Catarina Miranda já fez e viu de tudo ao longo dos seus mais de 15 anos de carreira na música portuguesa. Para os mais atentos, o nome da artista vila-realense é associado ao projeto de emmy curl, persona artística no qual tem veiculado grande partes das suas melancólicas e sonhadoras expressões musicais. 

Contudo, Pastoral, o seu quarto e mais recente longa-duração, editado no início de abril pela Cuca Monga, marca um desvio em múltiplas vertentes da obra anterior de emmy curl. É o seu primeiro disco que conta com um co-produtor – Hugo Correia, reconhecido multi-instrumentalista nascido em Trás-os-Montes e ligado a projetos como Fadomorse ou O Lendário Homem do Trigo –, e é um disco onde a melancolia delicada que anteriormente marcou a obra da artista é substituída por tambores e cantares que transformam o universo de emmy curl em algo mais pop e dançável. É um álbum dedicado a Vila Real, aos rituais pagãos e, em suma, ao milagre de se estar vivo; que procura fechar espaços entre a tecnologia e a natureza. É a própria que o assume. Numa outra entrevista, assume que Pastoral é um disco de “solar punk” – movimento artístico que visa um futuro onde a tecnologia e a natureza podem coexistir em harmonia.

Para os menos atentos, aqui fica um breve resumo do percurso de Catarina Miranda para além do universo de emmy curl: terminou em 2º no Festival da Canção em 2018 ao interpretar “Para Sorrir Eu Não Preciso De Nada”, canção da autoria de Júlio Resende; deu voz ao refrão de “Samuel Mira”, canção de Valete, um dos primeiros admiradores da sua música no MySpace; integrou os duos Deep:Her (com Gijoe), Cherry Sparks (com Dama Bete) e, mais recentemente, MIRADOURA, com o namorado e pai do seu filho, Andreas Sidenius. As restantes colaborações são demasiadas para enumerar, mas a longevidade da carreira e criatividade constante de emmy curl são exemplos da perseverança necessária para se construir um percurso musical fora dos circuitos. Se há algo que Catarina Miranda sempre fez, foi as coisas à sua maneira. 

A atender-nos da Madeira, onde vive atualmente, Catarina Miranda – ou melhor, emmy curl – conversou com a Playback não só sobre o universo de Pastoral e como se distingue da sua restante obra, mas também sobre tudo o que aprendeu ao longo destes 15 anos de carreira na música em Portugal.

Capa Pastoral
Capa Pastoral
No ØPorto, que é um disco do qual gosto muito, apresentaste um álbum muito ligado à melancolia da Cidade Invicta. Não é que essa melancolia não se escute em Pastoral, mas sinto que este é um álbum muito mais ligado a celebrar a vida. Como achas que este teu novo disco se enquadra no universo de emmy curl?

[Risos] É muito engraçado dizeres isso porque uma amiga minha, com quem já não falava há algum tempo, disse-me que não conseguia ouvir a minha música porque era muito triste. Quando ela me disse isso, pensei: “Realmente, ela tem razão!” [risos]. Isso foi uma das razões. A outra razão tem a ver com a música tradicional portuguesa, os cantares, esse lado folclórico, ser muito celebrativa e positiva. O fado e outras vertentes da música portuguesa, mas particularmente o fado, tomou conta da nossa identidade e tornou-a melancólica. Por exemplo, em rituais pagãos, não se cantava músicas melancólicas. Cantavam-se quase gritos de guerra porque essas pessoas estavam vivas. Este disco é a minha forma de celebrar esses rituais e, como disseste, a vida.

Tens falado da influência desses rituais pagãos no Pastoral em algumas entrevistas. Os BANDUA são outro projeto português que trabalha esse lado mais espiritual e vejo como a música deles os ajuda a reconectarem-se com esse lado. Fazer canções ajuda-te a reconectar com o teu lado espiritual?

Sim. Para mim, as canções e a arte são uma expansão do artista. Tanto a música, como a arte visual, como a joalharia ou a roupa que faço, e mesmo as coisas em 3D, tudo isso são extensões de mim. E é nesse momento onde tu encontras aquilo que eu chamo de éter, que é a conexão com o teu ser superior (higher self) e quando te encontras em sintonia com a consciência coletiva e transpões isso para a Terra. Funcionas como uma antena, basicamente. A gente capta e a gente faz. Por isso é que não acredito em autorias nem em pertença. Para eu fazer a arte que consigo fazer, muitos outros artistas tiveram de a fazer antes, percebes? Eu nunca estou sozinha – eu sou só uma pequena perspetiva daquilo que já foi feito. Agora se calhar, a seguir (ou pelo menos espero eu) alguém vai pegar naquilo que fiz e continuar esse processo. Por exemplo, sobre a parte tradicional do Pastoral, sabes que Portugal é um dos países com mais recolha histórica de música do mundo?

Muito por causa do arquivo do Michel Giacometti

Sim, e mais recentemente, o trabalho d’A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. O processo nunca acaba. Vamos ter uma pesquisa infinita de coisas que podemos coletar para o futuro. Agora, podemos depois falar da moda que está a acontecer hoje com artistas como, por exemplo, a ROSALÍA e outros músicos que estão a surgir, que pegaram nas identidades do seu país e transformaram a sua música. E isto é um processo de rebeldia contra a uniformização da música. Muita da música que ouvimos vem dos Estados Unidos e é super repetitiva. Se ouvires uma Rádio Comercial, a música soa toda muito igual. E há artistas que se estão a fartar dessa repetição e estão a tentar acrescentar ou fazer algo de novo com as suas culturas e sons. Os BANDUA são um desses artistas, mas tens outros anos que fazem isto há anos como os Retimbrar ou as Sopa de Pedra. Se formos mais atrás, a Né Ladeiras também o fez, a Brigada Victor Jara

Muito do trabalho do João Aguardela também girou em torno dessa rebelião que falas.

Sim. Megafone, não é?

Sim! E d’A Naifa.

Exato! Adoro.

Como decorreu o teu processo de investigação em relação aos sons folclóricos presentes no Pastoral? Sei que voltaste para Vila Real durante a pandemia. Não sei se isso ajudou na investigação.

Eu voltei para Vila Real porque tive de voltar. O meu filho nasceu no dia 19 de março [de 2020], que foi o dia em que foi declarado o estado de emergência, e nasceu prematuro – portanto, tivemos de ficar uns meses por ali. Mas o Pastoral ainda começa a surgir antes disso. A “Mirandum”, que fiz antes dele nascer, fi-la logo quando cheguei a Vila Real. Tinha acabado de cancelar a tour que tinha planeada para o ØPorto e tive de regressar para casa dos meus pais porque não tinha para onde ir. Acabei a escrever a “Mirandum” ali a olhar para as paisagens durante esse período. Só depois disso tudo acontecer é que surgiu o trabalho de pesquisa. Antes do meu filho nascer, tive a ideia de que queria fazer um disco como fiz o Origins, que é um EP que fiz em 2012, que dediquei a Vila Real na altura. Mas era só um EP. Não foi um trabalho feito com pesquisa sobre aquilo que tinha sido feito no aspeto de trabalhar sons de folclore ou tradicionais. Para o Pastoral, decidi fazer algo mais sério em torno desse registo. Eu estive um ano inteiro a ouvir Giacometti nos fones enquanto fazia cenas e a Catarina Chitas tornou-se uma das minhas principais inspirações a nível lírico, por exemplo. Eu quis mesmo que aquilo entrasse no meu subconsciente, estás a ver? A não ser a “Senhora do Almortão”, que é uma música tradicional e eu fiz uma reinterpretação, o resto surgiu dessa absorvência. E o vinil também inclui uma versão da “Macelada”, que é outra canção tradicional das Beiras.

Os BANDUA têm uma versão da “Macelada”!

É engraçado porque eu convidei o Edgar Valente para cantar comigo a minha versão da “Macelada” sem me aperceber que eles já tinham feito uma versão. Foi ele que me disse! [Risos]

Em todos os discos da emmy curl, sempre foste muito tu a controlar tudo. Porém, neste Pastoral, trabalhaste com o Hugo Correia. Que diferenças sentiste entre o processo que deu origem ao Pastoral face aos outros discos de emmy curl?

Bem, para começar, este foi o único disco que fiz até hoje com um oceano de distância com a pessoa com quem estava a trabalhar [risos]. O Hugo vive em Ílhavo e estou a viver na Madeira. O processo funcionou muito à base de eu lhe enviar as minhas produções, com as faixas, e depois ele enviava-me as dele. Fomos reinterpretando o que cada um fazia até chegarmos a um consenso. Foi um processo muito interessante e foi a primeira vez que me senti excitada por receber novas abordagens à minha música, sabes? O Hugo é um geniozinho. A forma como ele trouxe as orquestras para a minha música foi muito bonito. Ele fez um trabalho muito bom com isso e com as percussões, e eu acabei por trabalhar mais o lado da eletrónica e da estrutura da canção. Por exemplo, a “Mirandum” transformou-se para aí cinco vezes. Ela inicialmente era super grande. Antes de entrar a minha voz, havia um minuto inteiro de instrumentação. Acabamos por mudar tudo isso e andar às voltas porque sentimos que tínhamos ali um potencial single forte. Hoje em dia, é difícil fazer música para apreciar. Eu não tenho Spotify, mal ouço plataformas de streaming, e praticamente só ouço vinil. E por exemplo, no outro dia estava a ouvir um vinil dos Supertramp e havia músicas que tinham três minutos de introdução antes de chegares ao verso A e quando isso acontece, ainda te apaixonas mais pela música porque a letra é bonita e a canção soa mais bonita. Hoje não. Parece que as pessoas só ouvem 0.2 segundos de cada tema, percebes? E para uma artista como eu, que não é conhecida nem a nível nacional nem a nível internacional, se tens a hipótese de dar a conhecer um single forte como é a “Mirandum”, tenho de o fazer porque as pessoas depois podem perder o interesse. Agora, já estou a pensar em fazer um disco de landscapes, estás a ver? [Risos] Só mesmo com coros e assim.

Mas a “Mirandum” é uma forma forte de abrir o disco. Pelo menos, eu acho. Introduz-nos bem ao universo do Pastoral.

Pois, é isso. Eu não queria colocar a “Mirandum” a abrir. Foi o meu namorado que sugeriu. Ele disse-me que se não colocasse esta música no início, o pessoal não ia ouvir o disco. Fiquei a pensar no que ele me disse durante dias. Porque se eu ouvisse um disco que começasse com uma canção como a “Mirandum”, eu dizia “calma”, estás a ver? Agora nunca saberemos como seria este disco se não começasse pela “Mirandum”, mas acho que ele tinha razão por causa disso que estás a dizer. É um tema que te põe no lugar para ouvir o disco.

Em conversa com o Davide Pinheiro, disseste que este disco era “da natureza”. Sentes que a relação do ser humano com a natureza é algo que precisa de ser repensada?

Sim, porque estamos a entrar num momento da nossa história em que estamos convencidos que somos uma entidade paralela à natureza. A crença de que nós somos um vírus surge desse pensamento. De que a gente não é da natureza, mas sim uma coisa que chegou à Terra para a destruir. Mas na verdade, nós fazemos parte da natureza e é preciso entender isso, percebes? Quando tu achas que a natureza é algo completamente externo a ti e que um animal é completamente diferente de ti, estás a ir contra a tua própria natureza… não tens empatia nenhuma. Os cães têm emoções, as vacas têm emoções [risos]. O ser humano tem de perceber que somos todos parte da mesma coisa, mas que todos comunicamos de maneira diferentes. Por exemplo, os pássaros são seres incríveis. Podem voar e não são obrigados a pagar rendas de casa [risos]. Aquela coisa de que o ser humano é muito evoluído… nós andamos a bombardear-nos a nós próprios! Portanto, não acredito nessa teoria de que sejamos superiores. A vida é um milagre, sabes? Acho que o pessoal se esquece disso e toma a vida como garantida. O que nos separa mesmo dos animais é a tecnologia e aquilo que conseguimos compor e construir devido ao nosso intelecto. Mas não sei até que ponto, por exemplo, a tecnologia nos permite ter tanta informação que a gente se esquece de onde está. Vou tocar num ponto sensível. Vejo muito pessoal preocupado com a Palestina e com Israel e às vezes assusta-me a empatia que se tem com quem está do outro lado do mundo, enquanto que se se perguntar a essas pessoas quem vive ao pé delas não sabem dizer o nome. É inconsistente.

Fotografia: Divulgação
Fotografia: Divulgação
Isso que estás a falar tem a ver com o quanto estamos expostos, por exemplo, ao genocídio que está a acontecer na Palestina através das redes sociais. Há um sentimento de impotência gigante que se sente perante aquilo que está a acontecer e não é só lá. Em Lisboa, por exemplo, vês a Câmara Municipal de Lisboa a ignorar as pessoas sem-abrigo quando lhes podia perfeitamente dar uma casa.

Sim, sim. Eu acho que a “Poetas à Solta”, que é inspirada pelo Agostinho da Silva, acaba por falar sobre isso. Se leres Agostinho da Silva ou se assistires às Conversas Vadias que estão espalhadas pelo Youtube, ele fala sobre muito do que estamos a falar. Ele tinha um pensamento muito à frente do resto das pessoas. O pensamento dele mudou muito a minha vida porque ele tinha uma abordagem super naturalista relativamente ao ser humano. A ideia que ele tinha da educação, por exemplo, chocava os entrevistadores. Ele era super contra existir um professor na sala de aula a mandar os alunos fazerem coisas. E nessa letra da “Poetas à Solta”, essa impotência da qual falo, eu observo-a muito na geração mais nova. Consigo perceber a diferença quando falo com malta mais velha e com malta na casa dos vintes ou prestes a entrar nos vintes. O pessoal que está nos vintes está com uma depressão relacionada com a impotência e é uma coisa triste de se ver. Há pequenas ações que podes fazer que combatem isso, mas o pessoal está preso num ciclo vicioso de impotência. E isto está tudo relacionado, na verdade, com a falta de fé. A religião católica em Portugal, mas não só, está a perder importância, o que é fixe. É uma religião super tóxica. Mas as pessoas estão a deixar a religião para acreditar no nada, para acreditar numa busca de likes e seguidores. É uma nova religião com base na aprovação e funciona como uma droga.

Mas essa quebra da fé não terá a ver com o fim do sonho neoliberal? Das pessoas perceberem que a ideia de ser possível ter um trabalho, comprar uma casa, etc., ser impossível hoje.

Mas isso era o sonho do capitalismo! 

Mas a era do capitalismo já acabou! [Risos]

E ainda bem. Tem de acabar porque todos os ciclos acabam e isto está assim há muitos anos. Agora, por exemplo, eu aluguei uma casa enorme aqui na Madeira e criei um coletivo artístico. Eu já vivo há muitos anos em coletivos semelhantes e acho que vai ser cada vez mais comum as pessoas viverem assim. E sabes uma cena fixe disto? É que o pessoal é obrigado a relacionar-se com os outros – e isso é das coisas mais difíceis da vida humana. Devia ser tão simples, mas ainda é muito difícil. Se eu pudesse decidir, estás a ver aqueles casarões enormes que estão aí a cair, vazios? Era por aquilo com malta jovem, todos a viver uns com os outros, a formarem coletivos, e a renovar o espaço. São casas incríveis e já não há famílias numerosas para se meter lá dentro. Aliás, o homem que nos alugou esta casa disse-nos, “ou é para artistas ou escritórios”. E estas casas têm, além de espaço, personalidade, sabes? Não é só uma caixa quadrada na cidade. Esta casa nem é o melhor exemplo, mas mesmo assim está cheia de pormenores que lhe dão uma personalidade própria.

Como vês a evolução do teu som desde os tempos da sonoridade despida de Ether, o teu primeiro EP? É que o Pastoral é um disco muito rico em texturas.

Se ouvires o Ether, ele tem bastantes coisas lá, bastantes camadas. Acho que a diferença é que agora mandei alguém misturar. E isso é uma cena que gostava de dizer aos artistas que estão a começar: é fixe saber misturar, é fixe experimentar isso, mas a minha visão em termos de fazer música mudou depois de a dar a alguém para misturar. Tens de encontrar alguém que seja realmente compatível e perceba a tua visão. Não podes dar esse trabalho a qualquer pessoa, mas essa pessoa vai limpar muita coisa que tu estás habituada a ouvir e que não é suposto estar ali. Acho que isso foi a principal diferença relativamente aos outros discos. Isso e, claro, a experiência. Não quero julgar as músicas que fazia no início [risos], mas há coisas que acho que faço melhor do que fazia antes.

No passado, já tinhas editado um EP pela Optimus Discos [Birds Among The Lines], mas o Pastoral é a primeira vez que estás a editar um longa-duração com a ajuda de uma editora, a Cuca Monga. Como surgiu a editora lisboeta na equação deste álbum?

Surgiu porque eu disse um dia que era fixe ter uma editora. Não estou a brincar. Nunca quis uma editora até ao dia que pensei isso, que foi o dia anterior a eles me ligarem.

Manifestaste! [Risos]

Eu acredito na manifestação porque sempre funcionou para mim, mas às vezes ainda me surpreende quando as coisas se manifestam demasiado rápido. Mas achei que fazia sentido ter editora desta vez, primeiro, porque tinha o Hugo Correia no meu barco, mas também porque tenho o meu filho, sabes? Já não sou só eu. Para se ser músico independente, tens de ter mesmo muita coragem porque tanto pode dar como não dar. Por causa disso, já fiz trabalhos além da música. Já servi em bares enquanto fazia discos, já fui dona de lojas online, já fiz roupa. Eu desenrasquei-me enquanto pude para conseguir fazer música. Mas desta vez pensei: se calhar não tenho tempo para outro trabalho, e se é para ter uma editora tem de ser mesmo agora. Achei que eles pudessem ajudar com isso.

Como está a funcionar este Pastoral ao vivo? Continuas a fazer o teu live show à base de loops e de guitarra?

Em palco, é backing tracks e eu manipulo-os. Já viste este disco ao vivo?

Ainda não consegui.

É à base de backing tracks e, quando tenho oportunidade, gosto muito de ter atrás de mim projeções com a minha arte digital. De vez em quando, toco umas músicas à guitarra também. Cada concerto meu é um concerto único porque depende do sítio. Se for em festival, não vou tocar muitas canções à guitarra, por exemplo. Vou tocar mais coisas à base de beats e fazer um set mais dançável do que algo propriamente intimista. Mas é engraçado perguntares sobre isso porque é algo em que tenho estado a pensar. Para o ano, quando me mudar para Portugal Continental, que é algo que espero que aconteça, conto ter uma nova tour do Pastoral com um formato de trio ou quarteto. Era fixe que isso acontecesse.

Já tocaste com banda no passado, não já?

Várias vezes. Tive uma banda na altura do Origins e tive outra na altura do Navia, que era o Mário Barreiros na bateria, o Eurico Amorim no teclado, o João André no contrabaixo e duas backing vocalists. Era assim uma grande banda na altura [risos]. Mas eu não faço música para passar na Rádio Comercial ou na RFM, percebes? Então, torna-se difícil fazer uma tour com banda porque é difícil criar essa disponibilidade. Mas outras bandas virão, espero.

Como disseste, estás atualmente a viver na Madeira. Como vês a vida cultural e a cena musical na ilha?

A Madeira é muito complexa porque, por ser um local com um público mais velho, cultivou nos músicos a arte de tocar músicas conhecidas. Ou seja, o circuito é muito à base de jazz para tocar em hotéis, de cover bands. É música para entretenimento mais do que originais. Quando chegamos aqui há dois anos, começamos a fazer umas jam sessions de improvisação todas as terças-feiras cá em casa e chegamos a ter cerca de 200 pessoas, tivemos de ir à procura de um sítio fora de casa para as fazer. Encontramos esse sítio, e durante dois anos, todas as terças-feiras, organizamos essas jams – acho que durante esse período, para aí só três sessões foram canceladas – e no final já estávamos com cerca de 400 pessoas a irem às sessões. Era uma loucura! E essas 400 pessoas eram digital nomads, pessoas locais, turistas, malta mais nova e mais velha. Muita gente se encontrava às terças-feiras. Entretanto, o sítio que encontramos decidiu que só ia abrir de manhã e ficamos sem local para fazermos essas jams. Em paralelo, isto fez com que vários projetos e bandas começassem por causa dessas jams. Existiu um boom de criatividade porque muita gente começou a interessar-se por fazer música original. Tanto que MIRADOURA, o projeto que estou a fazer com o meu namorado, nasceu de improvisações e colaborações com artistas locais durante essas jams, e para o ano vamos lançar um álbum. Além disso, temos tido projetos locais a virem cá a casa gravar ao estúdio que montamos, que é um dos únicos sítios da ilha, além do Estúdio 21, que permite que isso aconteça. O processo é muito lento ainda. O que quero dizer com isto tudo? Se fores um jovem com mentalidade criativa a viver numa aldeia ou numa cidade distantes dos grandes centros, organizares uma coisa tão simples quanto uma jam session… qualquer músico pode aparecer e tocar, percebes? Tu tens imensos locais em Portugal que não têm muito acesso a cultura ou, pelo menos, a coisas mais independentes e do underground. Falo pela minha própria cidade, Vila Real. Tens o teatro da cidade, que tem muito boa programação, e tens o Rock Nordeste. Depois, durante o ano, não tem grande coisa a acontecer no circuito underground. Não tens jams ou concertos espontâneos que acontecem. Uma vez, um amigo do meu pai perguntou aos estudantes de Vila Real onde iam sair à noite e a resposta dele era “vamos para os arraiais”. Não que tenha alguma coisa contra a música pimba, mas podia haver outro tipo de festas culturais para dar cultura ao povo. O povo quer isso, percebes? Era possível ter esses locais a aliar tanto música pimba como jazz para esse público ser exposto a outras maneiras de ver o mundo.

Como vês a relação do projeto MIRADOURA com o universo de emmy curl?

Tudo funciona em relação, não é? Aquilo que me inspira em MIRADOURA vai ser utilizado em emmy curl e aquilo que me inspira em emmy curl vai ser utilizado em MIRADOURA. Mas, em MIRADOURA, o processo de escrever as músicas é diferente. Em emmy curl, o trabalho que faço é muito solitário e geralmente parte da minha própria produção. Em MIRADOURA, o trabalho começa mais a partir das letras. Eu e o Andreas somos pais e enquanto pais, sentimos a necessidade de desabafar. Às vezes fazemos uma música enquanto o nosso filho está a tomar banho, ou se tivermos cinco minutos livres, corremos a ir compor qualquer coisa para desabafar. Tirando a “Feel the Same”, que é uma música mais sexy, para groovar, o resto das músicas é tudo um desabafo. É a falar dos problemas de se ser humano, basicamente. MIRADOURA é mesmo outra cena, outro estilo comparativamente com emmy curl.

Como alguém que ao longo da carreira já fez um pouco de tudo na música em Portugal, desde colaborar com artistas como o Valete [em “Samuel Mira”], com a Dama Bete [no duo Cherry Sparks] ou, mais recentemente, com a Joana Alegre, entre muitas outras colaborações, até teres participado no Festival da Canção como intérprete ou teres feito videoclipes para outros artistas, que principais mudanças notas no ecossistema musical português desde que começaste a colocar a tua música no MySpace até aos dias de hoje?

Existe uma grande diferença entre ser homem artista e mulher artista em Portugal. Portugal está 50 anos atrasado nisto. Quando estive na Dinamarca e falava com amigos meus sobre quantos festivais eu via sem um nome femininos, eles passavam-se. E durante a minha vida artística toda… é curioso que, agora que estou mais velha, parece que finalmente já não sou vista como uma ameaça, especialmente desde que fui mãe. Parece que finalmente os homens da indústria e que mandam nisto tudo – porque, infelizmente, são quase todos homens – já não me veem como uma miúda – e não vou dizer isto noutros termos. Mas ainda assisto a um desprezo entre a visão que os homens, particularmente os portugueses, têm sobre as mulheres. Porque o que é visto como girly em Portugal, é visto como lame, e o que é masculino, é fixe. Eu vi a acontecer à frente dos meus olhos homens a dizerem que me iam dar uma oportunidade porque eu tinha mais maturidade. O que é verdade! Mas são muitos os anos que uma miúda passa para ter essa confirmação. Posso dar-te um exemplo. Encheu-me de alegria tocar no Rock Nordeste, que é o festival da minha terra. Mas há 15 anos que eu estou na música e nunca tinha sido convidada. No início achava que era por ser um festival de rock e eu não era – nem sou [risos] – do rock. Mas depois comecei a ver artistas do meu género ou coisas minimamente parecidas a tocarem lá e comecei a questionar: o que é que eu não tenho? E este ano quando toquei lá, foi das coisas mais bonitas, porque senti que foi um bocado a minha própria cidade a dar-me uma confirmação de mérito. Aconteceu algo semelhante com a Marta Ren recentemente, que só agora, passados 20 anos dela estar na música, a Senhora da Hora lhe deu uma medalha de mérito para a cultura. É preciso anos para isso acontecer, estás a ver? Acho que a nossa geração já percebe um bocadinho esse lapso e as coisas vão mudando aos bocadinhos, só que é preciso mais apoio.

Em 2010, dizias que a emmy curl era a “personalidade exteriorizada” da Catarina Miranda. Ainda é algo que sentes hoje ou achas que ocorreu uma aproximação entre ambas com o passar do tempo?

Isto é mais uma pergunta para outra crise existencial! [Risos] Mas eu estou farta de tentar perceber quem sou, sabes? Eu sou milhares de coisas. Chamo-me Catarina Miranda e é o meu nome porque respeito a decisão dos meus pais, mas se eu pudesse ser Carla um dia, Joana amanhã, Ana depois de amanhã, seria! Às vezes apetece-me ser várias pessoas e explorar outras maneiras de ser. Consigo adaptar-me a qualquer tipo de personalidade. Eu tenho Mercúrio em Balança, ou seja, tudo aquilo que eu sou tenta ser o oposto do outro. Se fores uma pessoa introvertida, eu vou ser uma pessoa extrovertida. Eu acho que a emmy curl é uma forma de eu me apresentar e eu consigo tanto fazer o estilo de emmy curl como o estilo de MIRADOURA, que é outro, como consigo cantar jazz, que é outro. Por exemplo, quando eu fui ao Festival da Canção e descobri que não ia ter nenhum tipo de contribuição na composição da canção, percebi que eu era uma intérprete. E o que é uma intérprete? Sou eu, o meu nome original. Decidi não me apresentar como emmy curl porque é um universo que criei, é um campo visual, imagético e audiovisual que resulta naquilo que as pessoas conhecem. Portanto, respondendo à tua pergunta, acho que a emmy curl ainda é algo exterior a mim e gosto disso. Sou muito grata de, aos meus 15 anos, ter dado um nome diferente do meu. Quando fui ao Festival da Canção, as pessoas reconheciam-me na rua e vinham falar comigo a dizer que tinham ficado muito tristes por eu não ter ganho. Eu não tinha noção disso! Porque eu não estava triste. Eu estava super contente pelo meu resultado porque, na verdade, eu queria manter a minha individualidade. Eu queria fazer emmy curl e não ficar presa a uma canção que não era a minha, entendes? Se eu ganhasse, toda a gente me ia associar àquela música. Tens um exemplo, que é algo extremo, que é o da Sara Tavares. Ela nunca gostou particularmente de ser identificada com a música que levou ao Festival porque aquilo era música de branco e ela sempre quis fazer música negra, africana. Ela sempre sentiu que a música dela nunca foi tão bem recebida como quando fez aquela música para brancos. O Festival da Canção é uma marca e é preciso ter cuidado. Se eu entrar num avião e disser o meu nome, ninguém se vai lembrar que fui aquela que cantou no Festival da Canção. Se tivesse ganho, seria diferente. Eu adoro ter a minha privacidade. É das coisas que mais prezo.

emmy curl apresenta Pastoral hoje (2) no Festival Santacurtas em Santa Cruz, na ilha da Madeira. No próximo dia 10, toca no festival Bons Sons, em Cem Soldos. Podes descobrir as restantes datas da digressão de Pastoral aqui.

Fotografia: Divulgação

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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