Em 2020, com o EP INTENÇÃO, Beatriz Bronze – mais conhecida por EVAYA – revelou-se como uma das mais excitantes vozes da música nacional. Com as suas cantigas espalhadas entre um experimentalismo minimalista e uma estrutura pop a lembrar uma Björk ou os primeiros lançamentos de FKA twigs, INTENÇÃO revelou a pretensão artística de Beatriz com EVAYA – fazer música pop com o seu tanto de esquisito, estimulante e dissonante.

Com Abaixo Das Raízes Deste Jardim, o seu primeiro longa-duração editado com o selo da Saliva Diva, EVAYA amplifica a sua raison d’être. Se INTENÇÃO foi a amostra, Abaixo Das Raízes Deste Jardim é o prato completo daquilo que esta “era” (como está agora na moda dizer) de EVAYA é capaz de apresentar: “Pop do underground” esotérica e celestial onde disseca, via múltiplas camadas sonoras criadas com a ajuda de Polivalente, as complexidades e nuances da sua própria existência. É, em suma, um disco maravilhoso, um daqueles que quantas mais vezes se escuta, mais se estima.

Capa Abaixo Das Raízes Deste Jardim
Capa Abaixo Das Raízes Deste Jardim. Fotografia: Carolina Marta

Para descobrir mais sobre o universo do seu “jardim”, a Playback foi ter com Beatriz ao Scratch Built, o estúdio em Lisboa onde, com a ajuda de Polivalente e NICØ, tem preparado os concertos de apresentação do álbum.

Em 2020, disseste à Cabine que a intenção por trás do INTENÇÃO era desvendares realmente a tua “intenção por detrás de cada palavra”; neste teu disco de estreia, na faixa “Ofereço ao sol”, cantas: “Desencontrada / Me encontrei”. De que forma este disco te permitiu ires atrás das tuas intenções para te exprimires nele?

Quando lancei o INTENÇÃO, não tinha nenhuma experiência a tocar ao vivo e também tinha muito pouca experiência de composição. Portanto, acho que com este novo disco consegui definir mais a minha voz. Em termos estéticos, ainda tenho um caminho a percorrer, mas acho que defini melhor a minha voz artística. Para isso, tive de partir de um lugar doloroso e de insegurança – daí estar desencontrada. Eu escrevi todo este disco ao balcão de uma loja de cosmética e estava a sentir-me super triste e perdida, mas, à medida que escrevia cada letra, acho que me encontrei mais um bocadinho.

Estares a escrever o disco durante o teu 9-to-5 ofereceu-te algum escape para aquilo que tinhas de fazer nesse trabalho?

Sem dúvida. Quando estava a escrever, conseguia transportar-me para o mundo da EVAYA, que é um mundo onde podemos fazer o que quisermos e sermos livres para criar.

Começaste a revelar o mundo de Abaixo Das Raízes Deste Jardim com o single “atenção” em abril de 2022, mas só dois anos mais tarde é que consegues pôr o disco cá fora. Dado que tiveste apoio da SPA [Sociedade Portuguesa de Autores] para o conseguires fazer, esse apoio foi essencial para completá-lo?

O disco só começou realmente a ser feito após conseguir o apoio da SPA. Antes disso, estava nesta confusão entre o meu day job e montar o espetáculo para os concertos que dei nessa altura, que mesmo que não tenham sido muitos, deram trabalho. Mas depois de ganhar o apoio da SPA no final de 2022, percebi que tinha mesmo de fazer o disco. Organizei-me. Precisava desse incentivo porque agora tinha um prazo, não é? Portanto, comecei a escrever mais a sério as músicas. Antes do apoio, não estava a conseguir ser disciplinada o suficiente para escrever canções de forma constante e, curiosamente, esse trabalho na loja onde escrevi a maior parte dos sons obrigou-me a ser mais rotineira e disciplinada. Eu trabalhei lá durante um ano e meio e, como não se passava muito, tinha a possibilidade de estar ali e poder escrever, o que não era suposto [risos]. Foi também no computador da loja onde escrevi a proposta para o apoio da SPA. Juro, trabalhar na loja foi a melhor coisa que me podia ter acontecido naquela altura! Eu detestava aquilo, mas deu-me a possibilidade de fazer as canções.

Quando lancei a “atenção” em 2022, estava meio perdida. Não queria lançar singles sem ter o disco feito ou sem saber o que era o disco, mas tinha medo que, se não lançasse nada, tudo desaparecesse. Que deixassem de me marcar concertos, que os ouvintes deixassem de ouvir. Porque quando lancei o INTENÇÃO, foi tudo uma surpresa boa porque algumas pessoas começaram a conhecer o meu trabalho e comecei a ser agenciada. Mas já se tinham passado quase dois anos desde o EP e as circunstâncias externas não me deixaram fazer as coisas mais rapidamente. Eu andava super ansiosa com não lançar nada e como tinha a “atenção” pronta, lancei. Depois, quando lancei a “dança da mudança” em 2023, já sabia qual o caminho a seguir para o disco. Eu estava com medo que o disco não resultasse, mas realmente vejo-o como uma coisa completa. Há uma história ali a ser contada e as músicas, apesar de diferentes umas das outras, nota-se que pertencem ao mesmo universo, que é o meu jardim. Mas já estou com o bichinho de fazer coisas novas. Estou muito inquieta – e espero estar sempre! – e quero tentar perceber para onde quero ir a seguir. Já tenho umas luzes.

Quando lanças a “atenção” em 2022, o disco estava a ser feito por ti ao lado do Tom Maciel e do Polivalente. Entretanto, o Tom abandona o país e ficas a fazer o disco com o Polivalente. Como decorre este processo de construção do disco?

O Tom foi para Berlim e deixou de tocar comigo. Entretanto, fiquei a fazer alguns concertos e gostei da sensação, mas percebi que, apesar de gostar de produzir e de compor sozinha, quando chega a hora de estar em cima de um palco, eu gosto mesmo é de me sentir livre e dedicar-me à minha voz. Não sou boa a cantar e a tocar coisas ao mesmo tempo [risos]. Portanto, comecei a fazer concertos com o Polivalente, e como vivemos juntos, a partir do momento em que ganhei o apoio da SPA, começamos a compor o disco em conjunto. Estas são as minhas canções, mas ele produziu-as comigo. A “contemplação”, por exemplo, é uma música de 2020 que surgiu logo quando nos conhecemos. Cheguei a casa e ele estava a tocar uma progressão harmónica que adorei e pedi-lhe logo para ser para o meu disco. Sabia lá eu que disco ia ser! [Risos]

[Risos] Tecnicamente, a “contemplação” foi a primeira canção que surgiu para este disco então!

Sim [risos]. Ficou como introdução. Mas a partir daí começamos a produzir música juntos. A “dança da mudança” também surge a partir de um riff lindo de guitarra que ele tocou, inspirado por uma música que eu tocava na flauta. Fizemos essa em conjunto também. O meu universo existe muito a partir da minha colaboração com ele. Essas duas canções partiram dele logo ao início, mas mesmo com as outras… Eu estava ali concentrada a escrever o meu mundinho e chegava ao pé dele para lhe mostrar o que tinha feito e continuávamos a partir dali. Por exemplo, a “sementes” era para ser metade apenas de como ficou no fim e ser apenas um interlúdio. A parte final da canção surgiu a partir do input dele. Ele viu que ela estava a ir para outro lugar e se não fosse ele a ver isso, também não tinha descoberto o título deste disco, porque eu acabo a “sementes” a dizer “Abaixo das raízes deste jardim”.

Essa secção final da “sementes” é bué shoegazey… muito diferente de tudo o que está no disco. E acho curioso que a canção se chame “sementes” e feche o disco – é como se estivesses a deixar sementes para aquilo que vais fazer no futuro.

Sim, porque é muito divertido ir para o lugar onde essa canção chegou. Não tenho medo de abraçar outros géneros de música. Acho que ainda fiz poucas músicas para saber realmente onde me enquadro.

Fotografia: Carolina Marta
As canções deste Abaixo Das Raízes Deste Jardim estão repletas de muitas mais texturas face ao universo mais minimalista do INTENÇÃO. Esta expansão do universo sonoro de EVAYA deveu-se a tentares expressar tudo aquilo que sentiste durante estes dois últimos anos?

Sim. Tinha mesmo muito para partilhar – e ainda tenho. Às vezes penso que foi um bocado maluco porque eu lancei o INTENÇÃO logo quando acabei as músicas. Não planeei nada. Não é que este disco tenha sido muito bem planeado, mas sinto que gostava de terminar um disco e depois planear toda a comunicação. Quando acabei o EP, senti logo que havia imensas coisas que queria melhorar, mas tive de as deixar maturar em mim, nomeadamente como cantava. Também queria explorar mais o português e tentar que as coisas soassem um bocadinho mais acessíveis. O EP ficou fixe, mas senti que faltava algo… não quero dizer de pop, mas a nível de canções. Nesse sentido, tentei criar mais canções para este disco. E não é que haja muitas canções neste disco com propriamente um refrão ou estrutura repetitiva, mas algumas já têm! No EP a “doce linguagem” tinha isso de alguma forma, mas as outras eram mais experimentais. Neste álbum, apesar de achar que ainda é experimental, sinto que já se encontra mais definido em algumas coisas.

Foi anunciado recentemente que o disco vai ser editado pela Saliva Diva. Como nasceu essa relação?

O Manuel Molarinho mandou-me mensagem a perguntar se tinha editora. Eu nunca tive uma editora e na realidade, nunca procurei uma. A verdade é essa.

Só tens distribuidora, que é a Altafonte Portugal.

Sim, e agência de booking, que é a HAUS. Eu expliquei ao Molarinho que não tinha e ele perguntou-me se eu ia fazer uma edição física. Ora, eu precisava de fazer CDs para fechar o apoio da SPA e eu nem dinheiro tinha para mandar fazer os discos agora [risos]. Isto foi um milagre! Ao início, fiquei confusa porque nunca imaginei que a minha música fizesse sentido na Saliva Diva, mas depois… Isto é pop do underground, não é? Portanto, se calhar, até fazia. Na Saliva Diva, eles só editam um disco se for aprovado por unanimidade pelos membros de coordenação da editora. No domingo de Páscoa, o Molarinho disse-me que tinha sido aprovado e que iam editar. Fiquei super feliz! Foi o meu ovinho de Páscoa [risos].

Como vês a ligação da tua música com a natureza e com a espiritualidade? Parecem-me ser componentes importantes deste teu “jardim”.

O jardim, apesar de ser óbvio que é uma coisa interna, relacionada com o que se passa dentro do corpo e da alma, também é um sítio que representa o local que é o meu “lugar”, que é a casa dos meus pais, no Poceirão. É no campo e é como se fosse um jardim. É tudo muito bonito. A última shoot que fiz para o disco e para o single foi lá porque é ali onde me consigo encontrar mais facilmente. É o sítio para onde vou quando preciso só de existir. Eu não sou nada uma pessoa religiosa, mas tenho muita fé e acredito que o universo conspirou a meu favor para eu realizar os meus sonhos porque eu estou a realizá-los [risos]. Eu já cantava desde pequenina, mas houve ali uma fase em que fiquei mesmo insegura e parei de o fazer. Quando voltei a cantar, com 25 anos, já tinha idade, supostamente, para ter um trabalho e uma vida estável. Foi um bocado estranho, para mim, ganhar coragem para fazer isso aos 25 anos, mas sinto que fazer música deu-me um propósito. Antes disso, estava a viver uma vida um bocado à toa. Tive uma fase em que me senti bué triste e fui à procura de respostas dentro de mim e foi um bocado através desse processo que nasceu a EVAYA. É um bocado cringe dizer isto, mas através da meditação percebi que tinha de tentar realizar os meus sonhos. Tinha de ir cantar, aprender a produzir e fazer as minhas músicas.

Também foi nessa altura, ali entre os 20 e os 23, que comecei a sair mais e a ouvir mais música, e isso também ajudou nesse processo. Sinto que foi uma cena espiritual, de certa forma. Sentia que algo estava mal, sabes? A partir daí, também comecei a prestar mais atenção às minhas emoções e a das pessoas que me rodeiam. A espiritualidade vem desse lugar. Claro que aconteceram umas cenas estranhas aqui para o meio. Fui à bruxa e tal [risos]. Agora não tenho vergonha de o admitir porque vi um texto da Marina Herlop onde ela admitiu que foi à bruxa antes de fazer o Pripyat. A seguir a isso, aconteceu assim uma série de sinais esotéricos e decidi que ia fazer EVAYA e que ia dar certo. Ainda não tenho uma carreira na música, porque ainda há muito para solidificar e conquistar, mas sei que o que quero fazer é fazer música. Não sei se irei conseguir algum dia viver da música, mas desde que não pare de fazer música, já estou a cumprir o meu sonho. Nesse sentido, isto é uma cena que vem de um lugar realmente espiritual – de fé, emoções e sinais.

Quando te vi ao vivo no NOS Alive em 2022, tocaste algumas canções que fazem parte do alinhamento deste disco. Como é que estas canções evoluíram na sua transição para o teu espetáculo ao vivo?

Nesse concerto do Alive, tocamos a “contemplação” e a “dança da mudança”, além da “atenção”, que já tinha saído, e elas mudaram desde aí. Eu fui descobrindo muito o meu som a partir da necessidade de montar os concertos. É daí que surge o bichinho para perceber para onde quero ir com estas canções. Agora, nesse processo, aconteceu uma série de situações… Nós mudamos de drum machines três vezes, por exemplo, e essas trocas influenciaram como íamos trabalhando as coisas. Nós nunca nos repetimos com as canções em palco e fomos sempre mudando um bocado os arranjos. Portanto, quando fomos gravar, ficou o arranjo que estávamos a tocar ao vivo. Agora ao vivo as coisas também estão mais fáceis. Antes, nós estávamos a arriscar muito, porque tocávamos as coisas sem que elas estivessem sincronizadas. Fazíamos tudo de ouvido e o Polivalente tinha de disparar as backing tracks no sítio certo da canção, por exemplo, porque não tínhamos computador. O NICØ ficou chocado quando percebeu que fazíamos assim porque dava uma ansiedade gigante! Agora, o concerto só corre mal se eu ficar doente, se o computador crashar [risos] ou se o Polivalente se esquecer da música, porque ainda há uma coisa ou outra que ele tem de tocar ao vivo. Há definitivamente uma maior maturidade na forma como fazemos as coisas e isso dá-me mais confiança. Já não morro de medo para dar um concerto [risos].

EVAYA inicia uma série de apresentações de Abaixo Das Raízes Deste Jardim com um concerto no B.Leza, em Lisboa, no próximo dia 18 de abril. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui. A abertura do concerto fica encarregue ao duo Proxy Fae.

Fotografia de destaque: Carolina Marta

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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