É sexta-feira, 29 de setembro. No Maus Hábitos, é noite de Super Bock Super Nova. A entrada livre justifica que, daqui a algumas horas, o quarto andar vai estar à pinha com uma grande massa de melómanos, alternos, transeuntes passivos a assistirem aos concertos de Conferência Inferno, MÁQUINA. e Cobrafuma, e ao DJ set da dupla The Ema Thomas.
No fim de tarde, o sol ilumina o terraço do Maus. Já é outono, mas ainda se sente o verão. O fino é desejável, mas a mente decide apenas por uma água. No interior da sala de concertos do Maus, os Cobrafuma fazem barulho com o seu soundcheck. À porta, encontro-me com os Conferência Inferno.
O concerto de 29 de setembro é especial para Francisco Lima, José Miguel Silva e Raul Mendiratta. Será a noite onde se despedem “oficialmente” de Ata Saturna, longa-duração de estreia editado em 2021 que os consagrou como um dos grupos mais excitantes da cena alternativa portuguesa. Quando voltarem a tocar ao vivo, já Pós-Esmeralda – editado no passado dia 13 de outubro pela seminal Lovers & Lollypops – terá sido revelado ao mundo.
É esse disco, o segundo dos Conferência Inferno, que me levou ao Porto, ao Maus Hábitos, e à conversa com este trio de vampiros góticos da synthpop.
Ao vivo primeiro, em estúdio depois
Para quem tem assistido aos concertos dos Conferência Inferno ao longo dos últimos dois anos e picos, as canções de Pós-Esmeralda não são novidade.
A primeira vez (de três) que vi o trio que começou como dupla – José juntou-se à banda entre o lançamento do EP de estreia, Bazar Esotérico (2019), e Ata Saturna – ao vivo, já umas quantas canções de Pós-Esmeralda faziam parte da sua setlist. Corria dezembro de 2021, no Auditório CCOP. Lembro-me porque, além de ter sido um excelente concerto e onde escutei a icónica versão de “Carrossel da vida na cidade” dos Conferência (o trio já chegou a cantá-la com Lena d’Água na edição de 2021 do Tremor), perdi o último comboio dessa noite e tive de pagar quase 30 € de Uber para voltar a casa. Nem tudo pode ser bom, não é?
Os Conferência Inferno operam assim. Constroem as faixas, experimentam-nas ao vivo, afinam-nas, e depois lá acabam por as gravar. É um processo que se tem repetido desde os primórdios da banda. Durante os concertos de apresentação de Bazar Esotérico, por exemplo, já tinham introduzido algumas malhas que apareceriam em Ata Saturna.
“Nós fazemos as músicas enquanto estamos a tocar o que estamos a apresentar”, revela Francisco. “Estamos nos ensaios, fazemos uma música ou outra, e depois testamos ao vivo”, acrescenta o vocalista, baixista e letrista da banda.
O tempo de estrada que os Conferência Inferno deram às canções de Pós-Esmeralda ajudou “no processo de gravar e preparar o disco”, conta Raul. É ele e José que controlam os sintetizadores que adornam a música do trio.
Por outras palavras, os Conferência Inferno tinham tudo “bem oleado”. Quando chegaram ao estúdio para gravar, não perderam tempo. Não precisaram de “experimentar muito”. Aprimoraram uma ou outra coisa, mas “o core” das canções, como indica Francisco, é essencialmente o mesmo. A exceção a este estratagema recai sob “Pigmento”.
Com quase dez minutos de duração, é a faixa mais longa que os Conferência apresentaram até agora. Foi a música que “deu mais trabalho em estúdio”, confessa Francisco. “Com a ‘Pigmento’, perdemos tempo a retirar elementos até conseguirmos criar uma coerência narrativa na música”, elabora José. É a peça central de Pós-Esmeralda, uma espécie de jam de dança que é também o magnum opus destes primeiros lançamentos do trio. É aquilo que os Conferência se preparam para fazer desde que começaram a fazer música e um indício também do que aí vem. Mas sobre isso, mais daqui a pouco.
O aprimorar de conceitos
Face a Ata Saturna, o universo sonoro dos Conferência Inferno expande-se em Pós-Esmeralda. Não reinventam a roda, mas também não precisam. Simplesmente aprimoram a fórmula através do embelezamento da sua canção. Pelo meio, encontramos aquilo que os diferencia dos seus contemporâneos: como conseguem capturar ancas, mente e coração. É um cocktail de synthpop e darkwave urgente para os dias de hoje. As referências são fáceis de adivinhar. GNR circa Independança, uns New Order ou Depeche Mode, LCD Soundsystem, Underworld, o lado combativo de uns Corpo Diplomático, a pop sofisticada de uns Blue Nile.
Neste novo disco, os Conferência voltam a juntar-se a Ricardo Cabral (Baleia Baleia Baleia), que mais uma vez fica a cargo da produção. Juntos, fazem os sintetizadores soarem mais bonitos, as drums soarem mais pujantes. Há mais linhas de baixo orgânicas – “AutoPânico”, o primeiro single, é exemplo disso. As faixas mais dançáveis, como “Mayday” ou “Cowboy Bêbado” – o melhor genérico de um western espacial servido à moda do Porto que nunca existiu –, soam mais dançáveis. Quando os Conferência viram introspetivos, como em “Realidades” ou “Alma”, a coisa sente-se mais. No final, “Distopia”, hino para corpos se juntarem a dançar tanto em caves como em finais de tarde recheados de melancolia, soam a rave de final de tarde, uma porta a abrir-se para o futuro e para a próxima fase dos Conferência.
Tanto Ata Saturna como Pós-Esmeralda parecem discos concetuais. Há temas, referências, sons, que surgem em vários momentos do disco. No entanto, ambos não foram construídos como tal. A cola que une ambos, e que acaba por também unir as canções de Pós-Esmeralda, é o inconformismo captado através da “fotografia” captada em cada música, reflexo da vida dos elementos da banda – três rapazes na casa dos 20 tardios, 30 primórdios, perdidos em torno do circuito musical e artístico da cidade do Porto. Curiosamente, nenhum dos elementos dos Conferência é originalmente da Cidade Invicta: Francisco é de Vila Real, José é de Lamego, Raul é de Aveiro (obrigada à Cabine por esta informação).
Mas se Ata Saturna era a fotografia de um Porto vivo, boémio, alimentado por excursões ao Taskinha, ao Passos Manuel, ao Ferro, ao Café au Lait, a festas não-tão-próprias-para-crianças (mas os Conferência Inferno gostavam que “Cowboy Bêbado” se tornasse um hit para essa faixa etária – não vemos porque não), Pós-Esmeralda é o contrário. É a fotografia de um Porto parado, mais introspetivo, fechado dentro dos limites das suas paredes, impactado pela pandemia.
“Nenhuma das canções do Ata Saturna foram compostas durante a pandemia”, elabora Raul, mas “neste disco, foram todas”. “A pandemia foi uma altura fodida para toda a gente, não é?”, relembra Kiko, como os dois colegas de banda amavelmente o tratam. Durante esse período, os membros dos Conferência Inferno viveram situações em que pedidos de ajuda foram necessários. “Mayday”, canção que abre o álbum, é consequência desse tempo. É, como grande parte de Pós-Esmeralda, sobre “saúde mental, pressão e ansiedade”. No seu refrão dançável, Kiko canta:
Não quero lidar e sobe-me à cabeça Do cinema ao jantar falto à decência Engano o estômago pra te dizer Que perco a cabeça a rodopiar Traçado o esboço no teu paladar Devo ir ou devo faltar?
Como alguém que padece ativamente de crises de ansiedade, a música dos Conferência Inferno ofereceu-me refúgio, especialmente durante alguns dos momentos mais complicados da pandemia. Perdi a conta à quantidade de vezes que escutei “Ausente” – a grande malha de Ata Saturna – durante esse período. “Esta ansiedade perpétua / Que corre a meu lado / Continua a persistir / Continua a chegar tarde” ecoa muitas vezes pela minha cabeça. Em Pós-Esmeralda, essa persistência e resiliência vem ao de cima. Em “AutoPânico”, primeiro single do álbum: “Fecho os olhos com medo / Falo as paredes do quarto / Jardins em combustão lenta / Só resta o pânico”; em “Alma”, a auto-sabotagem é tema fulcral para o cumprir da canção: “Vou sabotar o desejo de voltar às ilusões / Entrar de quatro na sala de estar / Faço de fumo pra dissipar”.
Porém, ao capturarem de forma exímia este sentimento, os Conferência Inferno oferecem alguma esperança, particularmente na justaposição entre as letras de Francisco e os instrumentais que iluminam estas cantigas. Há, até, canções de amor, algo que a banda já tinha indicado conseguir cumprir com “Cetim” (do EP de estreia). “Fantasias”, por exemplo, é um devaneio sensual e noturno, onde o protagonista da intriga é arrastado “pra dentro” de uma “festa tropical” única. É a pintura de um cenário de clubbing, de romance, de uma noite de alegria. É a pintura de uma tentativa de voltar a viver. “Distopia”, por outro lado, contrasta o lado negro da sociedade atual com os devaneios de uma noite “perdida” (ou será ganha?) a dançar. Se tudo está perdido, ao menos que dê para dançar um bocadinho, não?
“De forma inconsciente, se calhar”, elabora José, “por causa da temática das letras do Kiko, tentamos equilibrar com o outro lado, de dar-lhe um lado esperançoso”. “Mas foi tudo muito terapêutico”, acrescenta, “porque estávamos a tentar sair um quito do buraco”. Os Conferência Inferno, na realidade, como outros tantos, procuravam catarse, um refúgio onde pudessem encontrar “redenção” e “aceitação”. “Este disco, pelo menos para mim, acabou muito por ser sobre isso”, conclui José.
Um lado combativo que não se perde
No final do mês de março, uma publicação nas redes sociais de Manuel Molarinho (Baleia Baleia Baleia), uma das caras por trás da Saliva Diva – editora independente que chegou a editar a edição física do EP de estreia dos Conferência Inferno –, anunciava que, até 1 de maio, o estúdio conhecido como Quarto Escuro, gerido pelo seu colega de banda Ricardo Cabral na Cedofeita, teria de fechar portas ou relocalizar-se. A ordem era do senhorio.
Foi no Quarto Escuro onde muitas das canções dos Conferência Inferno nasceram. Pós-Esmeralda, por exemplo, ainda foi captado lá, uns meses antes da ordem de despejo. Com o fecho do Quarto Escuro, os Conferência Inferno – a par de muitas outras bandas, como os próprios Baleia Baleia Baleia – tiveram de arranjar outro local de ensaio. Foram vítimas do crescente desejo de gentrificação a assolar a cidade do Porto, evidenciada em particular pela luta de músicos e criativos contra o possível fecho do centro comercial STOP, o mais significativo hub cultural da Cidade Invicta e do Norte (e um dos mais significativos do país).
“Nós perdemos a sala, mas, entretanto, conseguimos arranjar um espaço”, comenta Francisco. “Mas não é algo definitivo, estamos um pouco a viver um dia de cada vez”, acrescenta José. “O que encontramos aqui no Porto, muitas das vezes, é impraticável e deixa de existir subitamente”, conta Francisco.
Os Conferência, tal como os músicos do STOP, podiam ir para o seu estúdio quando quisessem para ensaiar, para jammar. “Fizemos muitas sessões late night”, revela José. E relembra Raul que o impacto do aumento de custo de vida, da crise habitacional, não se aplica só ao desaparecimento ou dificuldade em arranjar salas de ensaio a preços acessíveis ao comum mortal. “Os músicos não são nómadas digitais, não é?”, indica. “Além de ensaiarmos, precisamos de um sítio para viver”, comenta Francisco, evidenciando um sentimento que, por exemplo, bandas como Summer of Hate ou artistas como chica expressaram este ano numa reportagem publicada na Comunidade Cultura e Arte. “Quero manter-me cá no Porto, fazer música, e conseguir pagar as minhas despesas, mas neste momento não está fácil”, conclui José.
É natural que, quando se vivem estes momentos de tensão social a nível interno, conjugados a guerras, genocídios, condenações “legais” que visam denegrir a luta antirracista, (pausa para respirar), degradação dos direitos das pessoas LGBT, ou o colapso climático a que já estamos a assistir, que nos sintamos um pouco perdidos, presos, reféns daquilo que nos rodeia. Não é bem um apocalipse, mas é como se fosse. O apocalipse da precariedade, da vitória derradeira do neoliberalismo e do hipercapitalismo. Na era da saturação, sentimo-nos exacerbados, impotentes. É complicado não cair em niilismo, não se ser doomer. A música dos Conferência Inferno, nesses momentos, surge como oportunidade para dançar. É a banda sonora indicada para os tempos atuais.
E apesar das dificuldades, o trio persiste. Insiste. Já cantaram sobre o “Apocalipse”, sobre o “Diabo”. Mas também já cantaram sobre o “Sol”, sobre “Fantasias”. No meio do caos, tentam oferecer, com a sua música, sempre combativa, sempre punk, um local de comunhão para quem a escuta. No Maus Hábitos, no dia 29 de setembro, foi assim. Houve moshpits, dança, uma versão especial (e algo crackuda) de “Ausente” – com Halison da MÁQUINA. na bateria e José Roberto Gomes no baixo. Nesta sexta-feira, 27 de outubro, há segunda dose de Super Nova – com as mesmas três bandas dessa noite no Porto – no Texas Bar, em Leiria. A 4 de novembro, há apresentação em Lisboa, no Musicbox, na última noite das Jameson Urban Routes. No Porto, a dose de Pós-Esmeralda é dupla: 17 e 18 de novembro, no Ferro Bar. Em Aveiro, a data marcada é de 24 de novembro, no GreTUA.
Por agora, o pensamento dos Conferência Inferno está em apresentarem o longa-duração nestas datas, onde o disco vai ser tocado na íntegra (em Lisboa e no Porto). Desejam aproveitar o momento e sentem orgulho em colocar cá fora este registo.
Todavia, não haverá grande choque se, nos próximos tempos, uma ou outra cantiga nova puder começar a ser introduzida nos sets da banda. E que formato poderão ter essas novas malhas? A ideia fica no ar: explorar o lado mais experimental e dissonante exposto em “Pigmento”, sinónimo do crescente interesse do trio em explorar aquilo que fazem enquanto Ilusão Gótica (sob esse nome, o trio só editou s/t, em 2020). O objetivo? “Subverter um pouco o formato da canção, acrescentar-lhe elementos de outros estilos e formatos”, assume José. Mas isso é o futuro. O presente, por agora, é este: Pós-Esmeralda.
Podes adquirir bilhetes para as Jameson Urban Routes, a decorrer no Musicbox entre os dias 2 e 4 de novembro, aqui.
Podes adquirir bilhetes para as datas de apresentação de Pós-Esmeralda, no Ferro Bar no Porto, a 17 e 18 de novembro, aqui.
Fotografia de destaque: Sandra Garcez