Mimi Froes é uma artista no sentido mais puro da palavra e é ela que acaba de nos oferecer um disco memorável, que tem tanto de feroz como de delicado, composto por doze faixas que vão desde canções joviais a baladas tranquilas, e ao qual nos rendemos à primeira audição. Chama-se Contornos, é o seu álbum de estreia e sucessor dos incontornáveis EPs Vamos Conversar (2020) e E a Cantar (2021).
À Playback, mostrou-se vulnerável, partilhando as suas maiores fragilidades e desvendando a história por trás de cada canção. No fundo, falou-se sobre a vida que é, por vezes, complicada, triste e dolorosa, mas recheada de oportunidades se olharmos para ela com outros olhos. De tudo isso conversámos, e muito mais, na entrevista que se segue.
Na penumbra de um processo de luto, permitam-me partilhar com vocês o quanto esta entrevista me deu anos de vida (obrigada, Mimi!); espero genuinamente que tenha o mesmo efeito com vocês pós-leitura.
Depois de dois EPs, tens oficialmente o teu primeiro álbum cá fora. Como é que te sentes?
Pela primeira vez, sinto-me com os pés assentes no meio musical. Isto porque sinto que os meus EPs foram bilhetes de entrada, como quem distribui aqueles cartõezinhos com o nome e número de telefone tipo advogados. Senti que estava só a entregar o meu cartão de visita às pessoas, mostrando o que é que eu poderia ser e trazer. Finalmente, quando se firmou, na minha cabeça, um trabalho mais objetivo, de facto, foi a altura certa para fazer um álbum. Portanto, acabo por sentir que agora sim: entrei com os dois pés para este meio, vim marcar espaço e dizer “olá, o meu nome é Mimi Froes, já me conheceram, mas agora vim apresentar-me formalmente”.
Fala-nos sobre o processo de promoção do álbum. Foi tudo extremamente bem pensado-
Foi, sim.
Foi iniciativa tua? O canal de transmissão no Instagram, os posts, os diretos à meia-noite a cantar as canções em acústico…
Imagina, uma das coisas que me fui apercebendo foi que algumas fórmulas de marketing funcionam cada vez mais à volta do anúncio de qualquer coisa, ou seja, fazer as pessoas quererem ainda mais. Como é que eu percebi isto? Li um artigo inteiro sobre o Midnights da Taylor Swift onde, basicamente, falava que à meia-noite, nos sete ou dez dias antes do lançamento do disco, ela tinha um momento meio aleatório, onde rodava uma coisa como se fosse bingo e lia o nome de uma das canções. Era só isto. Ora bem, claro que a Taylor Swift fazendo um vídeo tão pequenino e acessível tem um boom muito maior. Pensei então como é que eu poderia fazer isto de forma mais massiva. Em primeiro lugar, na altura, pensei nos vídeos, porque sabia que depois também ia querer usá-los para pôr por trás do Spotify como mini-videoclipes – esses pensei com o Sebastião Ferreira, que gravou comigo as imagens. Portanto, pensámos os dois um bocadinho nesses conceitos. Os canais de transmissão nasceram p’raí duas semanas antes de eu criar o meu e eu lembro-me de ter sido adicionada/convidada em alguns e estava a estranhar muito o que é que aquilo era. Houve uma vez que pensei “deixa-me lá ver o que isto é” e depois percebi que, no fundo, era uma coisa que eu já queria fazer – que eu acho que o Miguel Araújo tem, que é um número do Whatsapp só para fãs. Neste caso, não podem responder, o que é pena, mas, por outro lado, tem uma parte expositiva muito fixe e a malta vai reagindo. Houve uma adesão incrível. Por fim, os diretos à meia-noite… Primeiro, acho que à meia-noite é para os comprometidos, sem dúvida, não há hipótese. Segundo, acho que há sempre uma magia qualquer na forma como a canção nasceu, ou seja, na forma acústica, e eu acho que as pessoas sentem isso. Portanto, depois têm a mesma predisposição para ouvir o álbum com toda a produção, principalmente porque pensaram “olha como isto nasceu, ‘bora ver como é que isto ficou”. De certa forma, acho que fui pensando em várias coisas de promoção exatamente porque eu queria causar quase urticária deste álbum não estar a sair. Tipo, do género, é terça-feira, ainda não é sexta [risos]. Queria que o álbum se fizesse ouvir. Resultou, porque, na realidade, houve muita gente a dizer “o álbum mais esperado da semana”, “o álbum mais não sei quê”, e porquê? Exatamente porque as pessoas estavam à espera do álbum e isso foi trabalho dessa promoção, tenho a certeza absoluta.
Basicamente foste causando um bocadinho de suspense.
Sim, suspense, mas também curiosidade tipo “ok, se ela está a fazer tantas dinâmicas, o álbum deve ser super diferente” ou qualquer coisa assim e, na realidade, não é muito diferente. Ah, também tive o cuidado de informar as pessoas, desde janeiro, sobre o que é que o álbum ia ser. O engraçado é que, como a “Vai Ruir” foi o primeiro single e é o tema que mais resume o disco inteiro, as pessoas sentiram de forma muito mais concreta sobre o que ia ser o álbum.
Fizeste ali um belíssimo jogo de palavras com os títulos da primeira, sétima e última faixa (“Conto – Prelúdio”, “Torno – Interlúdio” e “Contornos”). Suponho que tenha sido intencional. Fala-me sobre elas.
Sim. Imagina, o nome do disco já existia, só depois é que criei a faixa “Contornos”. Aliás, esta, mais do que a “Vai Ruir”, é o grande resumo do álbum inteiro. Na minha cabeça, eu tinha que ir avisando da chegada deste tema para as pessoas não ouvirem menos ou irem decorando mais ou como referência de “nós vamos chegar ali”. Criámos então a “Conto” e a “Torno”. Porquê o jogo de palavras? Exatamente por fazer parte da palavra «contorno». “Conto” na ideia de contar uma história – até ao “Torno” canto as histórias nas quais perdi o controlo ou nas quais senti que as pessoas invadiram, de alguma forma, a minha privacidade/controlo. “Torno” é o ponto de viragem; da reação. Não é a viragem da perda de controlo, é a viragem no sentido de como é que eu reajo a isso. Tanto o “Conto” como o “Torno” têm melodias correspondentes ao “Contornos”. Ou seja, o “Conto” é a primeira melodia da estrofe do “Contornos”, só que vai variando, e o “Torno” anda sempre em torno da malha do “Contornos”. Portanto, a ideia era ir avisando que esta [faixa] ia chegar, privilegiar a palavra «contornos» e, ao mesmo tempo, anunciar sobre o que é que o disco está a falar, desfazendo a palavra «contornos».
O que te levou a trazer este conceito – (des)controlo – para o disco?
Olha, eu fiz terapia durante um ano, mas muito virada para a terapia da performance. No geral, eu até sou uma pessoa à vontade no palco, mas comecei a ganhar umas inseguranças muito estranhas. Sentia que já não tinha grande consistência em palco. Havia dias em que, de facto, me corria muito mal e tinha tudo a ver com essas inseguranças. Então, fui ter com esta psicóloga da performance, ela era muito fixe. Fomos desenleando o problema e chegámos ao problema do controlo. Imagina, a minha necessidade de controlo sempre foi muito grande e a minha necessidade de cumprir objetivos ainda maior é, e então isso exerce uma pressão tal que eu não me sei desligar dessa necessidade para conseguir pura e simplesmente usufruir, divertir-me e fazer aquilo que eu sei fazer melhor. Quando nós não sabemos largar a mão do controlo, o que mais acontece é que nós não atingimos o nosso potencial máximo, ponto final. Isto porque nós não somos capazes de lidar com fraquezas e sobressaltos; com coisas que nos possam, de alguma forma, fragilizar. Ora, isso fazia com que eu não chegasse à minha autenticidade máxima e à minha melhor prestação em palco. Depois, a partir daí, é óbvio que isto se foi ajustando a tudo da minha vida, que é “ok, isto veio daqui, mas veio de onde?”, “vem para o palco, mas vem de onde?” – e vem de várias coisas. Ou seja, o trabalho foi muito de desbravar precisamente o território do controlo de… Fora do palco – “onde é que na tua vida isto aconteceu?”.
Pode-se dizer que este Contornos é um disco autobiográfico? É inspirado em experiências pessoais?
Sim, sem dúvida.
Todas as canções, portanto?
Sim, imagina, há canções que, se calhar, são um bocadinho mais profundas, outras comecei pela experiência de outros e trouxe até mim. Por exemplo, a “Juiz” tem a ver com uma situação específica, que não foi minha, mas que eu acompanhei, muito embora depois traduza também nos assédios que eu própria já sofri, que muitas amigas minhas sofreram, desde aquele apalpão na discoteca – aquelas coisas, sabes.
Olha, apoderei-me das breves sinopses que partilhaste no teu Instagram para debruçarmo-nos mais a fundo sobre cada canção. Vamos começar pela “Lembra-me De Respirar”, a canção que fala sobre o luto. É das minhas favoritas.
Eu acho que é a minha favorita, para ser sincera. Esta canção, no fundo, acho que mais do que o luto é viver o luto a dois. Eu perdi a minha avó em 2017 e o meu namorado da altura – nós já não estamos juntos – perdeu a avó dele na mesma semana que eu. E o que é que acontece? Acontece que foi muito mais fácil viver um luto sem haver um lado de pena ou de super-herói, quando tínhamos que ter os dois pena e os dois ser super-heróis. Tenho uma imagem nossa na cabeça, dos dois a chorar no carro, sem saber bem o que dizer, e a verdade é que eu escrevi essa canção a pensar nela. Mas ao longo da canção fui abrindo ainda mais essa imagem, lembrando-me de quando fui buscar o meu irmão a casa de um amigo no uber e viemos os dois a chorar ou de quando fui abraçar a minha irmã e ela me disse coisas lindas ou de quando fui falar com a minha mãe e ela estava péssima. Esta canção transmite a ideia de sermos conforto e consolo e rocha um no outro e um para o outro. Eu acho que só assim é que o luto é possível ser vivido, porque sozinho é muito mais doloroso.
Sentes que ao escreveres sobre a perda de alguém estás, de certa forma, a imortalizar esse alguém na tua vida?
Acho que sim. Ou seja, há quem faça tatuagens, há quem faça canções [risos].
“Desenhos a Giz”, a canção que fala sobre baixar a guarda.
Eu acho que esta é aquela que toda a gente estranha um bocadinho mais dentro do conceito, porque é uma canção tão fofinha, sobre uma amiga e tal [risos]. Mas o que as pessoas não entendem é que eu levo muito a sério a minha privacidade. Eu sou aquela pessoa que acha que aos 25 anos já tem os amigos todos que alguma vez vai ter para o resto da vida, ou seja, que não me predisponho a conhecer pessoas novas, que tenho um bocadinho de medo até de eventos sociais onde eu possa conhecer pessoas novas. Quer dizer, eu gosto de conhecer pessoas novas, mas tem que ficar assim uma cena mais distante – não vamos beber café, não vamos não sei quê, o que é uma grande estupidez, mas é uma fragilidade minha. Tenho muito essa necessidade de privacidade e, ainda mais extrema, dentro das minhas amizades, está fora de questão pessoas dormirem na minha casa, pessoas chatearem-me quando não me apetece. Mas houve uma amiga minha, que é a Carolina Leite (Latte), que surgiu assim nos últimos anos da minha vida e foi um furacão. Ou seja, ela entrou na minha vida e foi tipo “agora eu vou dormir em tua casa, agora não sei o quê, e nós vamos juntas ver aquilo e ver aqueloutro”. Ficou uma amizade muito forte, daquelas que eu não vivia desde que eu tinha, sei lá, 8 anos? Por isso é que a canção até é um bocadinho infantil, porque foi uma amizade, para mim, um bocadinho infantil – a forma como aconteceu e como a vivemos. Na canção, começo por explicar porque é que está dentro da ideia do controlo, que é o “Em desenhos a giz encontrei o seu nome / Nas paredes do meu quarto bem impressas num sonho”, como quem diz “invadiste o meu quarto”. Ora, ela vinha para lá dormir muitas vezes, porque ela vive mais longe de Lisboa, e ficava lá depois dos concertos e das jams que nós íamos juntas e tudo mais. Depois, ao longo do resto do tema, é a descrição da própria pessoa, porque a pessoa é icónica, tem muita graça a forma como ela é e é mesmo real – “A cabeça vislumbra outra terra / Volta e meia vai para lá morar”. A partir daí, começa uma descrição mais longa e específica sobre a própria pessoa e, no fundo, a justificar o porquê da aceitação da violação da privacidade.
“Juiz”, a canção que fala sobre o assédio. Não é todos os dias que nos chegam aos ouvidos canções a abordar o assédio. Portanto, porquê trazer este tema para o disco?
Olha, vou ser totalmente honesta. Ultimamente, acho que até tem havido mais temas sobre isso, mas eu não queria fazer mais um. Mais um, não em quantidade. Mais um, a nível de igual aos outros. Qual era o meu foco? Em primeiro lugar, eu sabia que não ia ser single, porque se fosse single ia ser mais um, ia ser qualquer coisa que não chamaria a atenção. Ou seja, eu sabia que se estivesse dentro do álbum e as pessoas estivessem distraídas era um tema que as roubava ali durante um momento, porque sabia que era uma canção forte, principalmente a forma como foi desenvolvida e toda a produção toda. Aliás, escolhi exatamente algumas palavras para chegar ainda mais às pessoas. É uma canção que tem a palavra «nojenta». Nós não ouvimos isto muitas vezes e é de propósito, ou seja, é mesmo para puxar a atenção para a letra-
É interessante que menciones isso, porque quando ouvi a palavra, pela primeira vez, intrigou-me bastante. Não estava à espera, quero eu dizer.
É verdade, exatamente. Muitas vezes, o meu palavreado é tão sofisticado que «nojenta» é super banal. Eu sei que criei essa fricção entre a minha forma de escrever e a realidade. No fundo, é como se eu escrevesse mais poeticamente e a realidade fosse aquilo. É aquilo, é o comum. Na minha cabeça era “eu não quero fazer disto um grito de ajuda ou ativismo e eu vou estar a fazer isso se lançar a música como single; eu quero é lançar isto como facto, e eu só lanço isto como facto deixando incorporado no meu disco, como quem diz: malta, isto passa-se, estão a ver esta lista de canções? está aqui uma e isto é um facto”. Acho que, muitas vezes, quando nós priorizamos esse tipo de canções acabamos por perder um bocadinho pelo jogo do «chamar a atenção» que muito do público sente, que é… Mas calma, é o melhor «chamar a atenção», é mesmo necessário por milhares de razões. Mas, lá está, eu não queria isso. Agora está a acontecer o jogo inverso, ou seja, ao já ter sido encarado como facto, são cada vez mais as pessoas que vêm falar comigo como um ato, e aí sim, de um grito de guerra, e eu acho que também a forma como nós fizemos a produção foi muito importante nesse sentido. A letra repete duas vezes, como quem diz “vocês vão fixar isto”, e depois tem aquela parte muito emotiva do final e, ainda, o meu lado católico e esperançoso de “Se o juiz não julgar, julgue Deus / Se o juiz não julgar, julgue Deus”, e a última é “Se o juiz não julgar, julga Deus”. Portanto, uma certeza absoluta. Lá está, que é facto. Se nós humanos não temos mãos e capacidade de julgar estas pessoas, quem há-de julgar há-de ser Deus e logo se vê o que acontece [risos].
Sei que estudaste Direito há uns anos. Há aqui alguma ligação?
Olha, acho que sim, porque eu lembro-me de ver alguns casos. Eu sei que foi durante eu estudar Direito, mas não foi na faculdade especificamente. Houve alguns casos sobre os quais falávamos, às vezes, um bocadinho na faculdade – até de juízes que varriam para debaixo da mesa casos que pareciam graves para serem tal. Imagina, eu tenho uma tendência de ir sempre além do título, ou seja, eu faço sempre aquela questão de “ai é, clickbait? então, eu vou ler mais três artigos sobre isto”. Depois, nós chegávamos, muitas vezes, a conclusões que haviam casos mal explicados, mas haviam outros que, para nós, pareciam, de facto, muito mal julgados. Claro que nunca temos os pontos todos da questão e dos casos, mas sim, vi, soube e ainda sei de várias coisas assim… Eu sigo uma ativista, a Francisca Barros, sabes quem é?
Não, acho que não-
Ela põe imensa coisa sobre crianças e mulheres, e ainda hoje leio o que ela põe, vou ler os artigos correspondentes e, de facto, choca-me bastante as coisas que são varridas para debaixo do tapete. Lá está, a “Juiz” foi escrita porque eu acompanhei uma situação de perto e, de facto, é daquelas situações em que se sente que não se tem controlo nenhum – e não tem. É um momento super duro, por sabermos que não tivemos controlo na altura e não tivemos controlo do que acontece a seguir – e aqui é porque não está nas nossas mãos. Portanto, esta situação com cariz mais grave, mas depois existem as nossas pequenas situações. Lembro-me que um amigo meu ficou, uma vez, muito chocado quando vinha um estrangeiro com as mãos assim [abertas] diretas às minhas maminhas. Na altura, consegui desviar-me, mas são situações que, de facto, acontecem muito diariamente. No fundo, esta “Juiz” vem fazer um pedido e uma chamada de atenção mais em modo facto, como eu te dizia, do género “isto acontece e nós vamos ter esperança que Deus julgue, porque vocês não querem julgar” e «vocês» é juiz, às vezes os amigos da pessoa que o faz e/ou os nossos próprios amigos. Portanto, eu acho que vem exatamente com essa vontade de se estabelecer como facto para deixar de ser contornável.
“Águas Passadas”, a canção que fala das más línguas. Como surgiu esta canção e esta colaboração com a Luísa Sobral?
Olha, a colaboração com a Luísa Sobral surgiu quando ela escreveu a “Não Vás Já”. Na altura, tinha-lhe pedido para escrever um dueto e ela quando escreveu a “Não Vás Já” ficámos as duas a olhar para aquilo do género “bem, isto é muito bom, mas tem que ser cantado só por uma pessoa, não faz muito sentido ser por duas”. Decidimos então que a “Não Vás Já” ia ser só eu e, a partir daí, vinha a decisão de “se ela entrava ou se não entrava”. Só que eu queria muito uma canção com ela, por teimosia, por o que quer que seja. Então, eu já tinha pensado que esta canção poderia ser um dueto, muito embora a temática não seja de dueto, eu imaginava aquilo com uma voz como a da Luísa e, então, na altura, sugeri-lhe, ela gostou da canção e decidiu que ia gravar. Acho que todos os artistas, todas as pessoas que tenham, por alguma razão, uma vida diferente com sucesso – o meu caso não é de grande sucesso, atenção -, acabam por, às vezes, ser denominados como estrelinhas ou como pessoas que chamam a atenção ou divas ou o que quer que seja. Há muita tendência para isso acontecer nos meios onde nós vivemos, ou seja, de onde viemos de infância. Por exemplo, os nossos ex-amigos da escola; pessoas com quem já não nos damos, porque eles decidiram assim; pessoas que falam nas costas sobre a nossa vida. Eu não sei como é com os meus colegas, mas, no meu caso, aconteceu bastante ao longo do tempo, desde o Factor X, sabes? Nem era assim nada de relevante, mas foi uma coisa com que eu sofri bastante e uma das coisas mais importantes na terapia a ser resolvida. Isto é, nós vamos para sempre importar-nos com a opinião dos outros, é importante termos isso em consideração. Mas mais importante ainda é entender que a perceção dos outros pode não ser a verdadeira. Isso, para mim, foi a coisa mais importante a desbravar neste sentido que é “se calhar a tua perceção não é a correta, se calhar eu é que sei”, ou seja, as intenções desse meu ato, e aquilo que tu achas que foi uma chamada de atenção, eu sei que não foi. Pronto, esta canção roda em torno disso.
“Que Assim Seja”, a canção que fala sobre amar.
Eu costumava dizer, quando era mais nova – e ainda digo – , mas lembro-me que dizia muito isto: “vou aprender a amar ao longe”. Isto quando o namoro acabava. No fundo, eu tive dois namorados que acabaram comigo e eu acabei com um. Quando esses dois namorados acabaram comigo, eu dizia muito “então vou aprender a amar de longe”, ou seja, “não te posso ter, portanto vou amar de longe”. Descobri que havia um ajuste de contas no “amar de longe” quando somos nós a terminar o namoro ou quando somos nós que achamos que aquele namoro já não está a fazer sentido. O meu ex-namorado é provavelmente das melhores pessoas do mundo e a verdade é que eu sabia que o facto de estarmos a terminar a relação tinha pura e simplesmente a ver que na minha cabeça ele merecia uma pessoa muito melhor do que eu. Então, “Que Assim Seja” anda toda em volta de desenhar essa pessoa que provavelmente são as características que me faltam – aquilo está sempre a enunciar características, de “Que dance com humor” e tal. Algumas que eu tenho e que eu sei que ele gostava em mim e outras que eu não tenho e que acho que ele gostaria e lhe faria bem. É sempre em torno de: amar é largar a mão, amar é desejar o bem ao outro, seja em que circunstância for. Eu gostava de me sentir sempre assim como quando escrevi o tema, porque acho que veio de um sítio muito altruísta. No fundo, este tema envia a vontade de que aquela pessoa encontre a melhor pessoa do mundo, porque assim o merece – “Que assim seja cada dia / Que te saiba a alegria / Que sejam copos cheios ao jantar / Que querer-te é egoísta / Que querer não é amar”. É engraçado, porque, no fundo, esta canção mostra mesmo que há um desejo, porque todas as frases começam com «que», ou seja, é como se fosse uma oração. Aliás, há mesmo uma curiosidade aqui: “que assim seja” é uma coisa que se diz no final das homilias. Eu acho que peguei nessa frase exatamente por isso, por essa vontade que o desejo se cumpra. Que seja pelo melhor e para o bem e etc.
Isso nem me passou pela cabeça-
Não é muito óbvio, é verdade.
“Vai Ruir”, a canção que fala sobre resiliência. Cheira-me que há alguma história por detrás desta.
Olha, sim. Eu estava a acabar o curso de Música e há ali uma altura em que a coisa fica muito mais difícil – terceiro ano, fim – e eu começo a fritar um bocado à volta de: estudava, mas sentia que a coisa não ia a lado nenhum; lançava canções, mas a coisa não ia a lado nenhum, ou seja, eu estava a sentir sempre que as coisas caíam à minha frente, muito embora eu trabalhasse para ser melhor. Lembro-me que estava numa aula de conga a sentir exatamente isto, estava tipo a sentir que estava a fazer porcaria em todo o lado. O que aconteceu? Estava a improvisar por cima de um standard e começou a surgir-me esta melodia e, a partir daí… Ah ya, e depois, nessa noite, tive assim meio um ataque de ansiedade, do género “não quero mais, acabou-se a música” – estava num sítio mais escuro. No próprio dia, os meus queridos amigos da música disseram-me todos “olha, estás proibida de amanhã ir às aulas”. Imagina, quando nós estamos mesmo com muita pressão, o melhor é descansar, respirar, fazer uma pausa, desde que seja bem pensada. Portanto, eu fiz uma pausa e lembro-me de… Sabes… De uma manhã lenta, de um banho lento, de um café lento e, de repente, de ir para a guitarra e isto sair de rajada, ou seja, saiu do início ao fim. Era quase como um nó na garganta que se ia desfazendo à medida que eu ia escrevendo a canção. Entretanto, estava sentada com a guitarra, com a frase da improvisação do dia anterior na cabeça e, a partir daí, começo a ir em torno dessa linha melódica e a escrever a canção. Depois chega o refrão que, para mim, era óbvio – “Não há pior que correr para nada atingir / Construir a saber que amanhã vai ruir”. E do que é que eu me apercebo? Apercebo-me de que “sim, isto é uma crise minha também”, mas isto é muito a nossa crise dos 20 anos. Ou seja, quando se tem 20 e tal anos, nós estamos sempre com essa sensação, porque é a altura em que nós ainda não vamos ser promovidos, ainda não vamos ter a vida mais estável de sempre, principalmente agora. Portanto, é muito difícil, a não ser que sejamos uns génios ou sei lá o quê, encontrarmos aquilo que queremos agora. A verdade é que isso, de alguma forma, nos frustra, porque acho que a década dos 20/30, se calhar, são as que se trabalham mais na vida inteira. Eu senti isso do meu público, porque o meu público mais velho foi quem mais se identificou com esta canção, no sentido de “que bom que é cantar as nossas agonias em tom divertido”, ou seja, dançar à volta de… Que merda, sabes [risos]!
“Não Vás Já”, a canção que fala sobre a saudade; a saudade de casa. Sei que começaste a morar sozinha não faz muito tempo-
Sim, sim, desde janeiro.
Acredito que tenha sido uma grande mudança para ti – como seria para qualquer um. Daí a fazer sentido encaixar este tema no disco?
Sim. Em primeiro lugar, eu tinha alguns temas de canções que não estava a conseguir escrever e a Luísa perguntou-me sobre o que é que eu gostava e eu mandei-lhe esses temas. Um tema que eu tinha era a minha carta de despedida para os meus pais e a Luísa disse que já não se lembrava o que era sair de casa e, então, preferia fazer a visão dos pais. Ou melhor, não me disse isso na altura, fez primeiro e depois disse “olha, fiz a visão dos pais por causa disto”. E porque é que o tema me fazia sentido? Primeiro, porque estava mesmo a acontecer. Segundo, porque, para mim, era muito óbvio que ia ser a minha recuperação do controlo. Ou seja, quando tu sais de casa, tu ganhas um controlo abrupto sobre a tua vida, o teu horário, o teu calendário, a forma como geres a tua vida, onde é que guardas a pasta de dentes, tudo. No meu caso, eu até te digo que tenho medo de, um dia, vir a viver com alguém por causa disso, porque agora, mais do que nunca, tenho controlo sobre todas as coisinhas mais pequeninas que eu tenho aqui. Outra coisa… O meu pai costumava dizer aquela história típica de “a tua liberdade acaba quando a do outro começa”, mas eu entendi de outra forma que foi “o teu controlo começa, mas acaba com o outro”. Ou seja, os meus pais deixaram de ter a sensação de controlo, no sentido de não controlar a saudade que tinham; chegar a casa e não terem lá a filha deles. De facto, eu sou lisboeta, e até poderia ficar, vá a ver… No fundo, acho que aqui, na minha recuperação do controlo, entra a falta de controlo dos meus pais, para o bem e para o mal. Portanto, foi importante também ter esta visão de “não sou só eu”.
É a única canção que não é da tua autoria. Porquê atribuíres a tarefa à Luísa Sobral?
A Luísa fez parte do meu percurso desde início, pelas aulas que nós tivemos juntas e ela ainda produziu duas canções (“Não Faz Mal Não Estar Bem” e “Multidão”) do meu primeiro EP. Ela dizia-me sempre “oh Mimi, tens mesmo que parar de me dizer obrigada, já percebi, estás muito agradecida” e eu tipo “ok, então vou fazer um obrigada eterno e vou-lhe pedir para escrever uma canção para mim”. Mas percebi que tenho que voltar a fazer outro obrigada eterno, porque agora só me apetece agradecer por esta canção [risos]. Olha, quis mesmo trazer comigo uma canção da Luísa… Ou seja, não é que eu vá expandir a Luísa em lado nenhum, mas, ao menos, em cada concerto que eu chegue posso dizer que tenho uma canção da Luísa Sobral, com orgulho e com um sorriso na cara, de gratidão e de felicidade. Portanto, eu acho que era um bocadinho como usar… Aqui um autocolante a dizer “team Luísa Sobral” [risos] e, então, em vez de usar um autocolante decidi trazer uma canção.
Nota-se que ela é uma inspiração para ti.
Sem dúvida, porque a Luísa é mais que uma cantautora. Ou seja, ela produz, trabalha imenso o instrumento, canções para outros, etc etc. É poetisa, tem concertos para crianças, dá aulas de escrita de canções. Tudo isto mostra o quão eclética a mulher-música pode ser, percebes? Porque não é muito normal. Aliás, mesmo nos homens, tipo não são muitos a fazer tanta coisa. Há p’raí o Tiago Bettencourt, agora que me lembre. Portanto, a Luísa é a nossa representante feminina de multitasking e, ainda por cima, é uma mãe do caraças, portanto acho que isso é um exemplo a ter.
“Casa da Rocha”, a canção que aceita o fim da infância. O que mais sentes falta da tua infância?
Olha, da própria Casa da Rocha. Nós vivemos um ano e tal com a minha avó e foi assim a altura mais incrível, porque quando se gosta muito da avó e se vive com ela é do melhor que há. Foi assim a coisa da infância que mais me marcou. Mas a Casa da Rocha porquê? A minha mãe só tem uma irmã (dos mesmos pais) e elas são muito próximas; são as duas filhas desta minha avó que, no fundo, foi a única avó que eu conheci bem ao longo dos anos. O que acontecia é que nós íamos sempre para a mesma casa de férias. Enfim, não era nossa, de todo, mas durante 20 e tal anos alugámos sempre a mesma e era assim uma casa muito podre por dentro, mas, ao mesmo tempo, muito boa, num sítio giro… Tinha formas muito estranhas, um catavento, galos por todo o lado, quadros aleatórios, um sofá péssimo, uma casa-de-banho que entupia sempre… Eu dormia tipo na cama da piscina com um colchão por cima, ‘tás a ver? Porque não havia mais camas. Era mesmo uma ideia quase precária de férias de família, mas que nós adorávamos – e adorávamos aquela casa. Mas há um dia em que, como em tudo, a casa é destruída para ser feito um condomínio maior – um casarão de férias, mesmo. Houve uma altura que recebi umas mensagens no meu grupo de família e ri-me muito, porque uma noite, hoje em dia, é literalmente o mesmo preço que nós pagávamos em duas semanas de férias. Aquilo ficou de tal forma que a casa estava irreconhecível. Portanto, foi um bocadinho a aceitação que as coisas já não vão voltar atrás; eu nunca mais vou ver aquela casa como ela era; as memórias são só memórias tipo já não tens hipóteses de simular uma memória. Isso, de alguma forma, inquietava-me e, ao mesmo tempo, ria-me, porque, de facto, pronto, olha, ficou fechado um ciclo e daí a questão da aceitação. De facto, não tens controlo, mas isto, para mim, foi muito mais uma situação de aceitação de “pronto ok” – e assim termina a hipótese de reviver uma infância. Então a “Casa da Rocha”, confesso que é a canção mais egoísta do disco, porque não há muita gente que vá entender e rever-se na canção, porque, de facto, é uma coisa muito própria. Na verdade, eu acho que é a única canção que não procurei que as pessoas se revissem na canção, mas eu precisava desta descarga emocional. Ah e “Casa da Rocha” porque, de facto, era Casa da Rocha [risos].
Chamaste o Tomás Marques, produtor do disco, para este tema. O que é que ele trouxe de novo?
Trouxe o som do saxofone que, por si só, é muito emblemático, um bom gosto inacreditável e aquele solo maravilhoso que a malta adora – e eu adoro também. O meu sonho era tipo imagina, daqui a uns anos, entrar numa sala e estar toda a gente [som do saxofone], era incrível, adorava [risos]. Mas, de facto, é um solo que cola muito bem. Não sei, trouxe um cheiro novo para as minhas canções. Acho que isso também era necessário e então fiquei muito feliz com o resultado.
“Velhos”, a canção que fala sobre a gratidão. Neste preciso momento, pelo que mais te sentes grata?
Olha, neste preciso momento, pela minha família. No outro dia, mandei uma mensagem à minha família a dizer “tenho andado numa fase pouco grata, acho que é injusto que assim seja, por isso venho só agradecer-vos” e comecei a agradecer por várias coisas: seja aos meus sobrinhos, seja à nova namorada do meu irmão… Na verdade, eu não me considero uma pessoa muito grata e isso é chato, porque o contrário de grata é ingrata, e isso é uma palavra forte. De facto, eu sei que, às vezes, o sou, porque eu estou a viver muitos dos meus sonhos de miúda e nós não podemos baralhar a ingratidão com a ambição, mesmo. Ou seja, devemos ser ambiciosos, mas devemos ser gratos também. Eu tenho vivido uma fase, não sei bem porquê, um bocadinho mais ingrata, e então tenho feito um esforço para ser cada vez mais grata, e essa canção – “Velhos” – vem mesmo dizer “olha, se não és grata, agora vais ser quando fores velha, vais olhar para trás, para a tua vida, e vais ver que a tua vida foi boa”. Isso, para mim, era a prova do ingrata que eu estava a ser. Eu só me via como grata quando tivesse, sei lá, 60/70 anos. Não é «velhos», «velhos», atenção. O meu pai costuma dizer que isto não é sobre ser velho, isto é sobre a minha idade e o meu pai tem 60 e pouco. Portanto, a ideia de «velhos» não é obrigatoriamente os velhos que são velhos, lá está, velhos são os trapos, mas sim uma ideia mais de chegar a um ponto em que as memórias já são velhas e nós olhamos para elas como felizes. Sabes aquele filme do Inside Out quando há aquela colectânea de memórias-
Sim, sim-
É exatamente isso. Tipo, quanto mais velho tu fores… De repente, tens ali uma prateleira de momentos felizes que são os que te marcam. Nesta idade, principalmente, o que nos corre de mal é o que nos marca mais, é o que nos molda mais. Muito embora sinta que não devia ser assim, porque eu vivo uma vida privilegiada e só tenho que estar grata por ela. Eu consegui sair de casa em 2023, tenho um cão amoroso comigo todos os dias, tenho uma família incrível que vive ao meu lado… Tipo, metade dos meus amigos não consegue fazer isto que eu fiz. Ah e ainda lancei um disco, que era o sonho que eu tinha desde miúda. Um disco físico e ainda vou lançar vinil – na altura não era um sonho porque eu nem sabia o que era [risos]. Eu acho que, de facto, é isso, eu esqueço-me de viver os meus maiores sonhos e tenho que ter mesmo cuidado com a ambição versus ingratidão.
Curiosamente, é uma cena em que tenho pensado muito ultimamente, em como não conseguimos dar o devido valor às pequenas coisas em nosso redor. Isto porque as coisas más sobrepõem-se sempre, parece inevitável.
Sim, e moldam-nos imenso. As coisas nas amizades que correm mal… Nós temos muita tendência para nos apegar a isso. Recordo-me de ver um filme – não me lembro do nome – que, basicamente, era uma miúda que perdia a memória, e quando se lembra das coisas, lembra-se que o pai traía a mãe. Portanto, ela vai ter com a mãe e diz tipo “porque é que ainda aqui estás? porque ainda estás com ele depois do que ele te fez?” e ela responde “porque eu decidi ficar pelas várias coisas que ele fez bem em vez de ir embora pela única coisa que ele fez mal” – e nós não somos assim. Temos muita tendência a olhar para a coisa má como “destruíste a minha vida” e a verdade é que uma coisa má normalmente vem de milhares de coisas boas e segue com milhares de coisas boas, é o que é. E nós não nos podemos prender de forma tão abrupta às coisas más.
Para esta convidaste o Afonso Pais, também ele trouxe um novo cheiro para as tuas canções?
Sem dúvida. Eu escrevi esta canção no dia a seguir a ouvir a Teresinha Landeiro numa noite de fados. Ora, a canção, sem querer, saiu um bocadinho mais afadistada. O que é bonito e maravilhoso, no entanto eu não sou fadista. Eu quase que sentia que aquela canção não era para mim tipo “eu não posso cantar isto”. Mas eu queria muito cantar esta canção e então pensei “ok, para desafadistar isto, preciso de alguém que também, como eu, não seja dos fados e privilegie a canção”. O Afonso é um guitarrista de jazz muito incrível, assim se calhar o melhor que nós temos em Portugal, diria eu. Então, ele trouxe assim uma cor muito fixe à canção nesse sentido de… Fugiu logo ali do fado, porque se tornou uma espécie de improvisação mútua – parece que eu estou a inventar a música quase na altura e ele também, é engraçado. Tipo, aquilo tem muitas imperfeições e nós aceitámos as imperfeições todas como perfeitas. Basicamente, estás a falar sobre ser grato; sobre aceitar o que não controlaste a tua vida inteira; sobre aceitar que foste feliz e, depois, vais aceitando as fragilidades que estão a acontecer a nível musical. Seja porque eu cheguei mais cedo e ele chegou mais tarde, seja porque a execução não foi ao mesmo tempo, seja porque respirámos de forma diferente. De facto, eu acho que isso trouxe a fragilidade do tema de uma forma muito mais concreta e musical e, por outro lado, trouxe o privilegiar da canção versus sentir a sua influência fadística.
Mencionaste acima que fizeste terapia. Achas que este Contornos tem um certo valor terapêutico para ti?
Sim, acho que sim. Ou seja, não é uma coisa que esteja resolvida em mim, mas, de certa maneira, acho que foi a primeira vez que eu escrevi em tom de desabafo, mesmo. Por exemplo, os meus outros trabalhos não falam assim tanto… Claro que tem uma canção ou outra que é desabafo, sei lá, a “Multidão”. Mas, desta vez, eu não tenho mensagens escondidas, eu não escondi quase nenhuma história, isto é, eu acho que tudo o que o público ouve é o que é. De certa maneira, eu acho que quis ser verdadeira, abrir o meu diário e mostrar. Mostrar, não no sentido de “venham saber sobre a minha vida”, mas sim “são estas as minhas fragilidades e as vossas?”. Portanto sim, este disco, de facto, vem fazer isto de forma muito mais concreta do que nos outros trabalhos.
Alguma vez tiveste medo de ser vulnerável?
Sim, mas tenho mais medo deste tipo de entrevistas [risos], porque aqui eu sou ainda mais honesta, porque aqui para falar das canções tenho que falar da experiência. Com as canções… Imagina, as pessoas entram no hall de entrada, mas não entram para os quartos. Portanto, neste sentido, as entrevistas sempre me preocuparam mais, porque sei que vou sempre elaborar as histórias por detrás.
Como funcionou o processo criativo deste álbum?
Olha, foi a primeira vez que eu não aproveitei uma canção antiga, foi a primeira vez que eu disse “ok, caguei para o meu passado, daqui sai-se para a frente”. Portanto, daquelas finalizadas, a única canção antiga que eu fui buscar foi a “Que Assim Seja”, que comecei a escrever em 2020 e só acabei em 2022. A canção já existia, mas não estava completa. De resto, as canções foram todas escritas no prazo temporal de eu lançar o E a Cantar até eu gravar o disco Contornos. Isso, para mim, foi diferente porque eu ia sempre buscar… Por exemplo, o primeiro EP, claro que são músicas antigas, porque eram as que estavam feitas. No E a Cantar ia reaproveitar canções antigas. Aqui, eu poderia reaproveitar algumas canções antigas, mas a decisão foi não o fazer, porque, de facto, eu estava à procura de um conceito e para viver um conceito eu tinha que estar a vivê-lo nesse momento, tinha que me fazer sentir nesse momento. Por exemplo, coisas que eu escrevi há três anos, provavelmente, na altura, não se encaixavam com aquilo que eu estava a viver e a sentir. Depois, sem querer, através da terapia, eu estava sempre cheia de coisas para escrever que era tipo “percebi que não sei quê, não sei que mais”, então, do nada, escrevia uma canção sobre isso e era sempre assim. Era tudo à volta das fragilidades que eu ia descobrindo na minha terapia, portanto a forma como construí o disco foi muito natural, foi muito do acumular de coisas. Só comecei a fritar mais para o fim quando tinha que entregar as partituras aos músicos para eles começarem a estudar e assim, e faltavam-me duas músicas. A última música a ser escrita foi a “Casa da Rocha” e escrevi também a “Águas Passadas” um bocadinho sob pressão. A “Contornos” também [foi das últimas], mas saiu de forma demasiado natural, portanto não senti muita pressão na altura. As outras já tinha todas escritas, já há muito tempo até. Depois, pronto, a verdade é que eu sou romântica e tudo mais, no sentido de escrever como sai; como é natural, mas eu também gosto de… E eu acho que isto tem a ver com o meu background de hotéis e bares e assim… Ter um registo equilibrado, daí o disco ter tantas músicas animadas e tantas baladonas e canções assim mais médias. Claro que se um dia me sair um disco inteiro em baladas ou um disco inteiro em animados está a valer. Só que eu, sem querer, acho que por fazer setlists, sabes… Depois do “Versace on the Floor” you gotta sing Stevie Wonder, tipo tens que ir para o “Master Blaster (Jammin’)”, ‘tás a ver? Tipo, coisas deste género, que eu acho que eram soluções que eu tinha desde miúda e, sem querer, viciei um bocadinho nesse tipo de setlist, na ideia de saber equilibrar as coisas menos animadas com as coisas mais animadas. E, por isso, é que até acho que o disco é uma montanha-russa, porque vais de cima para baixo, de cima para baixo, exatamente por causa disso. Isso, por exemplo, foi um bocado propositado. Eu lembro-me de escrever a “Casa da Rocha” e dizer “falta-me um tema animado” e, daí, comecei a puxar um bocadinho um tema animado. Ou seja, não é tão natural como ir deixando durante cinco anos ver o que é que escreves e depois escolheres as melhores, mas, ao mesmo tempo, traz algum equilíbrio ao disco que acho que era necessário.
Em termos de sonoridade, este álbum é mais uma prova que o jazz continua dentro de ti, mas sempre acompanhado por uma sensibilidade pop. Pretendes continuar neste registo?
É engraçado que perguntes isso, porque eu não te sei responder propriamente e tenho pensado um bocadinho sobre isso. Imagina, acho que há um lado meu que quer fazer Yebba, ‘tás a ver? Tipo com roads e baixo elétrico e não sei quê. Eu cresci a cantar Stevie Wonder e Michael Jackson, ou seja, muito mais pop. Eu não cantava Norah Jones, não era a minha coisa. Só que depois, na forma como eu escrevia as minhas canções, a forma certa de servir pareceu-me esta. Por isso, eu acho que para eu fugir daqui, as canções, sem querer, têm que fugir primeiro. Na verdade, algumas já começam a fugir, o que é engraçado. Agora, o que é que vem a seguir? Eu não faço a menor ideia [risos] e, digo-te, tenho p’raí já dois discos prontos de nada, sem ar; são tantas canções muito díspares que não consigo agora encontrar – nem preciso, ainda falta – uma coesão suficiente, nem para mudar de estilo, nem para continuar com a mesma ideia. Agora, uma das coisas que dizem que associam ao jazz nas minhas músicas é a complexidade harmónica. Em princípio, não é uma coisa que vá mudar, porque eu gosto das cores que trazem os acordes para as canções, porque, de facto, são canções pop e, de repente, espetas-lhe um acorde diferente e torna-a mais identitária, mais identificativa para as pessoas. Isso, para mim, é um ponto mesmo importante. Eu acho que, no máximo, o que um dia pode vir a mudar é a instrumentação, mas que, no fundo, vai parar ao jazz mais contemporâneo [risos]. Tipo, eu faço pop, eu digo a toda a gente que faço pop. A harmonia complexa é o que me associa ao jazz, mas, na realidade, nós temos imenso pop. O Stevie Wonder, por exemplo, é pop com harmonias complexas. Eu acho que a única coisa que ele não tem são as vassouras na bateria e não tem contrabaixo. E isso é só a minha formação clássica, ou seja, aquela coisa dos instrumentos acústicos – eu gosto muito do som dos instrumentos acústicos. Eu tento sempre tocar com piano vertical ou horizontal; tocar com piano a sério, porque é mesmo aquilo que eu, neste momento, identifico que as minhas canções assentam. Agora, daqui a uns tempos, não faço a menor ideia.
Se tivesses que descrever o disco numa frase, qual seria?
Eu acho que é qualquer coisa como: o Contornos é sobre o controlo, a perda do mesmo e a reação à perda, percebes? Se eu te explicar isto… Mesmo quando eu escrevo isto penso “bolas” e depois começo a elaborar para se perceber bem, mas, de facto, eu acho que é isso. É sobre o controlo; sobre a necessidade de controlo, a perda do controlo e a reação à perda do controlo. E, portanto, eu acho que é sobre estas três coisas e é evolutivo, mesmo, ou seja, começa um bocadinho mais pela perda do controlo e a necessidade do controlo é uma coisa que está sempre aqui por trás, ‘tás a ver? É o pano. No fundo, o início é sobre a perda do controlo, a segunda parte é essa reação à perda de controlo, mas isso tem tudo uma origem que é a necessidade de controlo, que faz o vértice final destes dois pontos.
Olhando para trás, como vês a tua evolução?
Olha, antes de mais, o lado positivo é que vejo, porque, às vezes, podemos não ver. Eu olho para os meus temas antigos… Não é que não goste, eu amo os meus temas antigos e continuava a cantá-los, tenho imensa pena de já não os cantar… Mas sinto que estou a ir para um lugar mais maduro. No outro dia, eu dizia assim ao meu agente “olha, acabou a petiza”. Tipo, não acabou a petiza para sempre, porque petiza é de alma. Acabou a petiza que vai de ténis para o palco, está na altura de ir buscar uns sapatos como deve de ser, porque eu sinto-me a crescer. Ou seja, eu Mimi Froes, artista, sinto-me a crescer, sinto que este álbum é muito mais maduro e, de certa maneira, eu quero abraçar esse crescimento. Não é ser mais velha do que aquilo que sou. De facto, eu tenho 25 anos, já me sinto adulta: já saí de casa, já comprei um carro, tenho um cão, tenho responsabilidades, pago IRS [risos], portanto a verdade é que está na altura de assumir… Há uma frase que eu adoro: we never really grow up we only learn how to act in public – e é verdade. Começo a entrar numa idade em que eu sei que já não sou tão miúda assim e já não estou a escrever sobre coisas de tão miúda. Na verdade, é isso que me distingue, na minha opinião, do resto das mulheres no panorama da música pop e eu quero aproveitar isso. Isto é, a minha música, de certa maneira, toca noutros tópicos diferentes, tipo sai da questão do amor. De facto, é a minha área de eleição, eu quase nunca escrevo sobre amor… Se escreveres isto, cuidado, isto pode soar ofensa para as minhas amigas [risos]. De facto, o sítio onde eu me distingo mais é nas temáticas e talvez também na abordagem. Eu quero distinguir-me nesse sentido e quero mostrar a maturidade deste disco.
Já agora, colaborações que gostasses de vir a fazer?
Salvador Sobral. Olha, sempre que vou ao Porto convido o Tiago Nacarato, mas nunca gravei nada com ele e gostava mesmo muito. MARO. Milhanas e Carolina Leite, mas as duas numa só, não pode ser separadas [risos]. Teresinha Landeiro, mas ao mesmo tempo tenho medo, porque ela é um monstro no melhor sentido da palavra, por isso eu sinto que mais vale eu ir para lá e fazer vozes [risos]. Gostava e falámos sobre um disco de parceria, eu e o Miguel Marôco, que é um rapaz do indie assim mais pequenino, e vemo-nos a fazer um projeto juntos, um dia, chamado Canções de Gaveta, com canções que não tenham lugar nos nossos discos – vai acontecer, tenho a certeza. Deve haver mais nomes, claro… O Miguel Araújo, por exemplo, também já cantei com ele, mas também gostava de gravar com ele. Mas assim a minha grande ambição, para ser sincera, é ir buscar algumas influências do Brasil – não é artistas brasileiros, mas sim a forma como eles olham para a música. Gostava que se olhasse da mesma forma para a música cá. Por exemplo, um dia, quando crescesse, adorava revisitar temas meus antigos como se faz lá, com alguém da nova geração, sabes? Acho que são coisas muito boas e estes discos em parcerias também são importantes. Por um lado, temos que nos ir reinventando, mas, por outro lado, acho que, às vezes, não é preciso reinventarmos, basta pegarmos nos nossos temas antigos e darmos uma nova roupagem: tocarmos com uma pessoa nova, vermos como aquela pessoa aprende o nosso tema e fazê-lo sobreviver mais tempo. Não acho isso errado, embora as pessoas sintam que temos que estar sempre a fabricar coisas novas. Portanto, há muita gente no panorama nacional com quem eu gostava de trabalhar, alguns até… Não de featuring, mas de escrita, ou seja, gostava de me sentar com algumas pessoas a escrever. Mas pronto, agora o meu objetivo, para te ser muito sincera, é expandir. Está na altura de sonhar com mais do que Portugal, mesmo.
Cada vez mais se fala sobre a quantidade de mulheres que estão a surgiu no panorama musical, e nem me refiro apenas a intérpretes, mas também a cantautoras. Qual a tua visão sobre isto?
Para te ser sincera, já tive opiniões diferentes. Hoje em dia, acho que solidifiquei, mas não consigo ter a certeza. Ouvi a Cláudia Pascoal falar sobre a questão de “sim, existirem várias mulheres”, mas os cartazes não corresponderem a esse panorama. Achava que isso era um bocado exagero e fui ver e não é exagero. É um facto. Porque, neste momento, não venham com coisas, nós somos mais que eles, mas muito mais. Mesmo. Até em ascensão, nem estou a ver nomes a não ser o Miguel Carmona e o Afonso Dubraz. Mas sei raparigas a dar com pau. Nós tivemos agora um jantar de miúdas em ascensão e era tipo eu, a Milhanas, a Leite, a Ana Mariano, a Sara Cruz, a INÊS APENAS, a iolanda, a Rita Onofre… Quer dizer, são tantas mulheres, o que é incrível e ainda bem que é. De facto, eu entendo que os cartazes sejam um problema. Acho que não faz sentido nenhum que agora um cartaz não tenha mulheres.
Isso faz-me lembrar da polémica em torno do festival Vodafone Paredes de Coura em 2022, relativamente do dia dedicado à música portuguesa em que só colocaram uma mulher a nome próprio no cartaz, a Rita Vian.
Sim, sim. Aí é muito importante sermos temperados que é: o Paredes de Coura, por acaso, é um belíssimo exemplo de algo que correu mal e eles, muito bem, puseram a mão na consciência e corrigiram. É importante valorizar isso. É tramado engolires uma crítica. Portanto, não há nada como engolires uma crítica… E não venham dizer que foi para parecer bem, não. Criticámos e eles ajuízaram, e ainda bem que assim foi. Mas eu digo-te também que temos que ter cuidado com o contrário, que é nós impormos uma data de mulheres em sítios e elas nem sequer serem do estilo de música daquele festival. Às vezes também caímos nisso. Houve um festival que foi muito criticado por não ter mulheres, mas, no fundo, não havia propriamente mulheres dentro daquele registo. Agora, se podemos conversar sobre o assunto de “se calhar, não fazermos só este estilo e abrangermos um bocadinho mais, então ‘bora falar sobre isso”. Imagina agora o MEO Kalorama não tinha programado ninguém e comecem a dizer “olhem a Mimi Froes”, eu ficava tipo “malta, vá lá, não vou tocar ao Kalorama”. É importante ser racional também nesse sentido: se queremos fazer uma crítica, ao menos temos que saber o estilo que estamos a falar, as pessoas que poderiam lá estar… De repente, lembro-me que na história do Paredes de Coura toda a gente foi tipo “olhem a quantidade de mulheres” – “opa sim, mas calma, se calhar não faziam todas sentido”. Vamos tentar perceber porque é que eles não puseram, estão à procura do quê e o que é que nós podemos lhes mostrar dentro deste estilo que existem mulheres, porque, de facto, existem. E nós não podemos só espernear, temos que ser muito concretos na forma como queremos mostrar o nosso ponto. E, para mim, é sem dúvida essa a questão.
Já tens dois concertos de apresentação marcados, no Teatro Maria Matos (Lisboa), no dia 29 de novembro, e na Casa da Música (Porto), no dia 1 de dezembro. O que é que o público pode esperar deles?
Olha, ainda não te sei dizer, porque, curiosamente, nós para a semana vamos em residência artística, que é uma coisa que eu nunca fiz e já queria muito fazer. Portanto, vamos estar três dias no meio do mato, tipo num hotel assim no meio do campo. Vamos ensaiar e montar os concertos durante esses três dias. Isso porquê? Porque, para mim, tinha que ser uma sinergia em que nós estivéssemos todos lá a pensar no que faz sentido, mais do que aquela coisa de um ensaio de duas horas e depois vai-se para casa e esquece-se de tudo. A coisa fica mais sólida e honesta. Ora, a única coisa que eu te sei dizer é que vou tocar o disco todo e, sim, vou tocar algumas canções antigas, mas não vão ser o foco, de todo. O foco é a imersão do disco, mesmo – nestes dois concertos. A tour já é outra história. Mas estes dois concertos são, de facto, o lançamento do disco e ao ser o lançamento do disco há uma imersão primária no Contornos, esse é o objetivo. O que podem esperar de diferente? Mais uma pessoa em palco, que é sempre bom, que é o Manuel Rocha, convidados que eu ainda não posso anunciar porque ainda não me deixaram [risos]… Há uma coisa que nunca há-de mudar em mim é que, por si só, os concertos vão ser diferentes um do outro, porque são sempre, e por si só, os próprios concertos não vão ser iguais ao disco, porque senão era uma grande seca [risos]. Portanto, para mim, há uma noção e uma necessidade até da reinvenção e da quase destruição e reconstrução de cada uma das coisas que decidimos e, assim sendo, acho que nesse sentido só têm a ganhar. A experiência ao vivo é sempre uma coisa diferente e especial. É isso que queremos puxar ainda mais.
Há mais planos para levar este Contornos a mais palcos?
Ainda não tenho muitas datas novas, porque estamos a programar 2024. Começámos agora finalmente a encaixar as coisas do próximo ano, mas sim. Ou seja, o ano correu bem, o disco está a correr bem, o público está consistente, está a ouvir, portanto, nesse sentido, estamos todos contentes com a forma como as coisas têm evoluído e é acreditar que as coisas vão continuar assim.
Podes adquirir bilhetes para a apresentação de Contornos no Teatro Maria Matos, em Lisboa, a 29 de novembro, e no Coliseu do Porto, a 1 de dezembro, podem ser adquiridos na Ticketline.
Fotografia de destaque: Simão Pernas