Diabo, ou seja, a maneira como o Diabo pode influenciar ou não a tal questão do estado de espírito e da maneira de lidar com isso. Por isso é que o Johnny disse aquilo inicialmente sobre uma das mensagens do álbum de “não vá o Diabo (ape)tecê-las e do nada isto pode correr muito mal, mas vamos ter sempre ao nosso lado os amigos e as pessoas que nos são queridas e vice-versa”. Isto é a descrição do nosso percurso – pode correr mal, podemos acabar por fazer uma lista do que nos aconteceu [risos] e depois, no final, terminamos com a tal afirmação que “está tudo bem” porque estamos cá uns para os outros.
[Francisco] De certa forma, acabámos por tornar a expressão nossa. E o mais curioso e engraçado em encontrar este tipo de expressões é perceber que a maioria delas revelam que nós, portugueses, não conseguimos controlar situações, ou chamamos o Diabo ou chamamos Deus. É «não vá o Diabo tecê-las” ou é “ao deus-dará”, e tantas outras. Agarrámos nisso para dizer “ok, aquilo que estamos fundamentalmente a falar é sobre falta de controlo, porque as coisas acontecem-nos”, só que por termos todo um recheio acaba por dar àquilo que disseste – já tocaste nas duas dimensões principais -, num lado temos a falta de controlo, noutro lado temos uma certa ironia. Ao dizer “não vá o Diabo apetecê-las” estamos a ser meio irónicos, ou seja, nós já não estamos a levar o Diabo a sério, já não existe esta falta de controlo de “oh meu deus, o Diabo controla o jogo”, é antes “deixa o Diabo controlar o jogo”. É isto, o Diabo acaba por se tornar numa figura mais específica do álbum e já não é só uma expressão popular.
Sentem que este disco reflete mais a transição para a vida adulta ou a luta para manter a autenticidade da juventude?
[João] Eia bem [risos]. Grande pergunta.
[Francisco] Parece-me que esta é mais para o Johnny [risos].
[João] Diria a segunda, porque, pessoalmente, sinto que o álbum foi fruto de brincadeiras quando estávamos juntos. Quando estamos juntos, especialmente a tocar, eu sinto-me bastante… Não quero dizer jovem, senão parece que tenho cinquenta e oito anos e estou aqui a dizer “ah, nos velhos tempos, quando tocava numa banda…” [risos]… É a brincar. Como adultos, quanto mais velhos ficamos mais perdemos as nossas brincadeiras e eu sinto que a música, pelo menos para mim, vai sempre manter em mim um espírito jovem que é… Parvo, rimo-nos a toda a hora, às vezes também nos chateamos uns com os outros mas isso também faz parte de ser jovem. Como nós, neste caso, nos conhecemos desde miúdos, é também um manter da criança/adolescente interior. Percebo que para muitas pessoas possa ser uma transição para a vida adulta, porque “ah, é depressivo, e ficas mais velho, e a vida é mais difícil”, mas eu tento arranjar um objetivo contrário que é “ok sim, está tudo mal e as coisas estão difíceis mas agarrem-se às brincadeiras, agarrem-se aos vossos amigos, agarrem-se às pessoas que querem saber de vocês e que vos fazem rir como se ainda fossem miúdos”. Está bom? [risos]
[Risos] Perfeito. Melhor era impossível.
[João] É a melhor maneira que consigo explicar.
[Ricardo] Andamos a brincar às bandas, é isso que estás a dizer [risos]?
[João] Andamos a brincar às bandas e do nada um gajo está aqui a ser entrevistado [risos].
[Risos] Mas percebo o que dizes, João. Nota-se que fazem isto por amor à camisola. Além disso, passam cá para fora na perfeição essa expressão de amizade que falas, de um crescimento em conjunto. É bonito.
[Francisco] É isso mesmo. E ótima pergunta, by the way. Captaste mesmo bem a cena.
[João] Mesmo.
[Francisco] Chegámos a falar sobre isto, na verdade. Quando nos candidatámos ao apoio da SPA, falámos sobre isso no texto que tínhamos que escrever, porque acho que havia um parágrafo qualquer sobre a transição para a vida adulta e o Johnny disse isso do tipo “ok, não é que eu não concorde mas acho que o ponto devia ser o recuperar de algo que ficou para trás” e acabámos por concordar todos com isso.
Há influências de vários géneros no disco, como indie rock, punk, jazz e hip-hop. Como fizeram para equilibrar essas sonoridades tão distintas e criar uma identidade coesa?
[Ricardo] Nós já nos conhecemos há muito tempo e sempre partilhámos muita música entre nós. Há muita música que eu conheço, sem dúvida, à pala deles os dois. Mas claro, cada um ia tendo as suas preferências. Isto obviamente que influenciou a nossa sonoridade, acho até que contribuiu para soar mais harmonioso. Ou seja, tivemos que trabalhar na nossa sonoridade no sentido de ir à procura de algo e de perceber como é que ela seria, com muito bater com a cabeça na parede pelo meio. Mas vendo o resultado do álbum, eu diria que o processo foi natural, muito à pala termos crescido juntos e de partilharmos muita coisa.
Algum tema ou ideia que tenha ficado de fora?
[Ricardo] Tema acabado, não. Mas algumas ideias não chegámos a pegar. Ou seja, chegou uma altura em que tínhamos que definir o que queríamos fazer e, a partir daí, acho que definimos as ideias com as quais queríamos trabalhar e avançámos. Portanto, houve outras que ficaram para trás.
[Francisco] Sim, sim. Não houve propriamente um tema que tenha ficado para trás. Lembro-me que no final faltavam-nos duas músicas e acho que havia quatro ideias a circular, portanto tivemos que fazer uma seleção.
Sentiram grandes desafios durante a produção do álbum?
[Francisco] Cada um de nós sentiu desafios particulares, acho eu. Para mim, por exemplo, o maior desafio foi embody the mood que estava presente em algumas das músicas, ou seja, conseguir articular com a voz aquilo que a música estava a pedir em alguns aspetos e foi aí que senti que batemos algumas vezes com a cabeça na parede.
[João] Diria que é importante dizer também que o Ricardo é muito bom músico e professor [risos]. Com este álbum, e eu acho que o Chico também vai concordar, aprendemos… Técnicas diferentes… Como é que se diz, Ricardo? Time signatures, em português-
[Ricardo] Compassos compostos. Ensinei-os a contar até cinco, é isso que ele quer dizer [risos].
[João] Exato, ensinou-nos a contar até cinco [risos]. Houve momentos na criação do álbum que era literalmente o Ricardo a dizer “vá Johnny, um, dois, três, quatro, cinco” [risos]. Por momentos só pensava “opa agora está aqui um gajo a ter uma aula de teoria num ensaio” [risos]. Mas depois ao ouvir o resultado final, ainda bem que essas aulas aconteceram.
[Francisco] Concordo, mas ainda assim não sinto que tenha batido tanto com a cabeça na parede aí. Mas ya, bati um pouco, especialmente na “Véu”, mais uma vez, que é em cinco por quatro, portanto em 2019 estávamos a aprender a contar cinco por quatro [risos]. Ah, e essa questão dos compassos compostos, eu acho que é um exemplo de como funciona esta coisa de “como é que nós casámos as nossas influências com a nossa sonoridade”. Ouvíamos muita música que partilhávamos entre nós e músicas que as pessoas à nossa volta iam-nos mostrando e, lá está, a nossa sonoridade apoia-se muito por aí. Mas o que eu quero dizer é que os compassos compostos não eram novos para os nossos ouvidos e, portanto, nós aprendermos a técnica foi ótimo, porque do nada criou-se uma caixinha com as coisas que andávamos a ouvir e as ideias que nos surgiam. Portanto, nada disto existia se o Ricardo não nos ensinasse a contar cinco por quatro [risos]. O Ricardo ensinou e uns anos depois estava eu com a guitarra do tipo “ah espera aí, isto é um cinco” [risos].
[João] Agora temos um outro problema, já ninguém consegue escrever uma música de pop, estamos lixados [risos].
[Francisco] Eu não diria isso, por acaso [risos].
[Ricardo] Para o próximo álbum, quem sabe… [Risos]
Em 2019, tinham lançado um primeiro EP, Mt. Roshi. Ou seja, existe aqui um espaço de cinco anos entre trabalhos. O que mudou no vosso processo criativo? Alguma abordagem que sentiram ser especialmente libertadora ou transformadora neste álbum?
[Ricardo] Sim, muita coisa mudou, sem dúvida. Ou seja, quando começámos a tocar por tocar e a tentar ganhar uma sonoridade, basicamente fazíamos jams intermináveis, ninguém conseguia pôr um fim naquilo [risos]. Alguém metia a gravar e eram tipo uns quarenta e cinco minutos. E isso mudou. Quando começámos a tentar ganhar material e sonoridade para este disco as nossas jams reduziram bastante. Começaram a ser mais concretas do tipo “ok, vamos fazer uma jam com esta ideia ou vamos pensar numa palavra qualquer e a jam vai ser à volta disso” e do nada a jam tinha uma direção e demorava uns sete minutos, quinze minutos no máximo se estivéssemos muito inspirados. Depois outras coisas mudaram mas deixo-os falarem sobre isso.
[João] Ah sim, passámos do inglês para o português, como já referi. Isto aconteceu porque tivemos um membro, durante algum tempo, que sugeriu que nós cantássemos em português e nós decidimos encarar esse…
[Ricardo] Desafio?
[João] Desafio, é isso [risos]. E o Chico já falou sobre isso, mas uma das coisas que nós notámos é que em português temos que ser muito mais literais e, por isso, é que eu também senti uma certa dificuldade em começar a escrever em português. Já em inglês era muito mais “vamos, a música é sobre nada, é sobre tudo, podes interpretar de mil maneiras”-
[Francisco] Ya, ya, completamente.
[João] E em português, pelo menos para mim, do nada notei “ei, isto tem que ter mesmo uma mensagem por trás, tem que ser muito mais expressivo e direto”. Foi mesmo uma das maiores mudanças. Como podes perceber, também tenho problemas em falar [risos], mas ya tanto com a lírica, como manter as coisas no ritmo e encaixar tudo, foi bastante difícil para mim. E para o Chico não sei, fala aí [risos].
[Francisco] Também sinto que tenha sido a maior mudança. Tal como a questão das jams. Por exemplo, as músicas do EP eram todas jams ou eram ideias que o Johnny trouxe que se transformaram em jams. Vale também dizer, quanto ao EP, que… Repara, nós já estávamos a tocar há dois anos, acho eu, porque o Johnny já tinha voltado, e ele estava na ETIC a fazer produção musical e o EP foi o projeto de fim de curso do Johnny. Portanto, havia ideias do Johnny que nós transformamos em jams e depois metemos uma letra em inglês por cima, sem falar sobre nada em especial ou a falar sobre coisas mas sem te aperceberes do que se tratava-
[João] Ya, ya.
[Francisco] Olhar para as letras do EP agora e perceber do que estávamos a falar, mas não ter a capacidade, de facto, de falar sobre isso, na altura. Resumidamente, começámos a apoiar-nos muito mais em ideias vindas de casa, ou seja, as jams perderam o papel de criação inicial e passámos a utilizá-las como ferramenta para trabalhar essas mesmas ideias que vinham de casa, e isso mudou muito também por input do Ricardo. Houve uma altura em que já tínhamos duas ou três ideias, estava a faltar-nos direção e o Ricardo disse “ok, o que tem que acontecer é que temos que ir para casa, ter ideias e depois trazer e começar a trabalhar a partir daí”. Na verdade, mudou tudo. É mais difícil encontrar os pontos em comum entre o EP e o álbum do que as diferenças.
Sentem de alguma forma que a vossa dinâmica enquanto banda mudou durante estes cinco anos?
[Francisco] Abriu mais.
[Ricardo] Sem dúvida.
[Francisco] Porque tivemos de afinar mais a vulnerabilidade de trabalhar as ideias em casa, trazer coisas com alguma direção e mostrar. Ou seja, a dinâmica em si manteve-se, mas sem dúvida que assumimos mais essa vulnerabilidade que no início fazia parte de nós enquanto grupo de amigos, mas não necessariamente enquanto banda.
O disco conseguiu aproximar-vos ainda mais.
[Francisco] Na verdade, é difícil aproximar-nos mais [risos].
[Ricardo] Estamos todos na mesma casa, neste momento [risos].
[João] Mas é verdade, sinto que nos aproximámos ainda mais. E no meio disto tudo, acho que, em termos de criação, temos menos vergonha, pelo menos eu sinto isso. Dando aqui um preview para o que vem a seguir-
[Ricardo] Ai, ai [risos].
[João] O Ricardo começou também a trazer mais músicas de casa e a escrever letras. No álbum, era só eu e o Chico a escrever as letras, maioritariamente separados. Sinto que agora estamos mais numa de ter letras todos juntos, portanto acho que temos menos vergonha de poder trazer ideias e “tomem esta ideia, estou a cantar falsete a tempo inteiro” [risos] e já não há aquela… Antes tinha medo de me embaraçar ou experimentar coisas fora da minha zona de conforto.
[Ricardo] Isso é um ponto interessante. Até lançarmos o álbum só tínhamos o EP e o EP já não era algo com que nos identificássemos muito, porque já estava distante e com uma sonoridade diferente, e nós não fazíamos ideia até que ponto é que aquilo que nós estávamos a fazer quando estávamos a fazer o álbum era bom [risos]. Tínhamos esse dilema que era tipo “ok isto soa-nos bem mas não estamos a mostrar isto a ninguém”. Só mesmo às pessoas mais próximas, mas é tipo se tu mostras à tua mãe ela vai dizer sempre que é boa [risos].
[Francisco] Depende da mãe [risos].
[Ricardo] [Risos] E a partir do momento em que lançámos o álbum e o feedback foi positivo… Não estou a dizer que é só por causa disso do tipo “ah agora as pessoas dizem que gostam e portanto aquilo que nós estamos a fazer está ok”. Não. Estou a dizer que é normal que isso nos dê alguma segurança e essa segurança transfere-se para a maneira com que nós interagimos com as ideias que trazemos.
[Francisco] Diria só que aí… Quer dizer, isso são questões de dinâmica misturadas com questões pessoais. Não sei se o que mudou foi propriamente a nossa dinâmica. Talvez o que mudou seja mais pessoal, porque eu acho que estávamos a espelhar uns para os outros as inseguranças que nós tínhamos quanto às coisas que estavam a acontecer-
[Ricardo] Sim, sim.
[Francisco] Ou o quão vulneráveis nós queríamos ser ou a direção que nós queríamos tomar com as coisas e aí o feedback, sem dúvida, ajudou. Quando nós apresentámos o álbum pela primeira vez num gig – o álbum ainda não tinha saído -, o feedback foi positivo e eu acho que houve um clique de “ok espera, isto já não são só devaneios pessoais que tu estás a transformar numa sonoridade com um grupo, isto já não é só a questão das inseguranças que eu tenho mostrado a essas pessoas, isto são músicas e tu estás a mostrar ao público em geral”. Isso muda de figura, claro.
Que tipo de impacto esperam que este álbum tenha, tanto na vida dos ouvintes quanto na vossa trajetória enquanto banda?
[João] Como ouvinte, pessoalmente, diria que se uma música do nosso álbum tornar o teu dia minimamente melhor, o objetivo está cumprido. Seja para estar a chorar, a rir, a dançar. O álbum foi uma ajuda emocional enorme para mim, tal como o Chico e o Ricardo, portanto se a nossa música conseguir fazer isso por alguém, o sonho está concretizado.
[Ricardo] Sem dúvida.
[Francisco] É isso, só que sem expectativas, porque é como nós utilizamos a música também, a música de outras pessoas, ou seja, sempre com… Ouvir música pelo estado emocional em que te coloca. Ou seja, a música é uma ferramenta para conseguires aceder a ti mesmo, portanto esperemos que a música seja utilizada assim mas sem expectativas, claro. Quanto à nossa trajetória enquanto banda, essa é uma pergunta lixada, por acaso [risos].
[João] Ya [risos].
[Ricardo] Isto aqui falo por mim só mas diria que… Um álbum é um álbum e enquanto artista é bom teres a tua identidade e isso tudo, mas não gosto muito de repetir ideias, por assim dizer. Não diria que o nosso próximo projeto vá soar… Ou seja, pode partilhar algum ADN, mas duvido que vá soar, pelo menos da minha parte, igual, porque também depende da fase de vida em tu estás e depende daquilo que tu queres expressar. É como tu estares a olhar para um álbum de fotografias, isto é, acabas por rever momentos. Funciona exatamente da mesma forma com a música. Acabas por ver, em algumas músicas, certos momentos ou experiências da tua vida e acho que isso não se vai transferir diretamente para um outro álbum, porque vão ser outros momentos e experiências. As personagens até podem manter-se, só que as situações são diferentes ou aquilo que se fala e se escreve é diferente.
A vossa música vai refletindo, portanto, o vosso estado de espírito, com altos e baixos.
[Ricardo] Ya, é isso mesmo.
Este disco é lançado num mundo muito diferente do de 2019, pós-pandemia. Como acham que as circunstâncias globais influenciam a forma como o público pode interpretar e conectar-se com este disco?
[Francisco] Imagina… Ai, mais uma pergunta lixada [risos]. Definitivamente que as pessoas estão mais prone a contactarem com estas experiências dentro de si, isso não dá para evitar, esse foi o efeito disruptivo da pandemia, obrigar-te a fechares-te contigo mesma. E atenção, podemos não só agarrar-nos ao nosso disco, mas também a muitas outras coisas que têm saído recentemente de música emergente portuguesa, em que se pode dizer a mesma coisa. Mas este álbum, na verdade, sendo super influenciado pelas circunstâncias globais, como tu disseste e muito bem, nunca refere as circunstâncias globais, portanto isto é… O álbum é uma espécie de POV pessoal que acaba por indiretamente refletir o contexto em que nós estamos inseridos, mas nós nunca actually estamos a referir o contexto em que nós estamos inseridos. Isto até se calhar é uma marca que nos vai acompanhar. Mas ya, tudo começou com a pandemia e agora é o que é-
[João] Mas amem-se uns aos outros.
[Francisco] Exatamente [risos].
[João] É um bocado isso. Está tudo a ir, nós próprios estamos a ir, portanto mais vale agarrarmo-nos a quem nos ama.
E agora para terminar, o que se segue daqui em diante?
[Ricardo] Em termos de projetos, já estamos a trabalhar e a explorar o próximo álbum, já estamos a fazer músicas. Mas sem muita pressão, é mais ver o que é que vai acontecendo e depois quando, de facto, tivermos material que se justifique, vamos tentar montar isso e tentar lançar o próximo disco.
[João] Quanto a isso, estamos a planear este ano darmos bastantes concertos e, lá está, talvez apresentar umas músicas novas aqui e ali e ver o que o público acha. Depois é ver se o público ouve e diz “epa ponham mais quatro anos nisso, pessoal” [risos].
Fotografia de destaque: Marie Bacelar