Em meados de 2023, João Maia Ferreira anunciava que ia encostar às boxes o nome pelo qual ao longo dos seis anos anteriores se deu a conhecer como um dos produtores e engenheiros de som mais criativos e um dos MCs mais flamejantes do hip-hop tuga: benji price.
Não houve grande funeral. Ninguém apareceu vestido de preto, os lamentos foram poucos e não houve concerto de despedida. Com o lançamento de Baldio Vol.1 (2023), compilação de instrumentais lo-fi, o artista natural de Torres Novas deixava para trás a fase da carreira que lhe mudou a vida. O João que se assumiu como benji price em 2017 não era aquele que tinha começado a gravar artistas como xtinto ou DEZ em sua casa por volta de 2013 nem aquele que se autointitulou de Um Profeta, anos antes de Mário Cotrim – ou seja, ProfJam – o batizar benji price (obrigada Hip Hop Tuga – Quatro Décadas de Rap em Portugal pela informação).
O João que agora se assume artisticamente com o seu nome de batismo também não é aquele que assumiu o alter ego de benji price e que ajudou a mudar o rumo do hip-hop tuga com a Think Music. É um João que é um pouco de todos esses Joões, isso é certo. Mas o João Maia Ferreira de 2024 é um João que foi à procura da inocência que o fez apaixonar-se pela arte de fazer música, pelos instrumentos, pela produção. Foi à procura da sua génese, de razões para viver e para criar. De certa forma, encontrou-a.
Entre o nascimento do seu filho e a mudança de nome artístico, João encontrou novo propósito. Em O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua, título do seu segundo longa-duração a solo, cristaliza-o. É um dos grandes discos de 2024, um projeto onde o artista combina os seus “impulsos criativos sem filtros” com a necessidade de se exprimir tal e qual como é. Não é à toa que as primeiras palavras que se ouvem no sucessor de ígneo (2022) são “Só sei ser como sou, não vou mudar”. “Sou como sou e eu sou alguém que faz este tipo de fritarias”, admite. Quem quiser aceitar, aceita. Quem não quiser, tudo bem. Amigos na mesma.
Entre a aceitação e a vulnerabilidade, e o passado, o presente e o futuro, a Playback foi falar com João Maia Ferreira para entender quem é, então, o João de 2024.
Romper com o passado, mas sem o desconsiderar
Quando nos encontramos com João Maia Ferreira pela primeira vez, no seu estúdio em Lisboa, faltam quatro dias para O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua ser revelado ao mundo. Antes de nós, já outros ouviram o álbum e questionaram João sobre o seu significado. A sua metamorfose, tanto pessoal como artística, é a chave para entender o longa-duração. “Gárgulas”, single revelado em março, deu logo a pista de que este novo disco de João Maia Ferreira seria sobre si mesmo, sobre não ter jamais medo de dar um passo que pode ser em falso.
“Quando ouves a ‘Gárgulas’, dá para perceber qual é o mote do disco”, assume. De um lado, a ideia de liberdade, de que deseja fazer o que quiser (“Yeah, broda, vai na fé / Bota o pé em qualquer lugar”); do outro, uma identidade sónica completamente diferente de praticamente tudo aquilo que fez antes. Sintetizadores nostálgicos à anos 80, baterias dançáveis, uma forte componente de (nu-)disco e funk em procura constante de grandes refrões. Mas para chegar a um sítio onde se sentisse confortável o suficiente para abraçar as sonoridades que queria explorar, foi necessário que João refletisse sobre quem era. Teve de olhar para o passado e quebrar pontes com ele. Teve de aceitar os seus erros e aprender com eles. Só assim é que conseguiu chegar àquilo que é O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua: um (excelente) disco pop.
O lançamento de SYSTEM, disco que dividiu com ProfJam em 2020, funcionou como um encerrar de vários capítulos da vida de João Maia Ferreira. Lançado em junho desse ano, SYSTEM foi o álbum que acabou por essencialmente encerrar e celebrar o trajeto da Think Music. Em novembro, surgia o anúncio público de que a editora ia terminar, quatro anos depois de João Maia Ferreira, Mário Cotrim e Nelson Monteiro terem iniciado uma revolução musical que mudou o curso do hip-hop tuga.
“Com o SYSTEM, encerrei um capítulo de carreira, até porque também deixei de produzir tanto”, revela. Em SYSTEM, além de algumas das produções mais arrojadas da sua carreira, João Maia Ferreira também se assumiu definitivamente como um dos mais criativos da palavra do hip-hop tuga. Mas apesar da receção positiva ao álbum, tanto da parte da crítica como dos fãs, foi no pós-SYSTEM que a fricção outrora inconsciente entre benji price e João Maia Ferreira passou a consciente.
“Quando lancei o SYSTEM, senti que estava agarrado para sempre ao nome benji price”, confessa. O choque de personalidades passou a ser uma luta constante e João começou a pensar se faria sentido continuar a assumir a identidade de benji price. “O choque entre quem era o benji price, que era esta personagem larger than life, e o João tornou-se demasiado e tive de escolher entre um deles”, assume. “E eu preferi escolher-me a mim pela minha autenticidade”.
Isto não significa, contudo, que tenha algum desdouro pelo seu passado. Pelo contrário. Fala com enorme orgulho da música “frita” que a Think Music editou e da forma como o selo alterou o curso do hip-hop em Portugal com o seu trap efervescente. “Mostramos que era possível criar uma carreira com uma sonoridade muito mais fora daquilo que estava a ser feito na altura em Portugal”, indica. “Continuas a ver as sequelas da Think Music atualmente e, nesse sentido, o legado que deixamos é incrível. Sinto um enorme orgulho em ter feito parte do grupo que escancarou as portas para esse hip-hop mais experimental”.
E é verdade. Será que nomes como T-Rex ou SleepyThePrince teriam o impacto que têm hoje sem a Think Music? Será que correntes artísticas diferenciadas como as pinturas abstratas de ensemblu ou o neo-romantismo de João Não existiriam sem as experimentações do selo? E quantos putos terão começado a rimar ou a fazer beats depois de escutarem MIXTAKES?
Contudo, apesar do orgulho no passado, João Maia Ferreira assume que aquilo que muitas vezes cuspia na pele de benji price não refletia quem era o “verdadeiro” João. O braggadocious que apresentava logo na sua primeira faixa, “40 Oz. Freestyle”, em que dizia querer esmagar “o ringue” e que até ia matar “o [Sam The] Kid” escondia, na realidade, uma imensa vulnerabilidade por detrás. João não queria ser o maior da sua aldeia, mas cantava isso como se fosse verdade. É esse o verdadeiro rompimento que ocorre em O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua. João Maia Ferreira não é nenhum super-herói que quer derrotar todos os outros. Mas é um gajo normal com ambições, que por acaso faz música bem catita.
De João a benji price, de benji price a João
No seu dia-a-dia, João Maia Ferreira considera que não é nada daquilo que benji price assumia ser. “Dizia essas coisas todas porque estava a tentar convencer-me que elas eram reais”, declara o artista. “Se eu dissesse que era o maior disto tudo, meio que me tentava convencer que eu era efetivamente essas coisas”. Em “Mandrágora”, canção que serve de homenagem ao seu Ribatejo, João Maia Ferreira expõe este sentimento: “Eu reneguei a minha origem / Quis fingir que era outro”.
“Tive mesmo a preocupação de ceder a zero ego trips neste álbum”, admite. “É engraçado rimar na desportiva e ver quem cospe mais logo, mas não sinto que seja melhor que ninguém”. Para João, a ideia de tentar mostrar que era melhor os outros deixou de fazer sentido. “Olho para algumas das barras que escrevi e penso – para que é que disse aquilo?”, confessa entre risos, brincando que continua, apesar de tudo, a achar que as “barras continuam a ser dope! Não reescrevia nada do que escrevi, mas já não há espaço para dizer mais dessas coisas”, conclui.
Esta introspeção resultou no afastamento de João Maia Ferreira daquilo que considera os “elementos tóxicos do hip-hop”. Sabemos, muitas vezes, quais são: a misoginia, a competição, uma certa masculinidade tóxica. O hip-hop, por si só, é escapista. Pode-se e muito bem discutir de que forma esse escape é um elemento crucial para as comunidades marginalizadas que deram origem ao género, mas para o caso de João, este escape não era tão importante. Com o nascimento do seu filho em 2022, todos estes elementos deixaram de fazer sentido na sua vida. É a voz de Akira, seu filho, que se escuta no final de “Ser Como Sou”, a enunciar o título do álbum. Quem está familiarizado com o percurso de João Maia Ferreira sabe que ele é um nerd e um curioso nato, alguém que povoa as suas músicas com referências à pop culture. O título deste disco é outra prova disso. É inspirado pela mitologia nórdica, pelo Ragnarok, em mais uma demonstração do renascimento que pretendia representar nesta obra.
“O meu filho nasceu dois meses depois de lançar o ígneo”, indica João Maia Ferreira, revelando que foi “um grande momento de quebra com o que estava a fazer antes”. “Muita desta libertação da identidade de benji price vem fomentada pelo desejo de ser o melhor pai que consigo ser”. “Quero ser um exemplo para o meu filho e isso passa por eu ser a versão mais autêntica de mim mesmo.” O desejo de ser ele próprio neste disco surge também daí – de mostrar ao filho, um dia quando ele ouvir o álbum com ouvidos de ouvir, que a vida e os sentimentos são complexos e não se ficam apenas por um desejo de ser melhor que o outro.
Em 2022, já as vozes na cabeça de João lhe indicavam que devia deixar para trás o nome de benji price e assumir o seu nome: “Já era para ter trocado de nome quando lancei o ígneo, mas foi-me aconselhado a não o fazer porque estava a estabelecer uma carreira a solo e as pessoas reconheciam o nome de benji price”. Há uma verdade aí. Se João Maia Ferreira tivesse trocado de nome imediatamente a seguir ao lançamento de SYSTEM, como seria a receção? benji price é um nome artístico brutal – fica no ouvido. João Maia Ferreira não tanto. Passou a ser necessário dar o primeiro passo sozinho enquanto benji price para João ganhar a coragem de finalmente se apresentar sem filtros.
“Do ponto de vista individual, estive a acobardar-me este tempo todo”, confessa. “Precisei de ganhar coragem para fazer algo com o meu nome e foi todo um processo de introspeção que também envolveu abdicar deliberadamente do mainstream.”. ígneo, belíssimo álbum, foi o primeiro passo para fugir dos palcos maiores para um nicho onde João pudesse estar mais confortável em ser ele. Porém, o próprio sente que ígneo não foi o passo que podia ter sido nesse aspeto. Só com o lançamento de O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua é que se consolida esse novo caminho que está a traçar.
“Adoro o ígneo, defendo-o com unhas e dentes até aos dias de hoje, mas é um álbum que consigo reconhecer ser vítima de uma expectativa do público. Queria fugir disso, mas ainda não estava totalmente ausente do sentimento de querer fazer algo que as pessoas esperassem de mim. A dado ponto, pensei mesmo em cagar nesse álbum e ir fazer outro.” Porém, ígneo foi lançado e algumas das sementes sonoras que João explora em O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua já estavam a ser plantadas. A segunda parte de “Final Fantasy Freestyle”, um beat próximo do G-Funk, mostrava as primeiras intenções de João Maia Ferreira fazer algo mais dançável.
“A ‘Final Fantasy Freestyle’ foi das últimas canções que fiz para o ígneo,” indica. “Lembro-me de na altura já estar num estado de espírito de me estar a lixar para as expectativas. Sinto que nessa faixa capturei o espírito do que queria fazer com este novo disco.” Na altura, numa crítica menos positiva à apresentação de ígneo no Tivoli BBVA, Alexandre Ribeiro declarou no Rimas e Batidas que foi em “Final Fantasy Freestyle” onde benji se sentiu “mais confortável”. As sementes estavam já a ser plantadas – precisavam era de tempo para germinar. E para isso, foi preciso experimentar, brincar.
“No final de contas, acabei por fazer um percurso dentro do hip-hop para acabar no mesmo sítio onde comecei”, afirma João Maia Ferreira. “Regressei à mentalidade com que comecei a fazer música, que era a da experimentação”.
Pop romântica servida à moda de João Maia Ferreira
Em 2018, anos antes de “Gárgulas” ter sido a faixa #1 do “ponto de vista de criação” de O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua, já João Maia Ferreira andava a experimentar com sons que, mais tarde, viria a repescar para este disco. O refrão de “Diz-Me Como”, canção onde convida João Não, data dessa altura. Estranhamente, apesar de João Não se enquadrar que nem uma luva no universo romântico de O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua, é a canção do álbum que é menos memorável. Porém, serve como momento para lembrar que havia já dentro de benji price um lobo que queria escapar e fazer um álbum assim, dançável, libertador.
“Quando fiz o rascunho da ‘Diz-Me Como’, não estava a fazer aquilo a pensar que ia ser para o projeto de benji price”, confessa. “Essa canção, por nunca ter passado pela triagem de benji price, é uma canção do João desde o início”.
Mas se “Diz-Me Como” é um bocadinho o patinho feio de O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua, o resto do disco praticamente não falha na sua missão de ser um disco mega dançável, mega pop, mega libertador. Sem amarras sonoras, sem dúvida, e que apesar de apresentar tons sonoros consistentes ao longo das suas 14 faixas (originalmente eram 18), nunca soa repetitivo ou pastiche. Há momentos onde João Maia Ferreira se deixa levar pela sua devoção aos Daft Punk (“Titã”, “Borda Fora”, esta a canção mais política que já colocou cá fora) ou Kaytranada, onde se aproxima da retro pop de uns D’Alva (“Nenúfar”, “Impala”, com participação gigante do próprio Alex D’Alva Teixeira), onde se enquadra na homenagem da pop atual aos anos 80 de uma “Expresso” de Sabrina Carpenter (malha de quem João Maia Ferreira se confessa grande fã) ou de Dua Lipa em Future Nostalgia (“Credo”, “Passa Rápido”).
É curioso que o disco mais pop de João Maia Ferreira até ao momento seja aquele que, na verdade, mais o afasta do mainstream português. Neste álbum, está mais próximo do universo sonoro que anda a ser feito por produtores e artistas ligados à AVALANCHE e aos Great Dane Studios, como LEFT., Luar, NED FLANGER (créditos de produção em “Incandescência”) ou INÊS APENAS, ou das experimentações dançáveis de L-Ali e Lunn (créditos de produção em “Titã”) em Balanço, magnífico EP de 2023.
Por outro lado, O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua está muito próximo do zeitgeist pop atual, tanto a nível sonoro, como também devido à sua forte componente pessoal. A lore pessoal de João Maia Ferreira, a transformação que sofreu ao longo dos últimos anos é chave para entender o disco. O tempo, na realidade, foi crucial, pois permitiu a João refletir e repensar o disco como queria. O álbum foi erguido ao longo dos últimos dois anos de forma algo desfasada. A dado ponto, João Maia Ferreira interrompeu o trabalho no seu disco para ir fazer SENSOREAL (2023) com Rita Vian. “Só depois disso é que comecei seriamente a trabalhar no meu álbum”, admite.
“Quis deliberadamente fugir ao trap e ao boom bap”, conta João. “Pensei seriamente em fazer um álbum de boom bap, mas estava mesmo nesta onda de fazer cenas mais disco e funk. Tentei fazer um disco em que seguisse os meus impulsos criativos sem filtros e o que me deu foi para isto.” O objetivo em mente? Construir canções com grandes refrões e cujos instrumentais fossem sempre dançáveis no matter what. “Se a faixa não tivesse um refrão forte, deixava a ideia para trás”, refere João Maia Ferreira.
Contudo, apesar dos traços mais dançáveis da música de O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua, a importância da palavra não perdeu impacto. “Produzi este disco com a intenção de não ser um disco de rap, mas continua a ser música dominada pela palavra”, assume João. É nesse cruzamento onde João Maia Ferreira encontra um sítio onde se consegue exprimir sem medos. Neste disco, é vulnerável como nunca o ouvimos. Canta sobre a sua neurodivergência e lutas com a sua saúde mental em “Titã” (“Sa foda se me atrasa um pouco a neurodivergência / Com diligência hei-de ter o troco da paciência”), abraça o seu lado romântico em “Impala” (“Já viste muitas campanhas / Mas vou ser quem ganha o teu voto / Que a fé move montanhas / E vais ver que sou o mais devoto”), reflete sobre a efemeridade da vida em “Passa Rápido” (“Eu ando lento, que isto passa rápido / Mas não paro, nem amoleço / Sigo nesse cardio ao meu passo, não mando o lenço”).
Nada disto é vivido sozinho, claro. Não é à toa que João Maia Ferreira consegue extrair o melhor dos seus convidados neste álbum. xtinto mata o feat em “Mandrágora”, canção que só peca pela sua temática demasiado próxima de Man of the Woods. Conan Osiris continua a sua senda de grandes versos em “Gárgulas”. Mike El Nite surge numa aparição em modo rapper cada vez mais rara em “Borda Fora”. Keso oferece cred e um grande verso a “Samsara”, canção que encerra o álbum. prettieboy johnson, camarada de Torres Novas e da Think Music, regressa dos mortos para suavizar “Baú”, outra das grandes malhas deste disco. “Quando chamo as pessoas para uma música é para matar”, esclarece João.
Talvez seja por estas serem emoções tão reais que João Maia Ferreira acabou por regressar às suas origens enquanto instrumentista que navegou por bandas de metal do Ribatejo antes de encontrar no hip-hop o seu espaço. Para se exprimir verdadeiramente através da sua pop, teve de trazer ao de cima o lado orgânico da sua música: “Se gosto tanto de tocar e me divirto tanto a fazer coisas num contexto live, então fez sentido fazer canções onde incluía mais isso. Sinto que isto representa o meu gosto enquanto executante”, confessa. A instrumentação, portanto, também tem grande importância em O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua. E não só a instrumentação amplia as emoções, como também garante que, qualquer que seja a situação, isto são canções que irão fazer pelo menos uma pessoa bater o pé quando as escuta. Em estúdio, cumprem esse objetivo. Ao vivo, também.
Um caminho atribulado para a aceitação
Quando João Maia Ferreira desceu do palco após ter apresentado O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua em meados de outubro, o alívio foi real. Se o concerto no Tivoli BBVA há dois anos não foi tão amplamente bem recebido como ígneo, a apresentação no B.Leza do seu novo álbum pode ser descrita como uma noite onde tudo correu bem. Foi uma noite para dançar, onde a transformação de João Maia Ferreira se completou numa noite de lua cheia. “Uma atuação consistente e sem máculas, cumprindo exatamente aquilo a que se tinha proposto”, escreveu Ricardo Farinha no Rimas e Batidas sobre o concerto.
Quando nos encontramos pela segunda vez com João Maia Ferreira, novamente no seu estúdio, alguns dias depois do concerto, encontramos alguém satisfeito com o desenrolar dos eventos. “Até subir ao palco e ver as pessoas, pensava: porque é que alguém viria ao meu concerto?”, confessa. “Tenho sempre muitos problemas com o que as pessoas esperam de mim e acho que, por causa disso, existiu sempre muita autossabotagem e boicote da minha parte para comigo. E isto são tudo realidades e narrativas que eu construo totalmente na minha cabeça e que são debilitantes,”. Se ao B.Leza se deslocou uma boa massa humana, praticamente a esgotar o clube lisboeta, é a indicação de que haverá sempre alguém para escutar as efemeridades de João – nem que seja o próprio.
O B.Leza foi o setting correto para a apresentação de um disco como O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua. Se o Tivoli BBVA em 2022 foi plateia, o B.Leza era o inverso. Local perfeito, portanto, para o público bater o pé. Se parte do objetivo de João Maia Ferreira em apresentar este álbum era aproximar-se de quem o quer ouvir, independentemente se é benji price ou não, a decisão de o tocar no B.Leza revelou-se certeira. Bola de espelhos ao centro, uma banda tremendamente bem oleada – Alex Bastos (bateria), Fred Severo (baixo), Will Brockman (guitarra) e Rui Paiva (teclados) -, uma legião de fãs estranhamente com as canções já na ponta da língua. E um João, claro, ao centro, microfone em punho, pronto a receber alguns dos convidados do disco em palco, a cantar praticamente tudo aquilo que se ouve no álbum.
Pode parecer pouco, mas para João, este concerto foi necessário. Houve preocupação em construir o melhor espetáculo possível, de dar roupagens novas às canções, de entender como o autotune podia dialogar com aqueles instrumentais em palco. Afinal, a voz é um dos grandes trunfos de O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua, uma das claras evidências que João Maia Ferreira brincou muito para construir a paleta sonora deste álbum.
Em palco, João Maia Ferreira tocou apenas e só canções de O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua. A ideia acaba por ser a de dar destaque apenas às canções deste disco, continuando uma tradição do artista de apenas tocar as canções do disco que está a apresentar na primeira apresentação ao vivo. “Essa é uma tradição que continuarei daqui para a frente”, revela. A setlist não seguiu a ordem do disco, mas terminou com a mensagem principal ao som de “Ser Como Sou”. O lobo uivou e a sala escutou o bálsamo bem-sucedido. João já não era benji price; era apenas João. Por isso, sabe que ainda há coisas que tem de perceber e que ainda tem sonhos a cumprir. Quer, de alguma forma, apresentar este disco em Torres Novas, prosseguindo o sonho que xtinto também cumpriu este ano, quando esgotou o Teatro Municipal de Ourém. Entende que, daqui para a frente, dentro dele, talvez não exista um SYSTEM 2, um ígneo 2 ou um regresso à persona de benji price. “Se existir, talvez precise de canalizar um comprimento de onda altamente específico e conseguir aguentá-lo durante uns meses”, afirma.
Sabe que precisa de lutar ainda para aceitar que, apesar de tudo, há pessoas que gostam da sua música e que não necessita da sua validação para continuar a criar. Isso é apenas um bónus. Por agora, apesar da satisfação com o seu novo disco, sabe que daqui por um tempo a fome de criar irá voltar e que poderá iniciar o processo de um novo trabalho. “Se isso vai acontecer daqui a umas semanas ou daqui a uns meses, não sei, mas isto é a primeira vez na minha vida que meto um projeto cá fora e digo que estou satisfeito”, afirma.
“Sinto-me profundamente em paz com o que quer se siga artisticamente para mim. Sinto que as pessoas já não esperam nada de mim e posso fazer o que quiser”, revela. “Sentir que tenho essa carta branca, para mim, é uma lufada de ar fresco.”. O caminho pode ter sido acidentado e cheio de solavancos, mas todos os obstáculos trouxeram João a um sítio que pretendia: o de “liberdade criativa total”.
Talvez seja essa paz de espírito que, daqui para a frente, moverá João Maia Ferreira. Se com o tempo se perdeu com as miragens da suposta grandeza de benji price, reencontrou-se com a sua própria identidade ao aceitar o seu passado para erguer o seu futuro. Qual será esse futuro, contudo, só o tempo irá revelar. Até lá, é escutar estas malhas. Porque merecem ser ouvidas.
Fotografia de destaque: Beatriz Pequeno