Ela é mulher. Ela é mãe. Ela é artista. Ela é Joana Alegre, uma das mais sensacionais cantautoras portuguesas da atualidade. Não acreditam em mim? Ouçam LUAS, o seu novo álbum. Ah, e já agora, os seus antecessores, Centro e Joan & The White Harts. Só boa música.

Mas venho aqui falar-vos sobre LUAS, o seu terceiro longa-duração. Em termos de sonoridade, Joana Alegre continua fiel ao seu pop barroco, mas desta vez recorre com mais frequência ao electrónico, de uma forma que aprofunda e amplifica a mensagem que quer transmitir. Se o resultado final são oito canções raras, que exprimem uma voz cristalina e emancipada, deve-se, em parte, a Choro, responsável pela produção gigantesca. LUAS espelha um grito de revolta e de resistência para com o mundo sob a lente única de uma artista que se recusa a ser reduzida a estereótipos e a ser silenciada.

Para percebermos melhor como é que funcionou o processo criativo que nos trouxe até aqui e as motivações que a levaram a criar este disco, a Playback sentou-se à conversa, remotamente, com Joana Alegre para que ela nos indicasse o caminho para entendermos melhor o universo de LUAS.

Capa Luas
Capa Luas. Fotografia: Luís S. Tavares
Digamos que a tua carreira já é longa, não é uma carreira iniciada há pouco tempo, e a prova disso mesmo é que, quando te descobri pela primeira vez – através do Festival da Canção, em 2021 – tu já tinhas editado um disco, Joan & The White Harts. Entretanto, lançaste um segundo álbum, Centro, e agora tens o teu terceiro longa-duração cá fora, LUAS. O que dirias que mudou na tua vida desde o teu primeiro projeto ao mais recente?

No primeiro álbum, ainda não estava a dedicar-me a 100% à música. Muito pelo contrário, até. Tinha um trabalho full-time, se bem que era um horário flexível – trabalhava também, muitas vezes, aos fins de semana e feriados. Isso exigia uma disponibilidade que não era compatível para estar a seguir uma carreira a solo. Nem me refiro à vertente criativa, mas sim ao que me exigia a tempo inteiro. Não podia ir para a estrada como queria, por exemplo. Então, gravei o primeiro álbum na sequência do “E Agora?”, o dueto que fiz com o Mikkel Solnado. O Mikkel apercebeu-se que eu tinha muitos originais e ofereceu-se para produzir o meu primeiro disco. Foi uma coisa ainda muito a medo. Foi tudo gravado à noite – saía do trabalho e ia ter com o Mikkel, a Cascais, ao estúdio que viria a tornar-se a Great Dane. Daí o espaço de cinco anos até ao segundo álbum. Foi o tempo que demorei a tentar estabilizar as minhas opções e a perceber que não conseguia viver sem estar a fazer música a tempo inteiro, por muito difícil que seja a vida de músico a tempo inteiro.

Suponho que o facto de teres sido mãe também tenha contribuído, de certa forma, para este espaço temporal entre discos.

Sim. Na verdade, ter sido mãe precipitou o segundo álbum. Não me senti presa. Muito pelo contrário, até. Decidi despedir-me do meu antigo emprego. Estive oito anos na Câmara. Aceitei este trabalho quando cheguei de Nova Iorque, porque uma pessoa precisa de pagar contas e, para além disso, também tinha outros interesses além da música, e não há problema nenhum em assumir isso. No início, foi muito interessante, mas depois, quando fui mãe, tudo se precipitou. Ficas no teu estado mais vulnerável, reequacionas tudo e percebes que tens que estar confortável com o que estás a fazer com o teu modo de vida, e até também no que vais transmitir ao teu filho. Aliás, fiz um concerto a solo nas Festas do Mar, tinha o meu filhote 3 meses. Foi um switch brutal. Quando fui mãe, foi uma espécie de renascimento e de decisão interior profunda – não queria estar a viver uma meia vida e, portanto, foi um pontapé de saída para me dedicar a tempo inteiro à música.

Ser mãe traz responsabilidades e necessidades acrescidas, e isso reflete-se na tua escrita. Quer dizer, à medida que vais amadurecendo, vais tendo novas e diferentes perspetivas sobre determinados temas, e acho que transportas isso, na perfeição, para as tuas canções.

Há artistas que são performers e que seguem uma carreira mais comercial e, então, escrevem em função do que é o sentimento coletivo de um determinado público que eles querem alcançar. No meu caso, acho que me enquadro no tipo de artista que vai sublimando as coisas que vai atravessando. Um artista precisa de viver e de passar por coisas para depois poder, de facto, criar. Neste momento, há intérpretes que fazem a sua carreira a partir das criações de outros. Mas quando vais para uma perspetiva individual, ou seja, de alguém que está “sozinho”… Atenção, eu não faço nada sozinha… Mas aquilo que é a matéria-prima do que depois vai ser produzido, arranjado e gravado em estúdio, trata-se de um processo muito íntimo e, por isso, é uma coisa que tem que refletir aquilo que vou atravessando. Na minha opinião, este é o papel do tipo de artista que é cantautor; que acaba, muitas vezes, por se conectar com o público por trabalhar, lá está, esta perspetiva individual, onde aborda a forma como a vida o afeta, seja no sofrimento, seja nas alegrias, seja num lado mais filosófico da vida. Eu, por exemplo, não sou só triste, nem só alegre, nem só reflexiva. No fundo, acho que vou misturando um pouco de tudo.

E outro aspecto: o teu primeiro álbum é maioritariamente composto por canções em inglês, o que não acontece em Centro e LUAS que estão inteiramente em português. Quais foram as razões que motivaram esta decisão?

Honestamente, tinha vergonha de mostrar as coisas em português, porque sou filha de um dos maiores poetas da Língua Portuguesa [Manuel Alegre]. Como referi antes, o primeiro álbum foi uma coisa ainda muito a medo, embora ache que quem vá ouvir perceba logo que está ali a Joana Alegre. Mostra já um registo de rock pop, a fugir, por vezes, para um pop puro e duro ou, então, para um indie folk. Portanto, tem estes elementos todos que, no fundo, depois fui costurando e, hoje em dia, já apresento um crochê disto tudo. No fundo, a forma como eu dialogava com o Mikkel era diferente. Nem sempre conseguia explicar tão bem, ainda era muito miúda, tinha uns 23 anos, talvez. Confesso que até gostaria de ser mais formada na música. Na realidade, tenho formação musical, mas sou mais autodidata.

Quanto ao inglês, sempre tive uma inclinação natural para tudo o que é anglo-saxónico, o que é estranho, porque a minha família é mais virada para o francófono. Todos falam francês bilingue em casa. Já eu sempre tive um fascínio pela língua inglesa e, por exemplo, pelo folclore celta e pela poesia irlandesa – o meu pai é que me abriu esta porta. Também comecei a ter interesse em perceber a ligação que havia com a nossa música tradicional do Norte e do Centro do país. E, claro, também ouvia muitas coisas em inglês. Portanto, naturalmente, comecei a escrever em inglês e, pronto, acabou também por se tornar uma espécie de defesa para não estar a arriscar logo a mostrar as coisas em português. Sim, porque eu escrevia em português, mas simplesmente ficava na gaveta; não mostrava a ninguém. A música é para ser ouvida e, portanto, tem um imediatismo… Quer dizer, a música só vive de tu a mostrares, ao passo que tu podes escrever e não mostrar logo. Há uma relação mais imediata entre o fazer uma canção e mostrar a alguém do que escrever uma canção e mostrar a alguém. É mais imediato a questão da música, pelo menos no nosso subconsciente, diria eu. Portanto, tendencialmente, as músicas iam demorar menos tempo a mostrar a alguém – mais um motivo para escrever em inglês. E, aliás, a primeira vez que mostrei os meus originais nem foi em Portugal, mas sim em Nova Iorque, num concerto, talvez isso também tenha influenciado. Foi uma mistura de fatores, talvez. Hoje em dia dá-se o contrário, continuo a compor em inglês, mas não mostro, porque fui-me afirmando como cantautora portuguesa.

Há pouco, falaste sobre a tua sonoridade que também tem vindo a evoluir. Já te ouvimos num registo de rock pop com orquestração, de indie folk mais intimista, de pop barroco e sempre com uns toques que remetem à portugalidade. Sentes que já encontraste o teu som ou, para ti, não há limites no que diz respeito ao explorar?

Pegando nesta perspetiva do cantautor que estava a falar há pouco, do cantautor que se interessa também pela parte da produção, acho que há sempre uma necessidade de ser “plástico”, no sentido de sermos adaptáveis aos estilos [de música] e de irmos refletindo o que vai acontecendo à nossa volta. Como já dei a entender, eu sou estimulada pelo que vai acontecendo. Se estiver sempre a ouvir o mesmo tipo de música, se calhar vou ficar presa a um só género. Mas, por acaso, tenho aquela coisa de ir à procura do que está a ser feito de novo e, por isso, acho que sou uma pessoa permeável aos tempos. O mais provável é que, pelo menos, ainda por uns largos anos, vá sendo permeável àquilo que vou ouvindo e vá trazendo influências para a roupagem final das minhas canções, que nascem normalmente à voz e guitarra ou à voz e piano. Na verdade, quando componho, já estou a pensar nos elementos centrais: no piano do Vicente Palma ou no violino da Emiliana Silva. Também tento sempre juntar algo com linhas cruzadas do ukulele que faço já depois das coisas estarem harmonizadas.

Diria que, ao longo dos tempos, houve sempre elementos que foram transversais: um certo rock irreverente, num lado épico até dos power drums, com elementos, como tu disseste, de portugalidade… Mas, aliás, pode não ser só de portugalidade, podem ser coisas que soam, às vezes, a folk e, pronto, o folk cruza-se. Há coisas vikings, que podem ser coisas irlandesas e, ao mesmo tempo, soar a coisas portuguesas. Portanto, há alguns folclores que se entrecruzam. Diria que me vou situar sempre nesta família de instrumentos do folclore, mas neste álbum, por exemplo, usei uma handpan, que não tem nada a ver. É um instrumento super recente, só que fiquei fascinada com aquilo e decidi introduzi-lo também. Mas, lá está, se calhar soa a esse ambiente. Também sempre procurei chegar a um equilíbrio entre ter arranjos de pop barroco, de pop rock e de indie rock – que é o registo das bandas que sempre me inspiraram. O pop barroco vem dos anos 60. Jefferson Airplane, por exemplo, são uma banda de pop barroco e, por isso, é que percebemos que há ligações entre bandas como Florence + The Machine e Fleetwood Mac, e eu situo-me aí. Também procurei explorar ambientes mais electrónicos, mas que respeitassem, ao mesmo tempo, o lado mais orgânico da canção, de modo a que tu tanto possas ouvir um concerto meu com backing tracks com a pujança toda, como um concerto meu só à guitarra, e consigas sentir na mesma o poder das canções. Há uma cantautora norueguesa que me inspira muito, que é a AURORA, e ela aparece com arranjos completamente electrónicos e de neofolk, mas depois faz também um concerto num contexto mais acústico, e aquilo soa bem na mesma. Isto agrada-me imenso.

Dos três projectos editados até hoje, o Centro e o LUAS são aqueles que me parecem ter um vínculo mais forte. Mas, ainda assim, o LUAS soa-me a um disco mais visceral. É assim que o vês? O que pretendes transmitir com ele?

O Centro e o LUAS estão na mesma região de definição, onde está um estilo definido, mas espelham períodos diferentes. Normalmente, sou apologista de fazer álbuns, lá está, na perspetiva do cantautor, que refletem uma determinada fase, porque as coisas tornam-se mais coesas. E nós fazemos música para nos ligarmos a quem nos ouve e, portanto, o melhor que posso fazer é ser verdadeira e transmitir mensagens de acordo com essa fase. O Centro era uma fase de serenar e de me reecentrar. Foi escrito antes, durante e depois da fase em que me despedi para me dedicar inteiramente à música, e reflete precisamente esse encontro. Foi um processo de encontro interior e exterior. O LUAS corresponde a uma fase de agitação. O encontro comigo própria já estava feito, mas há uma angústia existencial relativamente ao que me rodeia e aos tempos que estamos a atravessar – muito relacionado com o que ainda é esperado, imposto e pressionado às mulheres. O mundo está a sofrer imensas pressões. Por exemplo, estas guerras que estão a acontecer – a Guerra da Ucrânia e, agora, a Guerra de Israel – são de uma brutalidade que achávamos que já não íamos ver. Quer dizer, pelos vistos, ainda não estamos tão evoluídos como pensávamos. Depois ainda temos a emergência climática, o crescimento dos extremismos… Tudo isto me afeta, tal como deve afetar qualquer pessoa, mais ainda na perspetiva individual de artista independente, mãe, que anda aqui na luta e, depois, negam-te tudo. Para além disso, o LUAS reflete também aquele processo que todos nós temos de diálogo interno: de ir à procura de uma certa coragem interior e de uma certa esperança. É um álbum mais dinâmico, ou seja, não está só num mood. Daí também o título. Há temas tão angustiados como o “” e o “Desdita” e, depois, há temas que vão buscar aquele pensamento de “vá, vamos acalmar”, como é o caso do “Copo Cheio” e do “Início”. Depois até existe uma certa celebração do lado mais impulsivo, lado este que temos que continuar a ter. Diria um lado mais pueril, de poder desfrutar o sol na cara. O “Rosa Carne” fala muito disso: de eu poder ser selvagem. Há um lado de querer estar sempre a reprimir coisas que são instintivamente normais e naturais e o LUAS também fala dessa ligação ao nosso lado mais primitivo, no bom sentido: de podermos recuperar esse lado voraz, de poder ir curtir à lua-cheia, dançar e apaixonar violentamente, e depois desapaixonar outra vez [risos]. 

Há aqui um conceito em torno do ciclo da Lua: já o tinhas idealizado ou foi surgindo à medida que ias criando? Explica-me melhor este conceito e a relação com o título.

É uma dinâmica engraçada, é como se houvesse uma dialética entre o processo de criação e aquilo que vai ser a cara final do álbum. O meu pai dizia-me sempre “antes de dar título, tens que te focar no que estás a dizer” e tinha toda a razão, porque é mesmo isso. Quer dizer, antes de pensar na fachada, o artista tem que ir para dentro, e eu acredito que ao observar e ao estar atento a todo o processo, o título acaba por se manifestar através do trabalho criado. Por exemplo, eu não tinha título para o Centro. Tinha ali um conjunto de temas que melhor refletiam a fase pela qual estava a passar, olhei para eles com atenção e apercebi-me que vários falavam em “centro”, ou seja, o título simplesmente revelou-se. Não como uma coisa mística, mas de “pronto, isto é um centro”. No LUAS, eu sabia que tinha que estar relacionado com a lua. Isto porque aconteceu, muitas vezes, escrever e ter ideias para as canções durante a noite, o que não acontecia muito antes. É aquele momento em que uma pessoa vai para a cama e fica-

Pensativa.

Exato. Isso aconteceu-me muito neste processo e, quase de forma natural, comecei a inclinar-me para perceber melhor o que era também esta questão das fases lunares, porque senti isso em mim. Quer dizer, consciente ou não, racional ou não, para mim, era engraçado ver que havia relações entre se estava lua cheia, se estava minguante e por aí fora. Não sou nada de mapas astrais, não sou completamente crente nessas coisas, mas gosto da brincadeira que há nisso, e acho que está ligado a esse lado mais pueril que respeito e que acho que é importante manter na vida. É bom acreditar nalguma magia mesmo que sejamos céticos e podermos desfrutar disso com alguma graça, sem entrar em dissociação, porque obviamente que as coisas têm o valor que têm. É um bocado aquela frase do “eu não acredito em coincidências mas que elas existem, existem”. Depois, também sou surfista e soube sempre que há uma ligação com o mar relativamente às luas. As marés são influenciadas pelos ciclos lunares, e lembro-me também da pesca, há uma relação qualquer dos peixes com as marés e, por sua vez, com a lua. Depois, quando fiquei grávida, também reparei que nos hospitais e nas maternidades falavam da tendência para as mulheres darem à luz nas luas cheias – acho que tem a ver com o centro de gravidade, com os magnetismos, as rotações na Terra, ai não sei [risos]. Pronto, fui percebendo que havia aqui estas correlações todas e pensei também “ok, quero falar das fases, porque senti que as fases me afetaram, e quero falar da lua, porque isto foi feito num processo noturno” – LUAS, pronto [risos].

O Choro teve um papel crucial a ajudar-te a chegar a este resultado final. Como foi trabalhar com ele? Porquê a escolha dele para a produção do álbum?

O Choro foi fundamental, porque isto acabou por ser um processo muito mais íntimo do que os outros. Nos outros, houve sempre fases de gravação em que vinham músicos ao estúdio e, portanto, foram processos mais segmentados com influência de mais gente. Este não tanto. Este foi um processo muito mais nuclear, diria eu. Só participou o Vicente, a Emiliana e os que fizeram dueto comigo – a Emmy Curl, a Elisa Rodrigues e o Mikkel Solnado. O resto foi literalmente o Choro e eu. Adorei trabalhar com ele. O Choro é um produtor super inteligente. Para mim, a inteligência tem que ter um q muito de emocional e muito de Q.I. propriamente dito, e o Choro tem as duas coisas. É uma pessoa com uma vasta cultura musical que, apesar de ser um nerd total do que é a engenharia de produção, é um músico também. Ou seja, tem sensibilidade, tem aquele lado ultra intuitivo, não se perde no tecnicismo ou na teoria do “ah vamos experimentar por aqui, porque agora há uma fórmula que está a ser mais usada”. Não. É o que funciona para a canção. E, depois, por outro lado, tem um respeito total. Nunca agiu com qualquer tipo de sobranceria. Muito pelo contrário, até. Respeitou sempre as referências de produção que eu trazia, por exemplo. Quando eu quis trabalhar mais a direção musical, ele deixou e as coisas funcionaram. No fundo, acabou por ser um tête-a-tête de duas pessoas que se deram bem naquele ambiente. Ouvimo-nos muito um ao outro, as ideias que cada um trazia. E o Choro tem uma capacidade fantástica de deixar a sua assinatura, mas não violentar o estilo e a identidade do artista com quem está a trabalhar. Se nós formos ouvir outros artistas que ele já produziu, não vai soar àquilo que eu fiz, não vai soar ao que cada um entre nós está a fazer e não vai soar só à assinatura de produção de Choro, mas está lá. Na verdade, não teria acontecido aquele crochê final que sempre quis se não fosse o Choro. Desde o primeiro álbum que andava à procura deste entrosamento perfeito, do que seria ideal entre o lado mais folclore, mais pop barroco e mais electrónico, e com o Choro consegui chegar lá.

Há pouco, mencionaste a Emmy, o Mikkel e a Elisa, que fizeram também parte deste trabalho. Que ligação existe entre ti e estes três artistas, e o que é que eles acrescentaram a este disco?

Acrescentaram imenso. Se estou a fazer um disco que, no fundo, defende esta ideia que somos todos criaturas de luas e todos temos as nossas fases, faz sentido haver partilha e conexão. Sou muito apologista de fazer música com pessoas que me inspiram ou com amigos que caminham comigo neste trilho. Começando pela Catarina Miranda (aka Emmy Curl), ela é uma artista incrível e custa-me a crer como é que ela não está melhor posicionada a nível do conhecimento do grande público em Portugal. É uma artista independente como eu. Respeito-a e admiro-a imenso também por isso. Ultimamente, ando aqui num bromance com tudo o que são mulheres artistas independentes e que, orgulhosamente, seguem este caminho para poderem ditar o seu certame, fazer as coisas como querem e fazer evoluir a sua arte e as suas criações sem estarem reféns daquilo que as lógicas comerciais, infelizmente, acabam por trazer a certo tipo de intérpretes e de estilos musicais. Já conheço e sigo a Emmy Curl há muito tempo e ela teve a generosidade de me chamar para dois concertos dela. Tenho a ideia que foi a Selma Uamusse que me falou dela, do tipo “sabes que há uma artista no Norte a fazer coisas também meio celtas e tal”. A Emmy Curl tem coisas que se ligam um pouco àquilo que eu faço, mas depois acaba por ter um resultado final muito diferente, não tão pop, se calhar.

Portanto, tinha aquela canção – “Início” – que escrevi no Douro, portanto no Norte, e ela é transmontana e também tem coisas inspiradas no Douro. Eu tinha feito uns coros que nunca mais acabavam, não sei quantas harmonias, mas era sempre a minha textura vocal e o meu timbre, então comecei a imaginar uma espécie de canto de ninfas e pensei “tenho que chamar a Emmy Curl, porque ela vai fazer uma coisa incrível aqui”. Estive até à última a pensar naquilo, porque também foi das últimas canções a serem gravadas. É assim, a canção ficava bem na mesma sem ela, mas sabendo que podia ter a participação dela ia ficar naturalmente muito melhor. E ela disse logo que sim – gravou tudo na Madeira, mandou-me e ficou brutal, parece mesmo uma chamada-resposta, eu de um lado do rio e ela do outro.

Joana Alegre por Luís S. Tavares
Fotografia: Luís S. Tavares
Depois temos a Elisa Rodrigues.

Também a conheço há vários anos, mas por vias diferentes. Portanto, tive formação de jazz e fiz o curso do Hot Clube e, por causa do mesmo círculo de amigos do jazz, acabámos por nos conhecer. No outro dia, na listening party do meu álbum, ela contou-me uma história que nem me lembro de acontecer [risos]. Depois dela ter lançado o seu primeiro álbum [Heart Mouth Dialogues] com o Júlio Resende, eu fui ver um concerto dela sozinha. Foi uma interação engraçada, porque, pelos vistos, ela achava que eu tinha ido lá porque tinha ouvido dizer mal dela [risos] e, então, quis ir vê-la para contrapor [risos]. Disse-lhe mesmo “tu és fantástica, tens uma voz e um timbre fantástico”. Fiquei fascinada. Embora não me lembre disto, é este o espírito que nos une desde o início. No fundo, acabámos por ir percebendo, ao longo dos anos, que temos uma sensibilidade parecida e que não tínhamos muito jeito para ir aos sítios e fazer aquele networking. Somos mais bichos do mato, eremitas, muito ligadas à natureza e com processos criativos muito intensos. Ou seja, podemos estar um tempo sem escrever nem fazer nada e, de repente, abre-se o caudal e vamos para o meio da natureza escrever e tocar. Portanto, fomos percebendo que tínhamos muita coisa em comum. Além disso, ela não é só uma intérprete, ela é uma excelente cantautora, e também passámos por coisas parecidas ao nível de perceber que não somos só cantoras. Na verdade, sempre soube disso, mas tive uma fase no jazz em que podia ter optado por ser só intérprete de jazz, mas quando lanço o meu primeiro álbum acabo por me afastar desse universo. Mas a ligação continua presente. Depois, quando chegámos a esta fase de vida em que ambas somos mães, artistas independentes e cantautoras, acabámos por nos apoiar muito uma na outra. Há uma partilha muito cúmplice e íntima entre nós.

Chegando à fase final da gravação e produção do “Perfeita”, fiquei até à última à espera do resultado final para perceber se aquilo era uma coisa cantada a uma só voz. Fez-me mais sentido um dueto até porque percebi que podia ter ali um resultado final que mostrasse também este power da sororidade, a duas vozes. A Elisa escreveu o “Corpo ao Manifesto”, que é um tema que está no projeto Calíope e que aborda a afirmação pessoal e de libertação. Há uns versos que fazem referência a algumas coisas que nós partilhámos uma com a outra e eu tenho a certeza que escrevi o “Perfeita” também porque me senti vista e validada nas conversas que tinha com ela. Ou seja, falar com pessoas que nos são próximas, por vezes, despoleta também o processo criativo de uma canção. E, pronto, acabei por convidá-la, ela veio a estúdio com o filho dela [risos] para gravar o tema e, sem dúvida, que a canção ganhou mais força. Há coisas que ganham mais força em serem partilhadas.

E, finalmente, o Mikkel Solnado.

O Mikkel foi fundamental no assumir o meu caminho a solo. Sempre tive uma grande dúvida existencial sobre se me devia dedicar à música de forma pública, bem como assumir uma carreira a solo, por vários fatores. Por exemplo, acho que Portugal está ainda muito atrasado ao nível do que eu quero fazer como cantautora. Na verdade, eu ainda tenho tido sorte, porque correu-me bem as idas à televisão e às rádios e, portanto, fiquei com ligação a alguns meios de comunicação que chegam ao grande público. Mas, de uma maneira geral, há muito bloqueio no acesso de pessoas como eu – cantautores independentes – ao grande público. Sempre tive esta noção e aquela ideia de “se eu fizer isto, tenho que emigrar e nunca mais voltar, ficar em Inglaterra ou nos Estados Unidos e fazer carreira na música lá”. O Mikkel foi aquela pessoa que dizia “tenta aqui em Portugal e despede-te desse trabalho, que parvoíce, estás a trabalhar numa coisa que não tem nada a ver contigo”. Foi aquele amigo que, desde os meus 23 anos, sempre me incentivou.Também acabou por me ensinar como estruturar uma canção pop. Não esquecer que eu vinha do jazz, tinha um lado muito alternativo, portanto fazia canções infindáveis, com letras testamentais, e ele ajudou-me a simplificar isso e trouxe-me também muita clareza interior. O Mikkel é um grande amigo e uma espécie de irmão mais velho da música para mim. Ah, e foi ele que me apresentou o Choro. Portanto, é uma pessoa que conhece também o meu processo, ao ponto de chegar até mim e dizer “conheço um produtor que está na Great Dane que acho que tem unhas para agarrar e fazer aquilo que tu sempre andaste à procura”. Atenção, não desfazendo nunca nem o meu primeiro, nem o meu segundo álbum, que foram processos necessários para chegar aqui, ao LUAS. Ter trabalhado com a Luísa Sobral foi absolutamente definidor, aprendi muito sobre a ligação e a relação entre os instrumentos, sobre a dinâmica de cada canção no que diz respeito à letra e aos ambientes, etc. Por exemplo, isto foi muito importante para saber criar um ambiente orgânico e depois explorá-lo com uma roupagem mais electrónica, como aconteceu com este álbum novo.

Sobre o “Copo Cheio”, é um diálogo de mim para mim, mas, mais uma vez, pensei que esta canção também pedia outra voz. Os processos das canções em dueto foram um pouco parecidos, já reparaste? Ou seja, houve um processo mental e espiritual em que fiquei na dúvida se a canção pedia ou não outra voz. E, portanto, era válido fazê-lo sozinha, mas ganhou muito mais força cantado em dueto com o Mikkel, que é aquele amigo que, no álbum, faz a celebração da mulher e do poder feminino. Ele é possivelmente um dos meus amigos mais feministas, no sentido empático.  Não anda p’raí a defender os direitos das mulheres, mas pratica, o que, no fundo, é muito mais importante do que só dizer. Lembro-me de ter o meu filho recém-nascido e ele dizer “mas vem para estúdio e trá-lo, não faz mal”. Isso chegou a acontecer, cheguei a levar o meu filho recém-nascido para o estúdio para sessões de songwriting. Não é toda a gente que tem este lado empático, de ser um grande amigo e, ao mesmo tempo, ter esta sensibilidade aplicada no dia a dia.

Reparei que reagiste nas redes sociais à polémica relacionada com o lançamento do livro “Identidade e Família”. Um livro que, segundo a economista Maria João Marques, “não é, afinal, sobre temas essenciais à família, nem sequer às mais parecidas com as da tradição. É sobre aborto, eutanásia, ideologia de género e dizer às mulheres que devem ser parideiras”. Gostarias de te manifestar sobre isto?

Olha, a Capicua escreveu um excelente artigo sobre isso no Jornal de Notícias. Eu, na verdade, já fui mais vocal. Talvez por este ser um álbum tão visceral, fui mais para dentro e entrei numa abordagem muito própria. Mas sei que é preciso fazer a luta. Na minha opinião, este livro vem só mostrar que este avanço dos extremismos só torna mais “natural” que certo tipo de facções percam a vergonha na cara de mostrar o que, de facto, são e defendem, e de mostrar que estão organizadas – elas têm entidades que as interligam, como por exemplo o Opus Dei. Não tenho a menor dúvida que algumas destas pessoas que estão relacionadas com este livro façam parte de setores mais extremistas e radicais do Opus Dei. Houve um período em que a maioria das pessoas estava convencida que estávamos muito mais evoluídos do que, na verdade, estamos. O que acontece é que as pessoas acomodam-se e partem do princípio de que “está tudo melhor”. De facto, estamos num caminho de progresso e, no sentido coletivo, pode efetivamente ter melhorado – o aumento dos salários é um exemplo -, mas não podemos tomar nada como garantido. Na verdade, isto só mostra que é preciso dar mais atenção à perspetiva individual de cada um, porque é muito fácil não ser feminista quando não se é mulher e é muito fácil dizer “já não somos racistas” quando não somos de uma etnia ou cor de pele que, naturalmente, acaba por ser mais discriminada em tudo, por exemplo. Temos sido confrontados com o avanço dos extremismos, que vem sempre associado à guerra – há mais mortalidade e violência, e a indústria do armamento é militarista e belicista – e, portanto, isto acaba por estimular esta coisa dos lados extremos, que leva ao ódio, às divisões e à cizânia. Quando tudo isto fica, de repente, às claras, aparecem estes aventesmas que estavam na sombra da vergonha dos tempos mais evoluídos. Tudo isto é um retrocesso.

Os dados mostram que, ao nível dos direitos das mulheres, andámos para trás, no mundo inteiro. Muito possivelmente, o que aconteceu aqui foi que estas pessoas, maioritariamente homens, de uma certa geração, viram com maus olhos o avanço da emancipação das mulheres. Somos claramente o grupo mais qualificado em Portugal, mas que, simultaneamente, não está na grande maioria das posições de chefia e liderança. E, portanto, isto causa mal-estar em quem, de certa forma, nunca precisou de fazer muito para chegar onde chega e é confrontado com estes níveis de maior qualificação académica. Acredito que o voto no CHEGA está também diretamente associado a que este grupo de pessoas achem que podem editar este livro e ser bem acolhido. Sei que também há mulheres a escrever neste livro e sei que também há mulheres que votaram no CHEGA. Mas, quer dizer, a maior vitória do patriarcado é quando as mulheres também são machistas. Um dos principais veículos da manutenção de políticas e de culturas machistas e misóginas é a própria mulher acreditar nisso e encaixar-se no papel de género que lhe pedem para ter. E, por isso, não é, de todo, anormal que apareçam mulheres a escrever neste livro e que mulheres votem no CHEGA. A questão é: há, grosso modo, uma reação ao avanço das mulheres no espaço público na sua maior liberdade e afirmação? Isso também se vê muito na música.

Nunca vivemos um tempo em que houvesse tantas mulheres cantautoras independentes ou não independentes. Há imensas miúdas agora a escrever e a cantar. E nós também vemos essa reação por parte de um setor que ainda é essencialmente dirigido por homens. Portanto, é triste, mas acho que, mais do que nunca, é preciso refletir os tempos em que estamos a viver. Como artista, é o que eu tento fazer, criar coisas que reflitam os tempos em que estamos a viver. Acho que o LUAS antecipou muita coisa. O “Nó” foi lançado no início do ano passado e, quer dizer, a Guerra na Ucrânia continua. Entretanto, abriu a Guerra em Israel e Gaza. Há também este lado da “Desdita” e da “Perfeita” que vêm falar desta ansiedade da mulher. Como artista, estou a fazer o que me compete, mas se isso vai ter a aceitação que seria desejável… Na verdade, todo o retorno que tenho tido tem sido positivo. Queria que chegasse a mais gente, claro que sim. Mas também sei que estou num enquadramento muito específico e que há todo um contexto de patriarcado, muitas vezes liderado por editoras major que também têm muita interferência aqui – por vezes como forças de bloqueio. Portanto, tanto na música, como no resto, vemos que é preciso, de alguma forma, não estar apático; é preciso participar, falar, ocupar o espaço público, seja emitindo a nossa opinião cuidada e informada, seja com aquilo que nós criamos. Olha, como com o trabalho de jornalista. Ou seja, todos os setores e profissões têm uma forma em que podem aplicar a sua combatividade. A liberdade constrói-se, pessoa a pessoa. 

Como é ser mulher, mãe e artista numa sociedade ainda maioritariamente patriarcal?

É muito difícil e, por vezes, sufocante. Quando a mulher é assertiva, convicta e sabe o que quer, é muito fácil haver uma perceção generalizada de que é uma pessoa complicada ou conflituosa, por assim dizer. No meu caso, não diria tanto que acabe por sentir isso, porque sou muito easy going, mas há muitas mulheres de valor, super combatíveis, que têm trabalhos incríveis e não têm forma de chegar ao público. Isto mostra que há um problema de elitização do ofício em Portugal, que não afeta exclusivamente mulheres, atenção. Mas, lá está, afeta essencialmente mulheres que estão sobrecarregadas com outros custos – despesas de ser mãe -, porque a gestão do tempo torna-se logo muito mais difícil, e isso tem um impacto financeiro na vida de uma mulher. Há uma elitização do ofício quase como só quem tem dinheiro é que consegue ser músico e só quem tem algum tipo de rede de apoio é que consegue ir para a estrada e fazer concertos. Isto é um problema grave, porque o meio não está democratizado e está muito refém daquilo a que eu chamo “forças de bloqueio” que são, no fundo, as agências que já estão num mercado muito enraizadas e que já têm canais privilegiados com tudo o que é programação cultural, das autarquias aos festivais. Depois, estas agências ainda têm ligação às editoras major que ditam as tendências e ditam quem é que chega ao grande público. Quer dizer, tem que haver outra permeabilidade, outra capacidade de filtrar mérito, mérito real. Atenção, o público não é culpado desta situação, porque o público não sabe. As pessoas ouvem o que passa na rádio, vêem o que dá na televisão e comprar bilhetes para os concertos ou festivais que são publicitados. Os processos todos que estão por trás disto, na minha opinião, estão muito opacos, enviesados e reféns de lógicas que não são claras a maior parte das vezes. Precisamos de um maior apoio do Estado à cultura. Precisamos de mais recursos à criação, ou seja, que os artistas que não têm tantas posses para irem para estúdio gravar e produzir tenham, por exemplo, acesso a estúdios com o mínimo equipamento e que possam gravar gratuitamente ou a custos mais baixos. É necessário criar um equilíbrio. Uma pessoa não faz concertos se não tiver canções para mostrar. Depois falta também a intervenção do Estado ao nível do circuito de marcação dos concertos. Se tu falares com alguns músicos, vão todos dizer-te que há um problema com o booking em Portugal e não é propriamente por falta de público. Há aquela velha história de “somos um país pequeno”. 

Nesta época do digital, dizer isso é uma treta. Há uma enorme facilidade em chegar às pessoas e, portanto, se há números que vão mostrando, apesar de tudo, que certos artistas são ouvidos, então esses artistas devem conseguir ter palco para dar os seus concertos. E até vou mais longe, há projetos que não têm seguidores, mas que são igualmente válidos e também deveriam ser expostos. É muito importante que haja mais formas de ter palco. Tanto que tu vês agora muitos artistas que estão a começar a fazer produções próprias, a alugar espaços como o Teatro Maria Matos, ou o Trindade, ou o Capitólio, porque não conseguem entrar noutros circuitos que estão completamente dominados por artistas já consagrados. E, atenção, a culpa também não é deles, é o modo de funcionar num meio que está muito sedimentado sobre estas lógicas. Isto para uma mulher, artista independente e mãe, é completamente aterrador e avassalador. Como é que uma pessoa sozinha, mesmo que tenha uma estrutura, “combate” isto tudo – arranjar, furar e encontrar locais no espaço público onde consigamos fazer-nos ouvir. É possível, mas exige um nível de energia absurdo. Nós somos criativos: temos que estar a fazer canções, gravações, produções e a idealizar a forma como nos apresentamos ao público, que é todo um outro processo também muito rico e complexo. E, quer dizer, depois ainda temos de estar a pensar “onde é que há um sítio giro que dê para fazer um concerto à bilheteira e quem terá esta abertura e disponibilidade?”. Há muita coisa que precisa de mudar. No caso das mulheres, na verdade, tive a ideia, e até já a partilhei em conversa com outras artistas do meio – de criarmos uma plataforma que, de algum modo, dispusesse ao público português o leque de variedade de cantautoras portuguesas que temos. Fazer um grande festival de cantautoras portuguesas, por que não?

Isso seria super interessante.

Claro que depois teria que ser uma coisa pensada ao nível do estilo, porque um festival normalmente também reflete uma família de um género musical. Mas eu acho que até dá para fazer um casamento coerente entre o que é mais o indie, o alternativo, o folk, o rap, a música de intervenção – nós agora temos um’A garota não, ela é incrível. Faria todo o sentido criar um festival que tivesse desde um’A garota não a uma Emmy Curl, por exemplo. Com uma Joana Alegre pelo meio [risos] ou uma Elisa Rodrigues. Temos a Rita Onofre, a Inês Marques Lucas, a iolanda, etc. Há cantautoras incríveis a aparecer e que, não sendo todas das mesmas famílias musicais, era possível entrosar fora do que é o grande palco da pop. Porque a pop está de boa saúde, está incrivelmente bem representada por artistas como a Bárbara Tinoco e a Carolina Deslandes, mas há mais para além disso e eu acredito que o público sente, ouve e adere, só é preciso criar essas oportunidades.

Como olhas para o papel da música na promoção da liberdade e na luta contra as estruturas patriarcais e opressivas?

Acho fundamental. Sabes que eu fiz uma tese de mestrado que falava sobre o papel que o festival de jazz, em Cascais, acabou por ter a nível de espaço público português antes do 25 de Abril. Foi um festival que aconteceu em 1972 e que trouxe grandes nomes do jazz a Portugal. Como o regime não percebia nada de cultura, não faziam ideia do que era o jazz naquele contexto histórico. E, portanto, tivemos cá o Miles Davis e o Charlie Parker, num festival onde foi toda a gente, portanto pessoas da esquerda, pessoas da direita, pessoas que não sabiam se eram de esquerda ou de direita e até malta do fado, porque era um tipo de música moderno e irreverente e, de repente, o regime tinha deixado que aquilo acontecesse. Houve momentos extremamente políticos, como quando o Charlie Haden dedicou o “Song for Che” aos movimentos de libertação em África, caíram panfletos contra a Guerra Colonial e toda a gente se manifestou. É como aquelas grandes manifestações em que, de repente, percebes que há mais gente a sentir-se como tu. Este papel de ocupar o espaço público é essencial. A música tem feito isso ao longo dos tempos da democracia, não só em Portugal com o canto de intervenção, mas também nos Estados Unidos com o movimento hippie, por exemplo. Tudo o que foi acontecendo associado à libertação do movimento pelos direitos civis, dos negros na América, etc. Portanto, a música consegue ser o ato mais revolucionário, porque dilui num sentimento tudo o que é argumentário e narrativo. E as pessoas acabam por partilhar os mesmos sentimentos e, consequentemente, acabam por se sentir unidas, porque a música é isso. Por isso é que tu tens hinos de resistência e hinos de países. A música é uma forma de expressão elementar e fundamental e, por isso, é que é tão importante que em Portugal, neste momento, se democratize o acesso dos músicos ao público. Nós estamos, outra vez, a viver um período de nacional-cançonetismo. Só chegamos ao grande público se as editoras e as agências assim o quiserem. Isto não pode acontecer. Tem que haver uma verdade entre o artista e o público, porque senão é uma espécie de fascimo cultural que estamos a viver – as pessoas só consomem o que lhes põem à frente e, portanto, também não sabem o que existe para além disso. E, geralmente, o que existe para além disso é música que fala sobre os problemas da sociedade, sobre a habitação, sobre as mulheres, sobre avanço dos extremismos, etc. Quer dizer, um’A garota não passa, se calhar, assim tanto numa Rádio Comercial, mas devia, porque ela reflete o sentimento de várias gerações. Com a Capicua, a mesma coisa. Há um tema incrível, “Tê Menos 1”, do EU.CLIDES, que fala da habitação. É preciso dar mais palco a este tipo de artistas, de música e, no fundo, de qualquer arte em que aconteça o mesmo.

Gostava que me falasses um pouco sobre o projeto que tens, os Anónimos de Abril.

Fui convidada para o projeto ainda não havia canções. Disse logo que sim, porque me agradou imenso o conceito de base. O Rogério Charraz e o José Fialho abordaram-me sobre esta ideia que tinham de pegar em histórias mais desconhecidas relativamente ao período da resistência, do fascismo ou em torno do próprio 25 de Abril, e transformá-las em canções. Desta forma, faríamos também uma homenagem às pessoas que são os protagonistas destas histórias. Achei a ideia maravilhosa. Sabia que o José Fialho escrevia muito bem e sempre gostei muito do Rogério Charraz como cantautor e, por isso, achei que poderia ficar uma coisa diferente e válida. 

Se estamos a ver ressurgir todos estes extremismos e todas estas ideias romantizadas sobre o que foi o salazarismo e etc é porque houve uma pedagogia que falhou relativamente ao 25 de Abril. Na minha opinião, parte dessa pedagogia falhou porque também se sectarizou a maneira como se falou do 25 de Abril. Ou seja, ficou muito panfletário, muito ligado ao partido comunista ou ao nascimento do PS, muito contado só de uma maneira, muito particularizado, por assim dizer. Estes processos só ganham real maturidade quando extravasam estas coisas e vão mesmo para a sociedade civil de forma transversal. Gostei muito desta ideia porque, lá está, não é panfletário. Neste projecto, conta-se histórias de mulheres. Se reparares, durante muito tempo, falou-se muito pouco do papel da mulher na resistência. Os grandes heróis da resistência e do 25 de Abril são homens, como não tivesse havido histórias de heroísmo de mulheres na clandestinidade. Claro que houve. Situações de assédio brutal, de mulheres que foram torturadas e violadas pelos companheiros de clandestinidade indicados pelo partido. Claro que, durante os 50 anos de democracia, não se quis falar destas questões, porque era complicado, nós ainda estávamos a fazer o caminho da emancipação da mulher. E, portanto, todo este lado de homenagear e celebrar mulheres anónimas, valentes, que sofreram muitíssimo, foi mais um motivo que me atraiu a aceitar este convite. E há também histórias lindíssimas de grande humanismo que, confesso, fizeram-me chorar. 

Este é um projeto que vem dessa génese muito bonita de homens e mulheres; de toda a gente. A humanidade é feita de todas as sombras e luzes e para se perceber o que é, de facto, a construção da liberdade e da democracia, tem que se abraçar todas estas dimensões. Não se pode contar uma história de uma só forma e não se pode apagar coisas da memória, porque não é assim que se constrói a identidade. Nós para sabermos onde queremos chegar, temos que saber quem somos. Não sei se tu sentiste isso na tua formação, mas acho que há períodos que são muito mal lecionados ainda, sobretudo ao nível do imediato pós-25 de Abril-

Ai, sim, sem dúvida.

A malta não percebe muito bem o que foi o PREC, nem aquela coisa toda dentro do MFA, nem as decisões que aconteceram, nem os centros 25 de Abril que eram células que se criaram ainda sem um PS fundado. Seria importante explorar isto, partir desta perspetiva da biografia das pessoas que atravessaram este período histórico. Vou deixar aqui uma sugestão de leitura, que vai parecer suspeita, mas é o que eu estou a ler, que é o último livro do meu pai, chama-se “Memórias Minhas”. É um livro que fala na perspetiva biográfica de uma pessoa que começou no associativismo estudantil, vai para o PC, sai do PC e funda o PS, ou seja, acaba por ter esta perspetiva biográfica da história sem entrarmos, lá está, nas narrativas já muito filtradas que não nos ajudam a perceber quem somos e para onde vamos. Na minha opinião, o grande falhanço da democracia portuguesa, neste momento, que está a fazer avançar esta onda do CHEGA, tem a ver com isto. A história ficou mal contada. Obviamente que houve outras coisas que falharam, mas estou a falar deste lado da pedagogia: a história não foi inteiramente bem contada e as gerações mais novas não percebem por inteiro o que é que custou 60 anos de ditadura, nem o que foi verdadeiramente necessário para sair disso, e para acabar com a Guerra Colonial, e tudo o que nos distanciava de povos que falam a nossa língua e que, na verdade, são nossos irmãos. Na verdade, ainda não são tratados como iguais.

Para terminar, em termos de concertos, o que podemos esperar, tanto de Anónimos de Abril, como de Joana Alegre?

Os Anónimos de Abril têm estado numa pequena digressão durante este mês. Já tocámos em várias cidades e as próximas datas são em Almada (26), em Barcelos (27), em Sintra no dia 1 de maio e, mais tarde, em Tavira no dia 17 de agosto. 
Depois, a partir de meio de maio, vou fazer concertos meus. No dia 26, há novo concerto do espetáculo Um Só Dia, uma homenagem à poesia cantada do meu pai. Vai acontecer na Biblioteca Palácio Galveias e os ilustres convidados serão o Agir, o Ricardo Ribeiro, a Inês Monstro e a Elisa Rodrigues. No dia 31, vou estar na Feira do Livro. No dia 7 de junho, vai acontecer, digamos que, uma experiência embrionária da ideia que eu falei há pouco. É uma apresentação do LUAS, sim, mas vou convidar várias cantautoras portuguesas a vir interpretar temas comigo do meu álbum e temas seus. Vai acontecer no Teatro Municipal Amélia Rey Colaço. No dia 29 de Junho, vou estar no Há Música no Jardim em Coimbra. Mas a grande novidade aqui é dia 7 de julho, que vou estar no Jardins do Marquês, antes da grande Patti Smith. Ainda não estou bem em mim-

Ia mesmo questionar-te sobre isso. Pelo que sei, a Patti Smith é uma das tuas maiores referências musicais.

É mesmo-

Como te sentes com esta oportunidade?

Estou muito feliz e grata. É importante dizer o seguinte: tenho uma equipa, apesar de tudo, com pessoas que, por encontros da vida, quiseram trabalhar e ficar comigo nesta maluqueira que é a vida de artista independente. E, portanto, estou super grata à Catarina Monteiro, que é a minha booker, e foi ela que conseguiu, juntamente com a Música no Coração, marcar esta data. Não só à Catarina, como a todas as pessoas que contribuíram para que isto se concretizasse. E estou super grata também a estas pessoas – à organização do Jardins do Marquês, essencialmente ao Luís Montez – que acham que faz sentido eu tocar no dia da Patti Smith. Normalmente, vejo as coisas a várias dimensões. Para já, provavelmente, vou conhecer a Patti Smith ou, pelo menos, espero conseguir dar-lhe um abraço e agradecer toda a inspiração e todo o caminho de ativismo que tem feito. Depois, ela é mulher, com os seus 70 e tal anos e anda aí a contrariar tudo o que é lógica do mercado. Não é novidade nenhuma que normalizam muito mais os homens dessa idade estarem a dar concertos do que mulheres. Além disso, ela tornou-se na primeira mulher-estrela, a nível internacional, a fazer esta ligação da poesia com o rock. Mas, pronto, estou com uma grande expectativa quanto a este concerto. É diferente apresentar o álbum num auditório fechado ou num registo mais acústico do que num ambiente de festival, que é um palco aberto. Aí vamos poder respirar o verdadeiro potencial disto tudo. Não tive ainda muitas oportunidades de tocar nesse formato, ou seja, de podermos estar ali com o power todo num ambiente de festival. E vamos poder fazer isso. E vou poder abrir para a Patti Smith e mostrar o meu álbum LUAS na maior das dignidades, com esta roupagem final. E espero poder vir a fazer isto mais vezes.

Quem sabe um dia há uma colaboração entre Joana Alegre e Patti Smith.

Ai, isso era do além [risos].

Joana Alegre irá apresentar LUAS ao vivo no festival Jardins do Marquês no dia 7 de julho. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.

Fotografia de destaque: Luís S. Tavares

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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