Sobre a verde relva, onde muito verde se acende, por lá se vive. Muita conversa brota e os calções encharcados do riacho, que por lá abaixo sem rumo corre, secam ao calor do sol que (ainda) brindava os festivaleiros presentes no trigésimo aniversário do Vodafone Paredes de Coura.
Do melómano ao festivaleiro nato, da tradição à estreia, Paredes de Coura parece que risonha sempre que o festival lá chega. Há um entusiasmo único, uma energia quase imaculada que sobrevoa a Praia Fluvial do Taboão. Bebe-se, fuma-se, mergulha-se, tocam-se guitarras, cantam-se hinos, conversa-se, ri-se. Acima de tudo, vive-se. Vive-se no certeiramente apelidado habitat natural da música. As preocupações? Essas passam por hidratar, comer e chegar a tempo dos concertos. Divertir-se sem modos ou medidas. Viver o festival na sua melhor essência e aproveitar o momento.
Da parte da Playback, na tarde inaugural do festival (dia 16), um dos nossos editores (Miguel Rocha) encontrava-se com um redatorzeco (quem vos escreve), de geleira bem adornada de cerveja, para em seguida rumarem em direção ao rio, onde se iriam encontrar com uma das bandas mais badaladas da cena musical portuguesa atual: os MÁQUINA. (estilizado como MДQUIИД.).
Podemos falar dos MÁQUINA. como, mais apropriadamente, a MÁQUINA., pois os seus três integrantes – Tomás Brito (baixo), Halison Peres (bateria, voz e letras) e João (guitarra)- operam como uma só unidade. Desde que em janeiro de 2023 esta maquinaria se estreou nos longa-duração, com os 40 minutos certinhos e pujantes do habilmente intitulado DIRTY TRACKS FOR CLUBBING, editado pela editora portuense Saliva Diva, tem tomado de assalto o cenário musical português com a sua eufonia entre krautrock e eletrónica industrial. Sonoridade fulminante, riffs maníacos, linhas de baixo infeciosas, baterias hipnotizantes, carregadas de groove e pujança. É assim que a sonoridade desta MÁQUINA. pode ser vincada em estúdio, mas as suas performances ao vivo, carregadas de jarda, têm fortificado a composição de um seguimento de culto, único em solo nacional. Já são mais de 36 concertos realizados este ano e 47 já estão na agenda.
Pode-se dizer que esta MÁQUINA. é um fenómeno. Já o era antes de caminharmos à beira-rio para a entrevistarmos, mas pouco sabíamos nós o que esta passagem por Coura acabaria por se tornar. A banda encontrava-se a gozar o festival, após a sua passagem pelo primeiro dia (12) do Sobe à Vila (num concerto que a banda lisboeta descreve como tendo sido “muito especial” ) quando se sentaram para conversar com a Playback para uma conversa mui-festivaleira de onde até brotaram previsões que nem as cartas da Maya lá chegavam. Depressa se percebeu que “entrevista” – este mero termo – seria uma catalogação demasiado formal para o que iria acontecer, tal era o ambiente, simpatia e boa onda que esta maquinaria fazia rebentar. Portanto, prometeu-se que não seria um momento de formalidades.
Assim, subiu-se uma ladeira e fez-se do rio paisagem, para um momento de convívio adornado de todos os incensos e aperitivos que dão combustível às confraternizações que tanto rejubilam os festivais. Posto isto, do que se gravou (pois a conversa perdurou para bem mais que isso), com cervejas playbackianas e tremoços trazidos pelo Halison, viveu-se… o momento. Agora, tentamos tornar este texto num pingo do quão especial foi esta semana de agosto para os integrantes desta MÁQUINA. (e para quem assistiu a este momento tão bonito).
Que tipo de MÁQUINA. é esta?
“É uma máquina de dança!” Exclamou rapidamente Tomás em resposta à pergunta supracitada, com forte adesão dos seus colegas.
Antes de Tomás, João e Halison formarem esta máquina dançante, esta estava inconscientemente integrada nos NÃO!, um coletivo de seis músicos – Chaby (baixo), Márcio (baixo) e Paulo (guitarra) acompanhavam – que surgia no cenário musical lisboeta. Não compuseram, não lançaram, mas por essa Internet fora podem-se escutar alguns concertos da banda. João fala sobre esse período. “Era só jam, eram concertos de 45 minutos sem parar”. Tomás acrescenta. “Sim, eram mesmo uma cena kraut, de ligar o motorik, o monitor, e fazeres a cena. Sem planos”. Entretanto, de seis restaram três, e o processo que resultaria nesta MÁQUINA. começou a ser oleado. “De repente, começámos a ser mais nós os três a irmos para o estúdio jammar e passar tempo lá”, conta-nos Tomás. “Isto foi na altura da quarentena. Nós queríamos passar tempo juntos e tínhamos o estúdio para isso”, acrescenta Halison.
Ao ouvirmos os NÃO! – através das gravações registadas no Soundcloud do TrafkaStudio (berço para ambas as bandas) -, é notório que o ADN mecânico presente na banda já lá se encontrava, não fosse o surgimento da MÁQUINA, um seguimento orgânico do que esta dupla maquinaria (2 baterias, 2 baixos e 2 guitarras) fazia. Tomás e João afirmam que o que se fazia em NÃO! era “completamente krautrock”, tendo em conta os passados musicais de grande parte dos integrantes desse projeto, mas que em MÁQUINA., as origens surgem de vários locais sonoros que se juntam num só (ou numa só…). Durante a pandemia, Halison chegou a fazer sets de techno industrial na quarentena com um amigo e Tomás revela que as primeiras cenas que iam surgindo nos ensaios entre apenas eles os três “não eram necessariamente Kraut, mas eram garageadas, com aquele toque psicadélico de muitas coisas que foram influenciadas pela cena kraut”. Por sua vez, João refere que esses diferentes caminhos, que agora convergem para o som que os faz viver, é uma das razões para “serem tão amigos”.
João conheceu Halison no Primavera Sound de 2017 e de lá nasceu uma amizade. Na altura, Halison trabalhava num spot onde a malta se reunia e “passado uns anos tínhamos um estúdio numa venue, conhecemos Chaby, ele era amigo do Tomás e pronto… Foi só amor a partir daí” relata o guitarrista da banda lisboeta. Portanto, não foi necessária muita engenharia para construir esta MÁQUINA. Os dominós simplesmente caíram nos sítios certos.
Ao reagirem ao seu sucesso e ao lugar que têm conquistado no panorama da música nacional, Tomás afirma – a falar pela banda inteira – que está tudo a ser “completamente inesperado […] um gajo não estava com sonhos ambiciosos”. “Quando a gente começou a tocar juntos, não se entrou no estúdio pensando em fazer uma banda, era mais a necessidade de se estar lá e podermos tocar uns com os outros. E o som que fazíamos acabava por ficar lá dentro“, confessa Halison. E lá dentro ficou, até serem contactados para um gig direcionado à banda NÃO!, que já não tocava. Como alternativa, João, Tomás e Halison propuseram tocarem umas canções que andavam a magicar em estúdio. Esse concerto aconteceu e, conta Tomás, “o pessoal aderiu bué fixe e nós ficamos a pensar que se calhar isto era uma cena”. “Depois disso é que decidimos gravar as músicas e fechar o álbum”, reporta o baixista da banda.
E assim foi. Findados cerca de quatro concertos, ainda sem nome de banda – que acabaria por surgir, adivinhe-se, no momento (“Sei lá, foi só brainstorm, nós somos péssimos com nomes”, contou Tomás) – e sem voz, tomaram a decisão de gravar as músicas, que já tocavam em estúdio há bastante tempo (mas em live há pouco), só pelo apreço que tinham em tocar juntos. É daí de onde surge DIRTY TRACKS FOR CLUBBING. “Sinto que todo este disco, primeiro disco, nunca foi nada pensado. Foi tudo uma cena que fluiu bué naturalmente, desde as songs, até ter sido gravado, como foi gravado, os nomes… A intenção por detrás foi: já que estava a soar fixe e o pessoal até estava a curtir, bora só guardar para recordar. Depois, de repente o pessoal curtiu bué [do disco] e um gajo está a fazer uma tour pelo país e com quase 50 concertos marcados. Bué fixe, bué inesperado”, conta Tomás, visivelmente feliz pelo desenrolar dos eventos.
O combustível que faz a MÁQUINA. andar
Desde o início do ano que a MÁQUINA. tem estado na estrada, ao ponto dum fim de semana sem concertos já causar mossa no maquinismo. “Já quebra o ritmo”, constata Tomás. Halison afirma mesmo que sente mais falta quando “passa um fim de semana sem haver concertos”. Pois bem, ao preço a que anda o combustível, não é pequeno o fascínio que devemos tecer pelos números que devem constar no conta-quilómetros dos lisboetas este ano. Como conseguem? Halison explica. “A gentetem de fazer por nós. E acho que é mesmo por amor à camisola. Toda a gente quer a mesma cena, que é tocar” e aponta para um dado interessante desta caminhada. “90% dos concertos estão sendo cá em cima [no Norte do país], o que acaba por ser mais dispendioso. Se nós vivêssemos, por exemplo, no Porto, ou vá, cá em cima, seria mais fácil. […] O pessoal às vezes até marca cenas para nós aparecermos tipo duas ou três da tarde porque acha que somos aqui do norte e acham que em uma hora ou 40 minutos já estamos lá”. “Só que não, somos de Lisboa. Temos de sair cedo”, declara o baterista da banda.
“Nós quase só vamos a Lisboa para dormir”, explica João, afirmando ainda que o que têm vivido ao longo destes últimos meses tem sido uma “grande experiência”. Agradecem à Pointlist, agência de Évora responsável por grande parte das datas, muito através do trabalho do seu fundador, João Modas. “Ele trabalha muito bem”, conta entre risos a banda.
No asfalto, aquilo que João, Tomás e Halison gostam mesmo de viver é de conhecer o pessoal, ver as amizades que vão criando a prosperar. Explicam como no circuito nortenho é fácil “conhecer malta”, seja produtores, promotores ou fãs, e não escondem a satisfação de conhecer bandas que admiram, especialmente quando estas lhes dão props. Estas conexões têm marcado a jornada da banda, mas isso não aconteceria se as performances dos MÁQUINA. não fossem tão eletrizantes e marcantes (e se não acreditam em nós, acreditem pelo menos no Samuel Úria). Tocar ao vivo prefaz muita da essência destes maquinistas; a banda surgiu por isso e existe para isso. Tocar e fazer dançar. Já quebraram muitas pistas de dança de norte a sul do país (se bem que ainda lhes falta o Algarve, para grande infelicidade deste vosso escriba), e para quem anda minimamente pelas lides do indie português, a probabilidade de já lhe ter sido recomendado ouvir ou assistir à banda é grande, tal é a reputação que esta MÁQUINA. tem construído.
Para isso, muito concerto memorável teve de acontecer. Em redor desta conversa, sob o relvado, sentavam-se amigues, fãs e, enfim, gente que vive a maquinaria. Então, a certa altura despoletou um devaneio sobre concertos dados pela banda, ao qual os presentes assistiram, ocorrendo algo visceral à medida que tais concertos iam sendo referidos: a reação de MÁQUINA. a recordá-los. Os três elementos da banda revelaram sempre uma enorme satisfação e entusiasmo ao falar destes, e isso diz muito sobre a sua postura no palco. Seja para 10, para 100, para 1000, ou para milhares de pessoas, o que a banda quer é bater o pé (no caso de Tomás, literalmente – é algo predileto do seu estilo de tocar baixo em palco) e fazer bater o pé. Dentro dos que lhes ficam na memória, relatam o que aconteceu no FAUP Fest, em que viram o palco ser completamente invadido e onde até acabaram por pedir aos seguranças para que estes não expulsassem o pessoal, que dançava efusivamente ao redor dos músicos. É esta a visão que, afirma Halison, desejam ter como setup de sonho para um concerto no futuro.
Mas se falamos de concertos especiais, há dois que, até à nossa conversa, permaneceram no coração da banda lisboeta. Dia 11 de agosto, mesmo antes de subirem para Coura, a MÁQUINA. jogou em casa, mais precisamente no Musicbox, para abrir para os nova iorquinos do pós e noise rock, A Place To Bury Strangers. Não só entraram com toda a pujança “uma noite icónica”, como o próprio Tomás adjetiva, como também criaram uma relação com Oliver Ackermann e companhia. “Estivemos com eles na rádio [SBSR.fm], jantamos com eles, e quando fomos tocar com eles no dia a seguir, já havia uma ligação”, informa o baixista “Tu vês no backstage que não é preciso muita coisa para sacar bom som. Eles chegam, vêem o gear que têm e o que podem usar, e fazem o que sabem”, conta João, com Tomás ainda a acrescentar. “É pessoal muito querido […] Pessoal com quem consegues aprender muito”. Os APTBS parece que também se renderam à MÁQUINA., pelos elogios que teceram após o concerto. “São aqueles sonhos que nós nunca imaginávamos, que não pensamos, mas que depois acontecem”, elaborou João ao falar sobre esse concerto e sobre outro que também figura como um dos momentos altos da carreira do trio.
No dia seguinte à jarda no ‘Box, atravessaram o país para marcarem presença no primeiro dia do Sobe à Vila, mini-festival que antecede o Vodafone Paredes de Coura. “Foi muito fixe! […] Uma pessoa já vem a Coura há uns aninhos e há sempre aquela cena…”, diz Tomás, ao que Halison completa: “Temos este amor por Coura”. E Coura devolveu esse amor. Mecanizou-se, até. O concerto ficou marcado pela devoção dos festivaleiros e pelo carinho com que a MÁQUINA. os brindou – comportamentos normativos nos seus concertos, portanto. Em conversa ficou, então, no ar o desejo de um dia pisar o “festival principal”… mas já falamos sobre isso.
O fim da estrada ainda não está à vista e MÁQUINA já tem concertos agendados até novembro. Entre as datas que se aproximam, destaca-se a passagem pelo Amplifest no Porto (a 24 de setembro), festival com uma das sonoridades mais brutas do país, e ainda vão além-fronteiras, para um concerto em Espanha, no Cranc Festival em Minorca (23 de setembro). “Vamos a Minorca no dia antes de estarmos no Amplifest… vai ser uma missão”, confessa Tomás. A banda acrescenta ainda que vão para Minorca uns dias antes, para fazerem aquilo que mais gostam de fazer na estrada (e que na realidade também aconteceu durante esta conversa): conhecer malta. Quanto às expectativas, o trio confessa estarem entusiasmados. “Estamos com a mesma pica do que os outros que já passaram por isto. Sem muita expectativa, mais deixar absorver o que aparece”, afirma João. Mas expectativas existem. Até ao final do ano, pretendem chegar aos 50 concertos e, entre palcos, têm em vista terminar o sucessor de DIRTY TRACKS FOR CLUBBING, que já se encontra em desenvolvimento acelerado. Que venha, dizemos nós. Adiante.
A banda do momento
Como foi sobredito, tocar ao vivo constitui grande parte do cerne do trio. Construíram-se assim e, como também já deu para perceber, na sua essência, não há grande deliberação para fazer acontecer. “É mais sensações do que raciocínio”, proclama João. Não nos espanta então, saber que quando estes compõem, a vertente performativa, genuína e pura, acaba por ser o motor das suas composições. “De certa forma, nós compomos ao vivo. É uma cena muito orgânica e natural. Não é um processo muito pensado. É pegar nos instrumentos e tocar”, explica Tomás, acrescentando que “o mindset de ensaio é o mindset do gig e o mindset de gig é um bocado o mindset de ensaio, de tentares sentir como te sentes na sala de ensaio e ser solto”. Portanto, compõem consoante o que mais satisfaz a orelha nas suas jams. “Acho que quando a gente está a tocar uma jam e surge aquele groove, é tentar esticá-lo e ver até onde ele vai. Quanto mais vamos tocando ao vivo, mais vai fortalecendo o bond para sacar aquilo que funciona”, afirma Halison.
Mais uma vez, não há muito artifício como oponente desta maquinaria. Fazem o que sabem e metem cá para fora aquilo que lhes soube bem fazer. Mesmo na sala de ensaio, o pensamento de como poderá funcionar ao vivo aquilo que estão a cozinhar não surge. Porque lá está, “mindset de gig é mindset de ensaio” e no ensaio estes guiam-se consoante os seus dançómetros, como Tomás refere. “Se eu estiver a bater o pé, se estivermos todos a bater o pé, é porque a máquina está fixe”, relata o baixista.
A única ciência do seu processo criativo é que este é tripartido, pois os membros fundem-se numa só unidade onde não existe um líder nem ninguém que se sobreponha. A própria voz de Halison é usada como um instrumento, como só mais uma layer, porque o importante é o instrumental; e desde que esse seja dançante, então está tudo bem. Assim sendo, ao perguntar-lhes como é o seu processo criativo, estes respondem, sem hesitar:
Tomás: É estar juntos!
Halison: Mesmo sem tocar.
João: Nós ganhamos muito a conversar também.
O trio tem como lema que, na sua mente, “existe uma repetição contínua” bebendo muito de estruturas da eletrónica para orientarem os barulhos corpulentos. Claro que, ao questionarmos se havia alguma intenção em explorar outras estruturas, ou quiçá, adicionar um instrumento ao moldarem o seu som, a resposta não podia ser mais honesta e, de novo, sem extra-pensamentos. “Está a ir um bocado como vai”, respondeu Halison, com Tomás a acrescentar. “A repetição faz parte de um gajo […] Nunca se sabe o que é que o futuro traz, mas para já estamos bué fixes neste formato. Ainda temos muita coisa para explorar, por isso enquanto sentirmos que ainda há cenas para explorar, vamos continuar”.
Quanto à catalogação da música que fazem, estes não escondem que são fruto da fusão de krautrock e techno industrial, mas para quem os ouve, percebe que são muito mais que isso. É difícil não levá-los para ondas de punk, com os tecidos irreverentes e pujantes com que se cosem, tal como é impossível ignorar as fontes lo-fi e de noise que inflamam as suas malhas. Como referências, apontam nomes como Minami Deutsch, NEU!, CAN, Föllakzoid, Boy Harsher, música EBM (electronic body music dos anos 80 para os anos 90 – “coisas minimais, mas com boa bassline e pujança”, remata João).
Mas se faltarem palavras para descrever o seu som, certamente que estes já têm um bom arquivo de rótulos deixados pelos fãs após os concertos. Desde “uma junção de Nine Inch Nails com Chemical Brothers” à definição que mais fez rir os presentes – “uma junção de Tame Impala com Beatles” (um valente elogio, tal é a viagem) -, até a termos mais criativos como “máquina destruidora de paivas”. O trio não julga qualquer que seja a nomenclatura que as pessoas dão ao que sonorizam, por acreditarem na beleza de que cada um dá as referências que lhes são mais próximas. Tal disparidade também é indicativo de um dos traços que mais fascina estes maquinistas: a abrangência demográfica da sua música. Nos seus concertos, avista-se do miúdo ao graúdo, e as saudações no final do concerto chegam tanto em calão de gen z, como em calão millennial ou boomer. Para resumir isso, dando créditos ao seu amigo Jonas, a banda indica a seguinte definição para a sua música: “É música que junta o rockeiro das patilhas com os jovens alternos das pastilhas”. Toda a gente se ri. Mas é uma definição adequada.
Com tamanha jarda intergeracional e intemporal, para além da estreia no estrangeiro neste mês e do sucesso doméstico que têm conquistado, é normal que surja o pensamento de exportar a sua música. De internacionalizar a cena. Novamente, percebemos que, apesar de haver uma vontade – “é fixe não estagnar só aqui também. Há um circuito, mas é um circuito em que é fácil começares-te a repetir” – voltam a demonstrar que não pensam muito no incontrolável: “Não sentimos pressão. Há probabilidade disso para o próximo ano, mas é uma coisa que está a acontecer bastante naturalmente, sem estarmos a forçar”, afirma Tomás. Mais uma vez, a viverem o momento, acima de tudo.
Uma semana para a história
Quando se falou do concerto de MÁQUINA. no Sobe à Vila, foi confessado o desejo destes um dia atuarem no festival principal.“Temos aquela cena de um dia um gajo tocar no Festival. Por isso, foi muito fixe este ano termos tocado na vila”, contou Tomás. Em reação, quem vos escreve deste lado proferiu as seguintes palavras: “Há pouco estávamos a conversar sobre o que aconteceu o ano passado com os Baleia Baleia Baleia, em que tocaram no Sobe à Vila mas depois houve um cancelamento mesmo no festival e eles acabaram por atuar no palco secundário. Eu estava a dizer que era muito giro acontecer isso com vocês este ano”.
Toda a gente reagiu sorrindo. Sem desejar mal a ninguém, confessou-se que seria insano tal previsão se concretizar. Mas falou-se como se tal coisa já não fosse acontecer. João disse calmamente “vamos passo a passo”, mostrando plenitude e aspiração para um dia, esse sonho se concretizar, sem pressas. Mal sabíamos o que aconteceria nas próximas 24 horas.
Dia 17 de agosto já caminhava para se findar, quando chega a notícia, comunicada via redes sociais do Vodafone Paredes de Coura, que as britânicas The Last Dinner Party, um dos nomes mais fortes a emergir da cena indie britânica atual, cancelavam a sua atuação de dia 18 no palco secundário do festival courense. No final do post, surgia o anúncio de quem as ia substituir: MÁQUINA.
Eis que o que outrora era um sonho se tornava num ponto na agenda de todos os festivaleiros. A banda marcava lugar num dos dias mais aguardados do ano em termos de festivais, juntando-se a nomes como black midi, Little Simz, Yung Lean, Domi & JD Beck e Kenny Beats. A cereja no topo do bolo acabou por ser o horário nobre que lhes foi deixado pela banda britânica (23:15), slots que só muito raramente – infelizmente – são atribuídos a bandas portuguesas nos nossos festivais de verão. Após a viagem nostálgica e sedada de Yung Lean, foi hora de migrar para o palco secundário ao som das 11 badaladas.
Este encontrava-se lotado. Se havia dúvidas se isso seria devido às pessoas que se abrigavam da chuva, ou se era devido aos freaks – nome com que Halison apelida a audiência maquinista – que se preparavam para largar muito suor, estas acabaram ao começar-se a ouvir o público a entoar, energicamente, o nome da banda à medida que o relógio se aproximava das onze e um quarto.
Ao chegar a hora do concerto, as luzes avermelharam-se e do palco esvoaçou fumo suficiente para dar esperanças a sebastianistas. Com o público a aquecer, ainda em silêncio, rompe do nevoeiro a MÁQUINA. O público fervilha ainda mais. Quem vê de fora, talvez sinta que estão perante as mais ardentes estrelas de rock. Não é descabido. Se há banda que merece esse dístico, neste momento, são os MÁQUINA., como pode ser visto pelo êxtase motivado por Halison que se aproxima da margem do palco para entusiasmar e puxar pelo barulho do público.
Com os instrumentos em sentido, começa-se a ouvir de imediato a distorção a rugir dos amplificadores, ao que se lhe acompanham as batidas metrónomas que abrem alas para a hora de jarda que se seguiu. Com o público, irretocável, num crescendo maníaco, os ciclos caleidoscópicos, que tanto fazem rejubilar o krautrock sujinho do trio como incutem o entorpecimento e hipnotismo de uma rave industrial, foram suficientes para causar a monumental ramboia no Palco Yorn.
Houve dança, houve mosh pits (daqueles onde há mais abraços do que cotovelos), houve muito, muito crowd surf e, acima de tudo, houve festa. Festa repleta de amor (e suor). Um momento marcante. Um momento histórico – sem hipérboles ou eufemismos. Quem lá estava assistiu à ascensão de uma banda. Veja-se o que ali aconteceu como um culminar que ainda não se concretizou totalmente. Um pico momentâneo que certamente será ultrapassado, mas que por agora deslumbra quem testemunhou. MÁQUINA. conquistou os presentes – como se viu pela ovação pós-concerto com que foram brindados. Conquistaram Coura. Esperemos que voltem. Quiçá, sem ser apenas no palco secundário…
E se esta máquina fosse do tempo?
Passado e futuro não são sítios por onde ande a MÁQUINA. Como já se percebeu, estes preferem viver o momento e aproveitar o que de lá sai. Ainda assim, não custou perguntar onde é que estes estariam se esta MÁQUINA., fosse do tempo. Halison diz que estaria em Marte. “Este gajo sabe mexer-se, ele estaria lá em Marte fácil”, confirma Tomás. Já João confessa que talvez fosse visitar o passado, ao que Halison aproveitaria a boleia e ia para “um concerto dos Kraftwerk em 72 quando eles já estavam a fazer eletrónica e ninguém sabia o que eles estavam a fazer”.
Quanto ao próximo disco, confirmam que será um seguimento do primeiro, talvez no mesmo registo, mas mais escuro, aprimorado e com uma ou outra faixa num tom diferente – algumas que já andam a tocar ao vivo -, talvez mais para o industrial, talvez, consciente ou inconscientemente, já com a bagagem das suas aventuras ao vivo (dentro do maquinismo a que já nos acostumaram, claro). De uma forma ou de outra, sabemos que a banda continuará no momento e a proporcionar bons momentos a quem os rodeiam, seja em conversas (como a que tivemos a sorte de ter em Coura), seja ao sonorizar um dancefloor.
E mesmo que os MÁQUINA. não vivam no momento, eles são… um pouco o momento. A banda do momento. Não só pelo sucesso lindíssimo que têm tido de norte a sul do país mas também por ser cada vez mais passível a exportação do mesmo. O que também não se deve somente à insanidade cacófata que o seu rejubilante som emana. É, por tudo isto, mas, principalmente, por serem de facto uma banda do momento. Vivem no momento. Tocam no momento. Criam no momento. Não há grande deliberação na sua essência senão aproveitar um momento e fazer dele o melhor que se consegue. As aspirações do risonho futuro que lhes espera não lhes pesa; o passado, guardam-no com a satisfação do que já alcançaram. O momento é onde eles querem estar. É lá que vivem e onde fazem tanta gente viver melhor. E de momento, nós também dizemos o seguinte: não queremos que a MÁQUINA. termine as suas operações tão cedo.
Fotografia de destaque: Francisco Cabrita