Não sei quanto a vocês, mas, para mim, conduzir com o sol a pôr-se é cada vez mais a altura perfeita para descomprimir e refletir sobre tudo ao meu redor. É um momento só meu e, inevitavelmente, faço-me sempre acompanhar por uma banda sonora escolhida a dedo, de forma a viver a experiência na sua totalidade.
Em outubro de 2022, os equinōcio, dupla formada por Beatriz Capote e Diogo Santos, lançaram o seu EP de estreia Metamorfose, um trabalho que, para mim, está profundamente relacionado com estas deambulações crepusculares. Jazz. Folk. Electrónica. R&B. Hip-Hop. Uma autêntica metamorfose de estilos musicais. Os efeitos colaterais? Uma paz invade-nos; entranha-se, sem pedir licença, em cada poro da pele. De uma beleza incontornável.
Para sabermos mais sobre o percurso dos equinōcio e para compreendermos melhor as intenções por trás deste curta-duração, a Playback sentou-se para um café, na cidade de Aveiro, com ambos os membros.
Quero começar mesmo pelo princípio. De onde surgiu o gosto pela música? Quais são as vossas primeiras memórias musicais?
[Beatriz Capote] No meu caso, a minha família já tinha algumas raízes na música. A minha mãe é professora de música, a minha tia – Jacinta – seguiu uma carreira profissional no jazz, e o meu pai… Os meus pais conheceram-se numa banda, portanto já andavam nessas vidas e, inevitavelmente, eu e os meus irmãos começámos a ter muito contacto com a música e a tocar também instrumentos. Só que acabei por levar mais a sério, enquanto que os meus irmãos foram para outras atividades. Fiz o curso secundário, fui para a universidade e, depois, começaram a surgir as ideias de “ok, já estudámos, é tudo muito bonito, mas vamos pôr isto em prática – vamos criar projetos e vamos para os palcos”.
[Diogo Santos] Da minha parte, é o oposto. A minha família não tem qualquer background na música, ninguém seguiu profissão na música. No entanto, o meu bisavô era regente da aldeia e era a única pessoa que sabia escrever – aprendeu sozinho. Escrevia as cartas das pessoas todas e, como tinha um bocadinho uma veia criativa, escrevia também alguns poemas. Do tempo mais antigo, é a única coisa que eu sei. O meu pai dava uns toques na guitarra, porque ele tocava, de vez em quando, em igrejas mas, de resto, mais ninguém. Sobre as minhas primeiras memórias musicais… É a coisa mais aleatória de sempre. Como a minha família era da Guarda – eu nasci na Guarda, mas fui para Leiria com dois anos -, íamos lá, pelo menos uma vez por mês. Era uma viagem muito longa: duas horas e meia de carro. Talvez não seja assim tanto, mas para mim era. E eu lembro-me que o meu único escape, a única coisa em que eu me focava, era a música da rádio. Recordo-me bastante que ouvia mesmo muita música, até dar por mim a conhecer quase todas as músicas que, na altura, passavam na rádio. Entretanto, iniciei a escola no quinto e sexto ano, onde tive contacto com a música através da flauta de bisel – como todos -, só que eu apaixonei-me mesmo por aquilo; foi um grande impacto. Não comecei logo no quinto, mas comecei no sexto ano no Conservatório.
E quando foi a primeira vez que pegaram num instrumento? No teu caso, Beatriz, suponho que tenha sido em casa, influenciada pela tua família.
[Beatriz] Sim, até que, numa determinada altura, os netos estavam todos a aprender a tocar piano. A minha avó tinha em casa dela um piano de cauda que tinha investido, na altura, para a minha mãe e a minha tia aprenderem a tocar. Começou a vir uma professora a casa dela que dava meia-hora de aula a cada um dos netos. Portanto, sorrateiramente, a música foi entrando nas nossas vidas, como outra coisa qualquer – no início, estávamos só a brincar. O piano acabou por ser o primeiro instrumento em que peguei.
E tu, Diogo, só quando foste estudar música?
[Diogo] Não, em casa também. O meu pai tinha uma guitarra, então foi o primeiro instrumento com o qual eu tive contacto, mas não sei tocar absolutamente nada, não tenho jeito nenhum [risos].
[Beatriz] Apesar de eu começar com o piano, aqui o pianista é o Diogo [risos], sendo que eu acabei por seguir o violino.
E ambos têm formação.
[Beatriz] Sim, eu estudei violino no Conservatório de Música de Aveiro Calouste Gulbenkian.
[Diogo] E eu estudei piano no Orfeão de Leiria.
Portanto, uma cantora e violinista de Aveiro e um pianista e compositor da Guarda. Como se conheceram?
[Diogo] Tem a ver com o resto da nossa formação académica, que se deu na Universidade de Aveiro. Ambos fizemos a nossa licenciatura em instrumento e o nosso mestrado em formação musical. Portanto, fizemos aqui um caminho bastante parecido.
[Beatriz] Exato, foi aí que nos cruzámos.
E porque é que decidiram formar os equinōcio? Como é que perceberam que tinham de construir um projeto juntos?
[Beatriz] O Diogo passou-me aqui o micro [risos], mas a verdade é que o convite surgiu por parte dele. Portanto, eu estava num… Foi com o projeto da Helena Caspurro, que era professora e foi nossa orientadora. Também foi tua-
[Diogo] Foi minha co-orientadora.
[Beatriz] Portanto, foi uma pessoa que teve também algum impacto na nossa formação e ela estava a fazer um projeto, que envolvia muitos alunos, e o Diogo foi vê-lo. Nós já nos conhecíamos, mas por acaso aconteceu ele dizer “oh Bea, sim senhora, estás a fazer isso muito bem, queres fazer um projeto?” [risos] – aquela típica conversa [risos] – e eu “claro que sim, vamos a isso”. Estávamos os dois com esse espírito de querer fazer coisas, já tínhamos percebido que tínhamos gostos parecidos e que fugíamos do resto das pessoas que estavam mais focadas na música clássica. Então, foi sem hesitar.
E qual a história por trás do nome equinōcio?
[Diogo] O nosso primeiro nome seria yūgen, que vem da estética japonesa e que define a atração pelo misterioso e pela beleza da arte, que não é tão… Das coisas mais obscuras e das coisas que não estão à flor-da-pele. Só que, entretanto, reparámos que já havia inúmeros grupos com esse nome, então pensámos “ok, não vamos por aí”. Uma vez que somos um duo – um rapaz e uma rapariga, duas pessoas bastante diferentes -, acabámos por adotar um nome que representasse essa dualidade. equinōcio representa tanto o outono, como a primavera – duas estações complementares e muito diferentes, tal como nós: tocamos instrumentos diferentes e temos coisas diferentes para oferecer. equinōcio remete-nos também um bocadinho para a astrologia e para o esoterismo.
[Beatriz] E porque, provavelmente, ao contrário de yūgen, acho que há mesmo muito poucos grupos com o nome equinōcio-
[Diogo] Não há mesmo nenhum.
[Beatriz] Portanto, foi também uma questão de querermos procurar a nível de marketing, ou seja, pensar se quando as pessoas pesquisassem por nós, se iriam encontrar mais vinte grupos com o mesmo nome [risos].
Beatriz, tu és também vocalista e teclista dos Perpétua e, de vez em quando, trabalhas em banda com o Diogo Sarabando (aka himalion) e a Jacinta. Como consegues conciliar tudo?
[Beatriz] Às vezes é difícil, confesso, porque, de repente, são tantas frentes… Que nós gostávamos mais de nos focar numa coisa, mas a outra está sempre a puxar. Chega quase a ser reagir no momento, ou seja, pensar “o que é que está a acontecer agora?”. Por exemplo, falaste dos Perpétua: os Perpétua estiveram, este último ano, um pouco fora dos holofotes, porque estamos em preparação de um novo álbum, mas a verdade é que houve um timing em que estivemos literalmente parados, porque as nossas vidas também começaram a puxar outras coisas e outros trabalho. No entanto, nunca houve uma rutura. Mas houve essa questão de tentar gerir o trabalho de todos e não é fácil – é um facto. Mas tentamos sempre manter-nos cá em cima, porque é isso que nós gostamos de fazer.
E tu, Diogo, com o projeto Philip que criaste há três anos, como tens feito essa gestão?
[Diogo] Eu nunca dei muito valor ao dar prioridade apenas a um projeto. Enquanto músicos jovens, acho que temos muito para oferecer e, mais do que aquilo que me fascina, aquilo que me repele um pouco é ver músicos que, a partir de uma certa altura, focam-se só em dar aulas ou focam-se só na música clássica ou focam-se só na música pop. Eu posso dizer que faço de tudo um pouco. Tenho a minha experiência em música clássica, dou aulas no Conservatório, já lancei alguns livros e gosto de manter sempre a minha atividade nessa área – fazer sempre coisas diferentes. O projeto Philip é muito conciliável com tudo, porque é um projeto com o qual eu trabalho com uma empresa do Reino Unido e eles dizem-me especificamente aquilo que querem. Portanto, um dia da semana chega para gravar, masterizar e lançar as músicas – que eles pedem ou que eu recomendo. Os equinōcio, neste momento, é aquele projeto onde eu me foco mais, quer a nível de música para público, quer a nível de concertos. Isto também porque andamos a criar coisas novas.
Seguimos então para o EP. Quero começar pelo título: Metamorfose. Também há alguma história por trás?
[Beatriz] Eu acho que, acima de tudo, vem da fase que ambas as nossas vidas estavam a passar. Portanto, como dissemos, fizemos a formação em música clássica e, de repente, surgiu a oportunidade de criar música enquanto equinōcio. Isso, para nós, estava a fazer muito sentido, porque podíamos criar música para nós, música que nós gostávamos sem ter de ser num contexto específico e sem ter que responder a necessidades de outras pessoas. E, portanto, isso revelou-se só por si uma metamorfose. Depois, começámos a pensar mais num todo, ou seja, como é que podíamos construir o EP de forma a representar essa ideia. Aliás, acontece que até músicas, como a “Dentro de Mim”, só ela já representa essa ideia de metamorfose: do dentro para fora, do processo de criação do artista, porque nós, no fundo, criámos as músicas, são originais, ou seja, passámos por esse processo e quisemos pôr na própria música essa ideia. A palavra em si é muito forte também, mas fez-nos muito sentido utilizá-la, principalmente na fase em que estávamos. Foi o EP de estreia, que acabou por representar a fase das nossas vidas enquanto músicos.
O EP é, de facto, uma metamorfose de géneros musicais, com passagens pelo jazz, pop, folk, electrónica, R&B e hip-hop. O que vos levou a esta fusão?
[Diogo] Há pouco perguntaste-me se tinha algo mais a acrescentar sobre o título do EP, mas eu estava à espera de uma pergunta deste género [risos], que responde também ao porquê de «metamorfose». Mas a tua pergunta agora foi sobre o porquê de tantos estilos musicais. Imagina, nós, no início, não tendo… Quer dizer, falando por mim, eu não tinha mais nenhum projeto na música mainstream, de palco, que fosse para um público mais abrangente. Portanto, no momento em que nos juntámos, já tínhamos alguns temas e já tínhamos alguma visão daquilo que queríamos fazer, mas não queríamos sedimentar aquilo que era o estilo do grupo ou a linguagem do grupo. Isso, para nós, não era importante. Então, decidimos dar aquilo que nós tínhamos, que era alguns standards de jazz, algumas ideias de música R&B, folk, tradicional e tudo isso, e com o lançamento futuro do primeiro álbum, nós olhámos para aquilo que nós fizemos, olhámos para todas as faixas e percebemos “ok, quais é que tiveram mais sucesso? qual é o caminho que queremos tomar agora?” – e a decisão está tomada e a metamorfose vai-se dar agora mesmo. Portanto, «metamorfose» na perspetiva assim mais micro já está feita, que é o início, o nosso primeiro EP tem um princípio, meio e fim, tal como a metamorfose. Mas a metamorfose propriamente dita vai-se dar com o lançamento do nosso primeiro LP, que terá uma estética um pouco mais sedimentada – bastante rico e com linguagens diferentes.
Em relação ao processo criativo, como é que nasceram as canções? Começaram primeiro com as letras, com as melodias? Um escrevia e o outro compunha? Ou não houve papéis definidos?
[Beatriz] De forma geral, as bases da harmonia começaram pelo Diogo. Digo de forma geral porque houve uma música do EP que foi feita inteiramente por mim – a “It Happened To Be The Time”. Mas, por exemplo, fui eu que escrevi a letra da “Dentro de Mim”, enquanto a harmonia e a melodia, ou seja, a produção harmónica, no fundo, partiu do Diogo. Sem papéis inteiramente definidos, nunca limitando nenhum de nós, mas acabou por desenrolar-se assim.
[Diogo] Sim, é um misto.
[Beatriz] O Diogo também criou canções e melodias, portanto acaba por não haver uma regra-
[Diogo] Sim. Depois, por exemplo, a “Those Eyes” era um standard que eu já tinha… Um tema jazz que eu já tinha feito… Mas tem letra da Bea. A “Oarendê”-
[Beatriz] Que é uma colaboração-
[Diogo] A harmonia é minha, e a letra e a melodia são da Bea. Penso que a “Moreno” é que é toda minha – letra, harmonia e melodia.
É um bom timing para falarmos tema a tema. Começando com a “Dentro de Mim”, a abertura do EP. Temos piano, voz, coros e violino, temos um momento clímax a marcar o fecho: é uma faixa que determina logo uma certa aura do curta-duração.
[Beatriz] Exato, tanto como disseste, faz todo o sentido que seja a abertura-
E também foi o primeiro single de avanço do EP.
[Beatriz] O primeiro single, sim, foi a nossa primeira música, basicamente-
E a primeira que escreveram também?
[Diogo] Não foi a primeira que escrevemos. A primeira penso que terá sido a “It Happened To Be The Time”. A Bea já tinha-
[Beatriz] No bolso, sim. Exato, exato.
[Diogo] Já tinha sido escrita há algum tempo, a “Those Eyes” também, mas a “Dentro de Mim” penso que foi a primeira [que criámos] enquanto grupo, ou seja, composição mútua.
O que faz ainda mais sentido ter sido a primeira a ser lançada.
[Diogo] Sim, é muito simbólica-
[Beatriz] Exato. Como já dissemos, fui eu que comecei por escrever a letra. Por acaso, é interessante que eu… A minha primeira abordagem foi relacionada com uma relação – “Com que então já vais assim / Não tardará ficarei só dentro de mim”. Portanto, quando é o fecho de uma relação – “Tanta coisa por dizer / Tantos versos por escrever”. Mas é engraçado que o Diogo depois pegou nestas palavras; nestas frases e já abordou a questão do ponto de vista do artista, de termos tanta coisa cá dentro que queremos criar. Então, de repente, tinha duas coisas ali dentro. Há a parte “Dia-a-dia com pressão / Frechas abrem-me o pulmão”, que é mais pessoal, no sentido em que eu tenho uma doença pulmonar e estava a relacioná-la com questões psicológicas e com as consequências. Mas sem fugir à questão do estar fechado cá dentro; tenso, para poder abrir no final e haver essa margem para progressão – cá dentro e fora. Portanto, eu parti dessas ideias, depois o Diogo deu outra interpretação, e é um facto, pode ter imensas interpretações. Para além disso, eu adorei a parte musical do Diogo. Mal eu ouvi aquele 5/4, eu disse “uau, esta música está incrível, isto vai sair daqui…” [risos]. E foi muito fixe poder pôr o violino também, porque, no fundo, estava a mostrar essa valência. Por exemplo, ao contrário dos Perpétua, eu nunca participei com violino e, de repente, lançamos esta primeira música enquanto equinōcio em que eu pego no violino, mostro o violino e isso foi importante para mim, porque é realmente uma parte da minha vida. Foi impactante.
Na “Those Eyes”, já temos um acordeão a preencher as ondas da canção.
[Diogo] A “Those Eyes” fala um bocadinho sobre amor platónico, tal como a “Moreno” – são paralelas. A “Those Eyes” tem letra da Bea, e apesar da letra da Bea fazer um paralelo muito grande com a minha vida em pontos específicos, inicialmente era sobre amor platónico e tudo isso-
[Beatriz] Deixa-me só acrescentar uma coisa, Diogo. É que o Diogo já tinha chamado à música “Those Eyes”-
[Diogo] Sim, isso sim.
[Beatriz] Então, eu parti da ideia those eyes e fiz o resto da letra.
[Diogo] Mas basicamente é isso, fala sobre amor platónico, nada de muito complexo.
Falem-me agora sobre a “Imprudência”. Uma canção toda ela inesperada e arrebatadora, a soar ansiosa e q.b. experimental. Porque decidiram incluir um instrumental?
[Diogo] Isso foi já a pensar na estrutura de concerto. Nós damos valor… Ou seja, nós como temos background de formação clássica, damos valor a um concerto que tenha momentos apenas instrumentais. Ora uma música inteira, ora uma parte de uma música, nós só queremos mostrar aquilo que conseguimos fazer sozinhos. E, portanto, nós temos feito isso, tanto com a “Imprudência”, como com outros covers que possamos escolher para fazer durante o concerto. Mas a “Imprudência” também tem a ver com a minha linguagem como compositor clássico, virado para o jazz um pouco mais experimental, e achámos que precisávamos de uma coisa mais spicy, que fugisse um pouco de tudo o que já tínhamos feito para o EP. Faz ali um paralelo também com a “Those Eyes”, porque ambas têm acordeão e achamos que acrescenta algo interessante.
Segue-se o grande destaque desta Metamorfose, “Oarendê”. Com a participação das redoma (dupla formada por Carolina Viana e Joana Rodrigues), é o tema em que decidiram também meter o hip-hop ao barulho.
[Diogo] Essa colaboração surgiu da minha parte. Eu já conhecia tanto a Carolina como a Joana, já tínhamos estado juntos no Porto. Até que, um dia, eu estava a ir para o ginásio e elas lançam o EP de estreia [parte], e a INÊS APENAS, que é minha amiga, disse “Diogo, tens que ouvir este EP já” [risos] e eu assim o fiz. Ouvi o EP todo, assim de seguida, e adorei completamente as texturas, a voz da Carolina, a maneira como está tudo produzido, a maneira como elas iam buscar o jazz também – alguns samples de trompete, de bateria, de pedaços de músicas – e achámos que eram mesmo muito interessantes e que tínhamos algo em comum que podíamos explorar. Mas, sobretudo, as letras da Carolina: um pouco de música de intervenção, um pouco de música que aborda temas difíceis e que têm que ser falados. Eu pensei “uau, se elas aceitarem, vamos ficar mesmo muito felizes” e assim aconteceu. O resto da criação da música, aí sim, foi uma música muito de harmonia entre todos, foi uma composição onde eu colaborei com algumas melodias e alguma harmonia, mas a melodia e a letra é da Bea, e a Carolina participou também com a letra, portanto a parte do rap. Essa é uma verdadeira composição coletiva, podemos dizer.
[Beatriz] E a Carolina adaptou-se muito bem. No fundo, a temática veio da nossa parte e depois a Carolina criou o texto dela a partir da nossa ideia. Foi muito fixe.
E, por último, a fechar o disco: “Moreno” e “It Happened To Be The Time” onde vocês adicionam instrumentos de sopro.
[Beatriz] A “Moreno” é literalmente um gajo moreno [risos]. É essa a ideia. Havia uma melodia super gira, que vem logo a seguir à letra, que o Diogo criou, que eu fiquei “uau, muito fixe”, porque aquilo está com compassos irregulares – está incrível – e então com a voz eu faço uníssono. Depois surgiu então a ideia da flauta, que até foi com base no Robert Glasper e Erykah Badu.
[Diogo] Ai, pois foi-
[Beatriz] Porque a flauta não soa limpinha, ela tem ali um efeito e foi a Isabel Azevedo que tocou, que era uma colega do Diogo, com quem também andei lá no DeCA. Mais uma vez, foi muito giro chamar outra pessoa para participar-
[Diogo] Mas é verdade, as maiores inspirações para essa música foram a “Afro Blue” do Robert Glasper com a Erykah Badu, e também Mário Laginha e o álbum [Fabula] que ele tem com a Maria João. Acho que fazemos um pequeno paralelo; uma pequena aproximação ao que eles fazem juntos e achei engraçado.
[Beatriz] Sim, sim. E, por fim, a “It Happened To Be The Time”, como disse, foi totalmente feita por mim, e como o Diogo disse, já estava composta há muito tempo. Eu tive a oportunidade de fazer Erasmus em Itália e fiz algumas disciplinas em jazz, então foi a primeira vez que eu pude estudar composição de jazz. Essa canção surgiu no contexto dessa disciplina. Na altura, nem sequer tinha letra, eu criei só a parte da melodia-
Isso foi em que altura?
[Beatriz] 2018/2019, acho – um pouco antes de começarmos o projeto, qualquer coisa assim. Mas ela tinha ficado só ali, academicamente fechada num caderno [risos] e, de repente, eu pensei “vou tirar aqui isto, se calhar até se vai adaptar ao estilo dos equinōcio” e, aí sim, criei uma letra e já olhei para ela de forma a que eu pudesse cantá-la. E assim foi, ficou uma balada de jazz, porque era esse o propósito inicial, mas criei a letra… O contexto foi um bocado para ir de encontro às típicas baladas de jazz que falam sempre de alguma coisa amorosa – ou de um desamor, ou de uma paixão. E eu fui buscar um bocadinho essa ideia, ou seja, não foi por nenhuma situação mais profunda, mas foi mais para dar letra a esta melodia que me dizia bastante. Chamámos o Francisco Sá, neste caso até foi do meu conhecimento, que toca trompete incrivelmente bem, também estudou jazz e é uma pessoa que eu já conheço desde a infância – acho que fazia muito sentido trazê-lo também para este EP; fez um solo incrível.
Este EP é composto por temas cantados em português e em inglês. Saiu naturalmente?
[Beatriz] Acho que, mais uma vez, representa a nossa variedade. Portanto, a música não é só numa língua, a música é universal e pode ser feita em todas as línguas. Então nós, simplesmente, não nos limitámos, de todo, a dizer “este projeto é só em português ou só em inglês”. Não, é no que for. E ficou assim. Podia ser também em espanhol [risos], podia ser outra coisa. Para nós, não há limites nesse sentido.
Quanto tempo levaram a fazer este trabalho?
[Diogo] Isso é uma pergunta muito interessante [risos]. Ou seja, nós começámos… O nosso primeiro single, “Dentro de Mim”… O videoclipe foi gravado em abril e lançámos o single em maio. E, portanto, depois, nós lançámos o nosso EP em-
Em outubro.
[Diogo] Sim, pois foi. Com o lançamento da “Oarendê” como single-
[Beatriz] E a “Moreno” já tinha saído também-
[Diogo] Portanto, podemos contar um ano. Nós começámos a fazer reuniões já com algum tempo, mas o trabalho específico para o álbum – as primeiras gravações – começámos em dezembro de 2021.
Que artistas vos inspiraram especificamente no caminho deste disco?
[Diogo] Em primeiro lugar, e como já mencionámos, Robert Glasper, que era assim a nossa paixão em comum. Depois Snarky Puppy, Chet Baker, Ella Fitzgerald–
[Beatriz] Também há outro que é o Tigran Hamasyan, que é pianista-
[Diogo] Sim, ele também. E, depois, artistas portugueses, também temos bastantes influências. Talvez um pouco o Rui Veloso–
[Beatriz] Salvador Sobral–
[Diogo] Sim, também influenciou muito, mais ali na parte vocal da Bea – podemos encontrar assim algumas semelhanças.
Venceram a categoria de “Melhor Performance Tradicional” nos IPMA 2023. Como é que foi a experiência? De que maneira é que este tipo de destaque vos tem ajudado?
[Beatriz] Foi bastante arrebatador. De repente, estamos nos Estados Unidos, ambos nunca tínhamos estado do outro lado do Atlântico, então só isso foi uma experiência incrível. E, depois, receber um prémio numa sala super bonita, cheia de gente, com o peso que tem, ficámos mesmo “uau, trabalhámos para isto, caraças” [risos]-
[Diogo] É verdade [risos]. A coisa mais importante dos IPMA, para mim, é o facto de apoiarem muitos artistas diferentes, ou seja, ora músicos que trabalham com editoras, ora músicos independentes. E acho que podemos ver pelos nomeados e pelos vencedores que [os IPMA] dão valor à música que sai um pouco do mainstream e que vai para além das grandes rádios. Isso eu aprecio mesmo muito. Acho mesmo muito importante e, tal como nós dissemos no palco nos Estados Unidos, eles dão valor aos músicos jovens. Claro que todos os músicos são importantes, todas as faixas etárias são importantes, mas acho que os músicos novos portugueses, a nossa geração, nós temos… Se calhar não temos bem noção, mas da noção que temos, da perspetiva que temos, esta época é a mais interessante. Há cada vez mais artistas a fazer crossovers diferentes, estamos a viver uma época mesmo fascinante. Estes prémios também nos possibilitaram contacto com muitos artistas diferentes, de várias categorias diferentes, ou seja, pessoas que fazem videoclipes, pessoas que fazem música rock, pop. Todo esse tipo de artistas que tivemos contacto, tiveram mesmo muita influência em nós – e no que aí vem [risos].
Uma abordagem mais específica: Beatriz, qual é a tua perspetiva sobre a falta de representatividade feminina no jazz, inclusive em Portugal?
[Beatriz] Ai, isso é mesmo específico [risos]. Isso é uma temática que tem vindo a ser muito falada ultimamente – a questão dos direitos – e, no caso do jazz, especificamente, porque historicamente quase todos os músicos de jazz eram homens. Isso, se calhar, também vinha um bocado do papel da mulher na sociedade. E, muitas vezes, o que surgia era: havia uma mulher, de vez em quando, que era uma cantora, uma diva, ali no meio. E, por falar nisso também, muitas vezes os cantores e as cantoras nem sempre são considerados músicos, porque não têm a formação que um músico tem; estão só ali a cantar umas coisinhas. E isso também é uma coisa que, ainda hoje, existe – esse preconceito. E sente-se muito, principalmente no jazz, porque há a questão da improvisação e tudo mais. O cantor improvisar não é a mesma coisa que um músico improvisar, porque há horas de treino por trás. Mas sim, essa conversa ainda acontece bastante e tem que acontecer, na verdade, porque… No jazz e não só. Mas no jazz vê-se muito… Mas, tal como o Diogo disse, estamos numa geração em que há muitas fusões e tudo mais… E eu acho igualmente que estamos numa geração onde estamos a começar a perder esses preconceitos. Por exemplo, sempre que eu vejo uma baterista no jazz, fico “uau, força aí”, porque normalmente é um instrumento, se calhar, mais associado a um homem.
Era precisamente aí que eu queria chegar. Uma vez entrevistei a Beatriz Nunes para o Gerador sobre uma investigação que ela fez acerca da presença da mulher no jazz português, onde ela concluiu que “há uma genderização da prática que associa o instrumento ao masculino e a voz ao feminino”. Tu, enquanto cantora e instrumentista, qual é a tua perceção?
[Beatriz] Eu confesso que vejo isso como uma vantagem, porque consigo defender-me. Ou seja, sou uma cantora, mas que sabe o que é ser músico e sabe o que é, de repente, termos que mudar a tonalidade, porque a cantora não consegue cantar mais agudo. E, portanto, sinto que isso serve para me defender, nesse aspeto. Por exemplo, estou a cantar, mas, de repente, percebem que eu também toco um instrumento, então, se calhar, já me olham de outra forma, porque perceberam que houve ali muitas horas de trabalho ou existe noção da teoria. E isso é um facto. Mas muitas vezes há cantoras… Por exemplo, agora posso falar da minha tia que se assume enquanto cantora, mas que tem muito trabalho atrás também – percebe perfeitamente tudo o que está a acontecer e, se calhar, muito mais do que muitos músicos por aí. Muitas vezes, há projetos em que eu estou em que eu me limito só a tocar e a cantora é outra pessoa e aí já observo as coisas de outra forma. Portanto, eu gosto um bocado de ser este camaleão, porque me permite ter várias perspetivas. Mas é continuar a lutar nesse sentido e que hajam mais Beatriz(es) Nunes – porque Beatriz(es) há muitas [risos] – que falem sobre isso, que ponhamos isso em papel e lá fora, para toda a gente perceber também o que se passa e dar valor, acima de tudo, porque essa questão de géneros já… Como dizia a Marisa Liz nos IPMA ao Diogo, “essa história já é velha, vamos mas é andar para a frente” – e é mesmo isso.
Diogo, estás à vontade para te posicionares sobre isto também.
[Diogo] Olha, a minha resposta é muito curta [risos]. Olhando para trás, para todos os projetos que eu fiz, sempre tive a tendência para trabalhar com mulheres; sempre gostei muito da energia, especialmente da Bea – é uma grande criadora, instrumentista. A mulher tem muito para oferecer e, portanto, sempre foi fácil, para mim, trabalhar com mulheres e se eu puder contribuir para a igualdade entre géneros, que seja e que seja com um grupo com um homem e uma mulher, que acho que é engraçado.
Já mencionaram que estão a preparar o primeiro álbum de originais e, segundo um dos vossos press release, irá contar com várias colaborações. O que podem adiantar sobre isto?
[Beatriz] Ui, não sei [risos].
[Diogo] Acho que podemos dizer que já temos doze músicas preparadas, nem todas elas são colaborações, mas uma grande parte delas são, com artistas variados. O próximo tema a ser lançado vai ser com uma artista pop, que é a INÊS APENAS. Não sabemos quando é que vai sair, mas já estamos a preparar para que tudo corra bem. E, portanto, vamos ter, pelo menos, quatro colaborações diferentes, mas ainda estamos à espera da resposta de outros artistas também, se querem colaborar connosco ou não. Talvez para os álbuns deles, talvez para o nosso, isso ainda não sabemos. Mas, neste momento, queremos criar suspense [risos].
Nos últimos três meses, passaram por vários palcos – ESMAE, Quartel das Artes (Oliveira do Bairro), Teatro Ribeiro Conceição (Lamego), Festival A Porta (Leiria), Festival Rádio Faneca (Ílhavo). Como têm sido recebidos pelo público?
[Beatriz] O feedback tem sido muito positivo, felizmente. As pessoas gostam sempre de ver ou, pelo menos, quem se dirige até nós – dizem que ficam emocionadas ou que estamos a fazer um bom trabalho, quase de “vocês deviam estar em mais sítios” [risos]. Isso é muito bom, perceber que as pessoas gostam mesmo de nos ouvir, gostam de nós como grupo, o que nos dá mais vontade de continuar a fazer mais coisas e a crescer. Pelo menos falo por mim, uma das coisas que gosto mais é ir a palco e tocar música. Claro que todo o processo de gravar e criar também é super giro, mas ir a palco é quase o culminar de tudo. E estar a fazer realmente música para as pessoas.
[Diogo] Já tivemos comentários simpáticos, as pessoas dizem que a nossa música é fresca, que é diferente daquilo que se faz no panorama da música mais mainstream e ficamos muito felizes. Nós fazemos concertos, lá está, como já disse, não só com canções, mas também com música instrumental – eu e a acordeonista, eu e a Bea, todos juntos. Portanto, tentamos sempre fazer um concerto que seja o mais rico possível.
Há mais datas marcadas de concertos?
[Beatriz] De concertos, neste momento, não há nenhuma, porque também agora estamos em processo, estamos mais na procura de criar novas coisas para depois podermos divulgá-las – fazemos a partir daí.
[Diogo] Talvez tenhamos um concerto este ano, mas sem poder dizer onde será, nem quando, porque ainda não temos confirmação.