Quem achou que Pedro Geraldes esteve ausente do mundo artístico desde a sua saída em 2022 dos Linda Martini, banda que ajudou a fundar em 2003, achou mal. O guitarrista começou a tocar ao vivo por meio mundo com Carminho, lançou outro disco de Mão Verde (Mão Verde II) com Capicua e amigos e, no meio disso, cozinhou o seu regresso ao mundo do feedback.
Depois de algumas amostras deste regresso com algumas canções lançadas sob o nome de Lázaro, alter ego do guitarrista, o prato musical que Pedro Geraldes andou a cozinhar foi dado a conhecer no último trimestre de 2024. O guitarrista juntou-se ao baterista João Vairinhos (The Youths e Necrø) para COLINAS, um registo sonoro cujo esqueleto já estava a ser desenhado desde 2014 com o projeto académico Sete Colunas do ex-Linda Martini.
Prestes a ser apresentado ao vivo em formato de “power trio” com a ajuda de Cláudio Tavares (Glockenwise) no baixo, COLINAS marca o regresso de Pedro Geraldes à música feita para suar, à distorção pronta para gerar encontrões, ao feedback danoso que corre o risco de criar zumbido no ouvido. Tenham cuidado e venham protegidos – os concertos começam dia 27 de fevereiro no B.Leza, em Lisboa.
Antes da apresentação ao vivo, a Playback foi ao Centro Comercial Stop, no Porto, falar com Pedro Geraldes para perceber como decorreu a evolução artística de COLINAS ao longo destes dois anos de conceção e para entender melhor a relação do guitarrista com o seu percurso musical ao longo destes mais de 20 anos de carreira na música portuguesa.

Onde é que a música aparece na tua vida e qual a tua relação com guitarras?
A minha primeira memória de sentir a importância da música surgiu durante as minhas férias no Norte, em Chaves. Nasci em Lisboa, mas ia sempre para lá nas minhas férias, com toda a minha família alargada – avós, primos, tios – que tinham uma forte ligação à música. Cantavam e tocavam imenso, numa mistura de música popular e de clássicos da época. Foi aí que senti, pela primeira vez, que a música tinha um poder enorme e fora do normal sobre mim. Era ainda um puto. Além disso, tinha um primo, dez anos mais velho, que morava no meu prédio e tinha uma coleção de discos. Tinha discos dos Nirvana, Suicidal Tendencies, Metallica, Young Gods, The Clash, Red Hot Chili Peppers. Ou seja, por um lado, tive a música a significar união e partilha por causa desses encontros familiares. Por outro, fui impactado pela música alternativa da altura por causa do meu primo, que também me influenciou muito. Tudo isto deu-me uma grande vontade de começar a tocar e a viola era o instrumento que estava disponível, e comecei por tocar na da minha prima. Depois, o meu tio, que tinha uma banda de baile chamada Pé de Meia, deu-me a minha primeira guitarra. Era uma Sakai, uma guitarra japonesa que me comprou em Paris nos anos 70. Acabei por tocar com ela no Olhos de Mongol [1º longa duração de Linda Martini de 2006]. Juntei essa dedicação à música e, mais tarde, no liceu, já tinha as minhas bandinhas com os meus melhores amigos. Por volta dos 16, 17 anos, começou a cena punk e hardcore em Lisboa e começámos a formar bandas, a tocar em garagens e em casas ocupadas.
Tiveste alguma formação musical?
A minha formação musical sempre foi autodidata. Aprendi tudo com amigos e a tocar com outras pessoas. Desde os tempos do liceu até agora a tocar ao vivo com a Carminho. Tocar fado com o Flávio Cardoso, o Tiago Maia e o André Dias, que são grandes músicos, numa área diferente da minha, que é o rock, faz com que aprenda imenso. Agora, a única altura em que tive formação formal foi quando trabalhei em webdesign. Corria o ano de 2006 e estive a estudar na JB Jazz em regime pós-laboral.
Mas qual era a tua abordagem para com a guitarra?
Curtia imenso de criar as minhas próprias músicas com os acordes que conhecia. A minha escola sempre foi a do punk. Sempre passou muito mais por criar e tocar ao vivo em vez de tentar replicar ou ser perfeito. Claro que tocava todas as músicas das bandas de que gostava porque as tirava de ouvido e era uma forma de perceber como é que eles faziam para eu também poder fazer, não é? Mas era muito de autodescoberta.
Como é que apareceu a oportunidade de tocar com a Carminho?
O convite da Carminho chegou em 2019, quando ainda estava nos Linda Martini. Cruzamo-nos numa das tertúlias que houve na altura dos concertos que o Caetano Veloso deu em Portugal. Ele gostava muito do projeto Língua Franca em que a Ana [Capicua] esteve envolvida [com o Emicida, Valete e Rael]. Na altura, fui convidado para essas sessões e a Carminho, com alguns cigarros pelo meio, demonstrou interesse no meu trabalho. Passados alguns meses, ligou-me a convidar-me para me juntar à banda ao vivo porque o Filipe [Tomara] não ia conseguir tocar o disco ao vivo.
Ficaste surpreendido?
Penso que o que a Carminho procurou em mim, e aquilo que tenho procurado dar, é o meu cunho pessoal, já que não sou um guitarrista virtuoso como a maioria dos músicos de fado, especialmente os que tocam guitarra portuguesa. Tenho apenas um gosto, uma estética e uma sensibilidade ao tocar.

Sentes que acaba por ser uma liberdade controlada? No sentido em que a tens toda, mas também não podes sair muito dali, do fado.
Nem quero sair. Porque tenho muito respeito, estás a ver? Para mim, tocar fado envolveu uma aprendizagem que foi, e continua a ser, muito bonita. Tenho muito respeito pelo fado e de ter a oportunidade de estar próximo de pessoas que trabalham essa linguagem.
Foi desafiante gravar e tocar ao vivo nesse contexto diferente do que estavas habituado?
No contexto do fado, para já, está tudo muito exposto. Tens só uma viola, uma guitarra e um baixo, tudo ali muito definido. Precisas de ser muito mais limpo, mas também pode não ser. A certa altura, pensei: “Espera aí, mas eu estou cá realmente para desconstruir um bocado, não tenho de estar como eles. Como é que eu posso, neste contexto, utilizar aquilo que é a minha identidade?” E tentei dar isso à Carminho. Em relação a tocar ao vivo, nas primeiras tours, lembro-me de falar com a Carminho e de lhe dizer que não estava ali a fazer nada. Ela abraçou-me e disse-me que estava incrível o que estava a oferecer e que era um caminho. Ela é muito exigente, o que é brutal. Mas ao mesmo tempo, permite totalmente que o erro aconteça e que um caminho seja feito. Sabe que é no caminho que as coisas vão sendo construídas. Ela está numa cena que é maior do que ela e isso é bem inspirador e motiva, porque eu não gosto de trelas nem daquelas cenas de patrão. Mas, quando percebo que ela está com uma equipa, com uma banda que quer materializar aquilo que eventualmente imagina, e que ela puxa por nós, tudo isso só me dá mais motivação.
Existe respeito pelo espaço de cada um, mesmo sabendo que vêm todos de sítios diferentes.
Tenho um enorme respeito pelos músicos com quem toco. Tocar com eles é um privilégio. O André é um mestre da guitarra portuguesa e o Flávio também é um excelente violista. Eles têm formação académica e um conhecimento técnico impressionante. Mas o Maia, por exemplo, vem mais do rock e foi tocar baixo no fado. Porém, principalmente depois de ter saído dos Linda Martini, durante muito tempo, senti-me sem um sítio, percebes? Porque ali são doses homeopáticas. Faltam os feedbacks, faltam as dissonâncias. Faltava-me tudo isso. Por isso, a minha vontade de ter criado o COLINAS e de voltar a tocar ao vivo vem da necessidade de sentir novamente aquela catarse que eu sentia com os Linda. Sinto falta disso e está tudo bem com isso. É a minha maneira de ser e de viver a música. Ainda bem que sinto essa necessidade, porque não quero ficar apático. Nos Linda, tinha liberdade para criar e para me expressar, mas a cena é que já não me sentia tão identificado com o projeto. Por outro lado, ao fazer este disco senti um grande dilema que era estar a ir novamente aos mesmos territórios daquilo que fazia para trás com os Linda Martini. Ao mesmo tempo que pensava em tudo isso, tive a certeza de que este era o disco que eu tinha que fazer naquele momento. Era o único caminho que eu podia seguir para ser sincero comigo mesmo. Podia ter tentado fazer algo mais disruptivo, mas senti que não seria genuíno.
O Colinas começou a ser construído em 2014 com o projeto Sete Colunas, certo?
Nessa altura, foi quando eu deixei a agência web onde trabalhava. Tocava com os Linda Martini e estava a fazer trabalhos de freelancer. A Ana falou-me da possibilidade de fazer um mestrado e a mim pareceu-me muito interessante. Gostei muito do trabalho académico, mas depois, quando chegou a altura da dissertação, decidi juntar a cena mais artística, mais de composição com esta parte, eventualmente, mais técnica. O meu tema da dissertação era a composição a partir de paisagens sonoras. Muito a partir do trabalho da música concreta, de ouvir os barulhos e a partir daí criar as músicas. Tive a ideia de compor, que é algo que gosto de fazer, e de juntar paisagens e sons. Ou seja, de adicionar camadas de audição ativa, que foi algo que sempre me interessou. Mas depois de ter o conceito, tive de arranjar uma coisa mais concreta para concretizar a ideia. Então, lembrei-me de Lisboa. Lisboa é a cidade das sete colinas e surgiu-me a ideia de fazer paisagens sonoras para cada uma das colinas e de fazer uma composição para cada uma delas. Como um percurso pela colina em que depois esses sons eram transformados e eram criados ritmos e melodias, através da informação que tinha passado de cada área geográfica das colinas.

A ideia inicial passava mesmo por ser uma instalação sonora, certo?
Sim. Era suposto ser uma exposição e instalação de um espaço com sete colunas, uma para cada colina. O nome acaba por funcionar para os dois lados: das colinas e da exposição. Mas foi o título que depois dei para disponibilizar no Bandcamp. Na altura, fiquei com esses sons todos gravados, entreguei as composições, defendi a tese, correu muito bem, o pessoal gostou todo e acabei o mestrado. Portanto, os sons da cidade gravados datam de 2014. Passado uns dois ou três anos, o Vairinhos veio ter comigo a dizer que curtiu imenso daquilo e que curtia de fazer algo com aquilo, mas com bateria e guitarra. E ficou aí… o bichinho. Estava mesmo a precisar deitar muita coisa fora e o que aconteceu foi: já havia composição, já havia as músicas que existiam nas sete colunas que iam para melodias e nós já tínhamos a ideia do tipo de abordagem sonora que cada colina podia ter. Numa aberta da pandemia, já depois de eu ter saído dos Linda Martini, eu e o Vairinhos viemos aqui para o Stop e começamos a ensaiar juntos. Na altura, ele até teve de arranjar uma bateria de malta daqui do Stop, porque antes estávamos a ensaiar no HAUS, em Lisboa.
Esses ensaios eram para Lázaro?
Não. Lázaro é outra coisa.
Mas com o Vairinhos foi a primeira cena oficial?
Sim. Ele lançou as cenas de Lázaro pela editora dele, que era a Regulator Records, que entretanto acabou.
Acabou? Mas ainda lançou o vinil do COLINAS…
Foi o último lançamento, mas já tinha anunciado que tinha acabado. Mas fora das cenas de Lázaro, estávamos a ensaiar estas composições no HAUS e a ver qual era a sensação. Depois, foi aqui no Stop onde experimentamos fazer uma abordagem mega punk e direta. Fizemos as bases e gravamos as demos.
A estrutura das músicas que estão no álbum são todas dessas demos iniciais?
Sim. Gravei só com o computador as bases e depois defini as estruturas a partir do que tínhamos feito juntos. Depois fomos para o Black Sheep gravar de acordo com aquilo que tínhamos definido, mas com a liberdade para ajustar conforme o que gravamos com o Bruno Xisto. E aí é que foi. Entre estar em trabalho de tour com a Carminho, voltar a estar com a família, e o luto de ter saído de Linda Martini, peguei nesta vontade de querer fazer alguma coisa que não fosse uma repetição, mas que não esquecesse de onde vim. Ir e vir a trabalhar, ter uma ideia e andar muito, mas depois ter de repensá-la. Depois só um gajo sozinho… Serviu para perceber que agora em diante será bastante diferente. Quero que o processo de composição e gravação seja uma coisa mais fluida e não tão assente no computador. Uma coisa assim mais cool. Depois da bateria e da guitarra, ainda tive de gravar o baixo e tive de decidir alguns aspetos. Quis limitar o número de instrumentos porque queria tocar este projeto ao vivo e ainda nem sequer existia uma banda – era só eu e o Vairinhos. E eu queria que tudo isto soasse a uma cena minimal, mas rock. Eu queria muito fazer um disco rock que fosse um disco de bateria, guitarra e baixo, mas que depois tivesse a ambiência a surgir da eletrónica presente através das samples ou dos teclados. Queria que existisse esse dois lados no disco, de que fosse a vários sítios, uns mais pesados, como a “São Roque: faca amolada”, e outros mais de ambient. O processo foi esse, apesar de ter sido um bocadinho atribulado.
Estiveste sempre em tour com a Carminho e a verdade é que o cansaço também começa a acumular…
Imagina que estás a trabalhar num projeto durante uma semana. Ganhas aqueles automatismos que são necessários. De repente, vais uma semana para fora, não tocas no projeto e, quando voltas, ficas sem esses processos automáticos que tinhas ganho. Em termos criativos é muito bom agarrares uma onda que venha, que te diz o caminho e a altura em que essa onda está a fazer sentido é o agora. Se vais pensar nela daqui a três semanas, até pode continuar a fazer sentido, mas pode não estar a fazer e tens que refazer. Acima de tudo, acho que o que queremos mesmo é tocar ao vivo e que o máximo de pessoas nos possam ouvir e tenham interesse. Mesmo sabendo que é uma cena de nicho, acho que vai haver malta que vai achar piada.
O Vairinhos teve então a liberdade para responder àquilo que estavas a fazer ou fizeste a composição antecipada para a bateria dele?
A composição da bateria foi da total responsabilidade do Vairinhos. Só houve uma música, a “São Vicente: fulminante”, em que mudei o riff. Apesar da parte de bateria ainda funcionar com esse novo riff, achei que era melhor reconstruir o que tínhamos. A certa altura, quis começar a vir para o Stop porque trabalhava muito em casa e queria perceber se isto tinha power ou não. Porque estava a trabalhar muito só a ouvir isto com fones e precisava de outra coisa porque já não sabia como isto estava a soar fora daquele campo auditivo.
Como comparas a composição em banda versus agora fazeres as coisas “sozinho”?
Em diferentes graus, os outros membros de Linda Martini eram aqueles que diziam “Não, bora siga!”. Isso é muito importante numa banda porque há um que quer mais tempo para pensar, outro diz que é para fechar a canção, e outro que está na dúvida se é para fechar ou não. Esse outro geralmente era eu. De repente, tive de lidar com isso tudo ao mesmo tempo [risos], porque era só eu. Por isso, o COLINAS foi uma grande vitória para mim porque consegui agilizar o meu pensamento e processo. Os meus objetivos foram fazer o disco e fechar este capítulo. Perceber que é o melhor que consigo fazer agora e viver bem com isso. Claro que no dia seguinte já estou a pensar que consigo fazer melhor [risos].
Mas em banda achas que ter, no teu caso, quatro pessoas a decidir era melhor para concretizar?
No contexto de banda, eram muitas mais opiniões a ter em consideração. Acho que todos os discos que acabei por concretizar com os Linda Martini, sinto que os devo a eles. Agora, sinto que o que quero é agarrar esta banda. Juntei ao Vairinhos, que já está desde o início do projeto, o Cláudio Tavares, que toca bateria com os Glockenwise e também fez a mistura do disco. Ele tem o know-how, tem a experiência toda técnica e é um músico incrível. A ideia é: três gajos fixes, que se dão bem e que têm vontade de fazer música juntos. Vamos tocar o disco agora, fazer a nossa apresentação e a partir dali fazer uma coisa muito mais imediata e muito mais na linha de: colhemos umas bases, trabalhamos à distância e fechamos. A tocar sozinho, como Lázaro, ainda estou à procura do meu sítio e acho que isso vai acontecer e tem vindo a acontecer. Com uma guitarra, uns loops, uns samples. Acho que tem tudo a ver com isto e tem tudo a ver com o que vem de trás, mas ainda há de chegar um dia.
Uma das coisas que eu senti ao ouvir o álbum é que tem muito aquela vibe de Dead Combo. No sentido de que a cena deles sempre foi aquela caracterização e ligação àquela Lisboa antiga, das pessoas. Que a vida acontece na rua com as pessoas de lá. Eu sinto muito isso nessas colinas que tu foste para a rua gravar e depois acrescentaste a tua guitarra. Com aquela saudade de um sítio que já não volta e ao qual tu próprio também sentes. É dupla distância no sentido de aquele sítio já nunca irá ser aquilo que foi quando tu fizeste essas gravações e que tu, como Pedro, já não estás lá e sentes muita saudade disso.
Concordo e agradeço a comparação. A referência faz todo o sentido e também era uma coisa em que pensei muito, em termos de o que é que eu vou fazer a seguir. Nessa coisa de não me repetir. Por um lado, tinha muita vontade de fazer uma cena ainda mais imediata e mais punk, de power chords, muito direta. Mas ao mesmo tempo, sendo de Lisboa, tinha vontade de utilizar aquilo que tem sido a minha aprendizagem no meio do fado e que são coisas muito subtis. A certa altura, pensei em como é que podia incorporar isso na nova música que estava a fazer. Obviamente, Dead Combo é uma referência. Por exemplo, a música que eu disse que mudei, a “São Vicente: fulminante”, aquela primeira introdução está numa estética de Dead Combo e no início o primeiro riff ainda era mais, tanto que acabei por substituir o riff. Agora, olhando para trás, a influência está lá. Para mim, acaba por ser, sem dúvida, um elogio. Em relação à homenagem a Lisboa, eu cresci em Queluz e depois fui estudar para Lisboa, na primária, do primeiro ao quarto ano. Depois, estive em Massamá e só voltei para Lisboa, no primeiro ano da faculdade. Claro está que, a partir dos 18 anos, comecei a ir primeiro ao [centro comercial] Babilónia, à Carbono [loja de discos], à Amadora e a concertos em Lisboa. Vivi em muitas casas em Lisboa e vivi também muito uma transformação que aconteceu desde aquilo que eu me lembro dos anos 2000, até 2014, quando isto foi gravado. A realidade é que Lisboa era uma cidade realmente muito envelhecida e tinha uma cena cultural alternativa, que foi crescendo, e com isso as bandas. Sinto que de alguma forma estive englobado nesse grande bolo que estava a acontecer. Mas senti, principalmente depois, no quarto ano da faculdade, quando fui de Erasmus para Barcelona, um grande choque. Estive em Barcelona durante meio ano e senti que Barcelona sim, era uma cidade com gente viva, com vida e com coisas a acontecer. Fiquei maravilhado. Então, quando voltei a Lisboa reparei que ela tinha evoluído nesse sentido, mas que ainda estava muito distante. Aquilo que é este retrato de Lisboa tem mais a ver com essa altura. Embora isto já seja 2014, mas para mim é mais essa Lisboa que eu vivi. As pessoas na rua, os portugueses, os estrangeiros, os imigrantes. Já se ouvem muitas, muitas vozes, turistas. Obviamente que agora está impossível, mas na altura já se via o caminho a ser traçado. Entretanto, também politicamente, isto deu uma grande volta. Lisboa, pela ideia que tenho, pelas vezes que lá vou e pelos testemunhos que ouço, percebo que é uma cidade que está numa transformação que dificilmente volta a esse tempo. Então, também existe na música do álbum uma espécie de nostalgia e homenagem a esses tempos.
É curioso que mesmo a viver no Porto durante o curso, escolheste Lisboa para o tema da tua dissertação.
Tenho mesmo um apego e eu não sou nada competitivo nas cenas bairristas. Mas tenho uma cena bem visceral e emocional com o sítio onde eu cresci, o Monte Abraão. A rua onde cresci e como eu cresci. Não queria que tivesse sido em mais nenhum sítio. Adorei aquilo ali com as experiências que me deu de bom e de mau. Era uma rua sem saída, que de repente foi alcatroada e começou um monte de pessoal a andar de skate. Era uma vida fixe e eu curti muito quando era criança. Agora, Lisboa é o postal. Mas a cidade é feita pelas pessoas que lá vivem e com a vida que existe nela. O caminho que a cidade tem levado é muito interessante e acho que está a voltar outra vez àquilo que era nos finais dos anos 90, nos inícios dos anos 2000. Havia uma cena alternativa, porque era o que existia e o pessoal interessava-se, era ali que se reunia. Acho que Lisboa voltou a entrar outra vez numa situação em que… Isto vai continuar, vai haver muita merda, mas vai ser um bocadinho mais rude. O alternativo vai-se manter alternativo e está tudo certo. Agora, acho que o alternativo passa a ter uma preponderância maior num contexto em que é uma cidade vendida aos turistas.
Tens saudades de Lisboa?
Tenho muitas. Sempre que vou a Lisboa, adoro. Tenho imensos amigos em Lisboa. Quando vou lá, é em trabalho e nem sempre faço as visitas todas às capelinhas. Mas pronto, é o que é. Estarei sempre próximo, porque eu cresci lá e a minha vida foi lá. Depois, há aquelas amizades, aquelas ligações que tens com pessoas com quem tu cresceste… Há sempre ali um sedimento que não morre.. Vim para outra cidade, conheci novas pessoas, tenho muitos amigos aqui no Porto, mas essas pessoas não cresceram comigo, estás a ver? É diferente. É só diferente.

E em relação à capa do Bráulio Amado? Onde surge?
Eu conheço o Bráulio desde os tempos da cena hardcore em Almada, de Adorno e dessas cenas todas. É um amigo com quem tenho muita afinidade. Uma pessoa especial, um gajo fixe, sem merdas. Ele diz que “competir é estúpido e se é estupido, porquê competir?”. E eu adoro essa merda. O Ricardo Josefina foi quem tirou as fotografias das colinas de Lisboa. O plano era fazer uma fanzine com alguns textos para os concertos e que o Bráulio se inspirasse nessas fotos para a capa. No verão, enviei-lhe as músicas, ele adorou e fez esta capa. A capa foi inspirada nas fotos do Ricardo e na capa do Yank Crime dos Drive Like Jehu, que lhe enviei como referência. Depois, ele fez a capa em três ou quatro dias, com um toque de amarelo, que é uma cor característica de Lisboa.
A “São Vicente: fulminante” tem coros do António Serginho e da Francisca Cortesão, que participam também no projeto de Mão Verde, mas não estou a ver quem é a Maria Fontes-
A Maria Fontes é uma amiga minha e da Ana, costuma fazer cenas numa onda mais soul e chegou a fazer coros para os X-Wife. Depois entrou também a Inês Malheiro e a Sara Yasmine, que é de Retimbrar e Sopa de Pedra. A cena dos coros surge porque eu meti na cabeça aquela referência meio wannabe de Ennio Morricone, e um disco do Danger Mouse [com o Daniele Luppi], o Rome, que é bem bonito e também enverga por essas ondas meio de spaghetti western. Acabei por falar com malta amiga e perguntar se não queriam gravar umas vozes.
Ao longo do disco, nota-se que as músicas estão todas ligadas. Ainda és aquele romântico que acredita no conceito de álbum?
Neste disco, tive esse cuidado. Porque acaba por ser um disco conceitual, não é? Eu não quis fugir a isso e por isso tive de ter ainda mais esse cuidado. Se imaginares que é um disco sobre um passeio nas colinas de Lisboa, quando vais de uma colina para a outra, também não paras, percebes? Foi mesmo a ideia de que estás ali a caminhar e é como se fosses passar por cada uma delas. Há um fio que une as colinas e também estas canções.
Ainda agora falávamos de a vida ser feita com as pessoas da rua e do que acontece, e é muito isso que o disco me transmite também. Muitas conversas interceptadas. Por exemplo na “Chagas: água & fogo”, ouve-se “Está sozinha em casa? Está melhorzinha? Está na mesma, não é?”. Na “São Vicente: fulminante”, ouve-se algo como: “É amarrar com…”, “Como dizia o Raul Solnado…”.
Isso é a Dona Rosa! Sabes qual é a referência? Sabes o que é que ela diz?
Acho que é algo como: “eu tenho que, amarrar, não sei o que, qualquer coisa..”
Com uma guita…
Exatamente.
“Tenho de começar a amarrar o isqueiro com uma guita!”. A Dona Rosa era uma senhora que tinha um daqueles quiosques onde se vendiam jornais; entretanto, morreu. A música “Sant’Ana: cegueira” tem um refrão cantado em que o sample é outra Dona Rosa, que é fadista, a cantar. Ela era uma senhora ceguinha que estava a tocar com um triângulo. Gravei isso na altura e utilizei nessa canção como sample.
Em relação a tocar isto ao vivo, qual é a vontade de ir a clubes pequenos? Achas que é aí que se sente o verdadeiro gig? Sentes que também isto é a tua forma de procurares a realidade daquilo que sentias antigamente com as casas ocupadas onde tocaste inicialmente?
Essa é uma grande pergunta. Acho que é mesmo isso que me fez querer fazer este disco e me faz querer tocá-lo ao vivo. É poder voltar a tocar em sítios onde todos se encontram naquele espaço e que é partilhado uma energia. Isso é realmente especial e quero voltar a ter isso.
Em Linda Martini já tiveste os pacotes todos. Salas pequenas, médias, grandes, festivais pequenos, médios, grandes.
Sim, e depois tocando com a Carminho e a quantidade de sítios que acrescentei aos que já tinha ido, acabo por ficar rendido. Não há mesmo um sítio mais fixe para eu me sentir bem e, precisamente, para ver um bom concerto do que um clube. Sabes quando vais a um espaço minúsculo, em que está uma banda a tocar e no fim há ali uma entrega, algo que dê um caminho!? É realmente muito especial, porque aquilo acontece ali. Está ali quase uma meditação, uma vibração, toda no mesmo sítio e de forma conjunta. Isso é bem fixe. Para além disso, vês toda a gente, partilhas suor, podes dar uns encontrões.
Debate-se há muito tempo sobre a existência de um circuito de clubes em Portugal. Lembro-me dos gigs que Linda Martini fizeram com o Legendary Tigerman [digressão Rumble in The Jungle] em que tocaram em bastantes clubes e que chegaram a tocar em sítios como em Alpedrinha, em salas relativamente pequenas.
Acho que parte muito do interesse. Acho que tem a ver com a existência de espaços, sim. Tens alguns já: Braga, Porto, Coimbra, Leiria, Lisboa. Nessa altura que fazíamos essas tours foram surgindo esses espaços. Só que eu acho que realmente não existe uma cultura [de clubes] em Portugal. Estamos num país pequeno que, com poucas salas, ainda mais pequeno fica. Mas aí eu volto um bocadinho a essa questão: Não será também falta de interesse?
Mas se tu não apresentares às pessoas, as pessoas também nunca vão mostrar interesse.
Sim. Por isso é que tem de existir um circuito nacional, nem que seja apoiado pelo Estado. É preciso que exista programação nos municípios, não só de coisas alternativas, mas de várias coisas. Por exemplo, tu tinhas auditórios, antes do Covid, que faziam mais esse tipo de programação e que tinham mais esse cuidado. Agora, o mercado está muito mais canibal. Acho que as pessoas estão educadas de uma certa forma e que, neste momento, estão tesas, deprimidas, e mais do que nunca, precisam de arte e de alimentar sonhos. Se isso está normalizado? Não está. Nada mesmo. Há o alternativo e pronto. Que se mantenha o alternativo, mas que haja mais condições e que haja mais espaços.
Como é que vais passar as malhas do estúdio para serem tocadas ao vivo?
A ideia é de não ter computadores em cima do palco e ser tudo disparado por nós, em modo sample, por máquinas distribuídas entre os três. A única coisa que será no computador é a projeção de imagens.
Vão tocar o disco todo na íntegra?
Logo veremos. Vamos ensaiar e ver como é que resulta. Mas a ideia é ser bastante livre. Ou seja, não é reinterpretar na íntegra, mas fazer como um power trio, com partes livres de improvisação. Livre e ágil, porque é como também é a própria cena.
Como é que funciona o Stop em termos de espaço cultural para ti?
Estou no Stop desde o início da pandemia. Como a malta ia parar, começaram a largar algumas salas. Surgiu uma, mesmo fixe, que vim logo ver e fiquei com ela. Agora o Stop já é uma história antiga. O Manel Cruz já foi presidente da associação e a história já esteve encaminhada num sentido, mas depois houve divergências entre associações e o próprio Manel afastou-se também. O episódio mais recente, que eu vivi na pele, foi quando fecharam mesmo o Stop e tentaram obrigar a que viéssemos retirar os instrumentos das salas. Claro que ninguém quis tirar nada, porque não tínhamos de tirar. Nós pagamos renda. De repente, para entrarmos nas salas, porque não sabíamos quanto tempo aquilo ia estar fechado, tivemos de pedir uma autorização à polícia. Um aparato. Desde aí, isto mudou… Saiu quem fazia parte da direção do condomínio e reabriu. Tem havido reuniões entre associações e proprietários para isto levar a novos caminhos. Na altura, tinha a polícia e os bombeiros à porta. Teve um plantão, pago pela câmara, durante mais de meio ano. Até que com o horário meio provisório, meteram uns extintores, uns detectores de fumos. Fizeram-lhe uma reformulação, entretanto, a polícia e os bombeiros já puderam sair e está a funcionar por completo. Atualmente, pago a minha renda ao proprietário, com quem tenho contacto direto, que é diferente do que fazia antes. Antes, pagava ao condomínio que fazia a gestão. Mas, como dizia, isto é uma zona [Heroísmo] que, tal como Lisboa, está a ser gentrificada. Já há hotéis, cenas fancy mais à frente até Campanhã. Portanto, acho que o Stop está sempre preso por araminhos. Mas a verdade é que é um espaço incrível. Há aqui muitos estúdios a sério e também muitas salas de ensaio de bandas de garagem. Tens um cinema, uma danceteria, uma discoteca que é um espaço em que eu já estive e é incrível e enorme. Dá para fazer festivais aqui se alguém quisesse [risos]. Dá para fazer concertos semanais aqui só com bandas do Stop. A dificuldade disto é que são muitos proprietários e fica difícil dar um rumo único se venderem isto. Isto continuará a existir até o capital falar um bocadinho mais alto. Aí, xau.

Mas para ti, como te impacta um sítio como o Stop?
Ofereceu-me uma rotina de trabalho. Quando estava a trabalhar em casa, tinha o meu conforto, sim, mas às vezes tinha conforto a mais [risos]. Vir para aqui é mais como se fosse para o escritório. Porque entro no método, vejo pessoas, ouço conversas. Tu chegas aqui e ouves logo uma banda a tocar.
Dá-te logo mais pica.
Dá logo. E tens esse contexto da cena rock, estás a ver? Isso é uma cena fixe. A cena bonita do Stop é que, com muito querer, tens uma cena tipo Berlim. Em que o pessoal tem um edifício todo, onde só estão artistas plásticos, ou só estão músicos, estás a ver? Às vezes, curtias que o gajo ao lado não estivesse a ensaiar para poderes gravar as tuas merdas [risos]. Mas como eu como venho de manhã, geralmente o pessoal não está a ensaiar. É tranquilo [risos].
COLINAS é apresentado em vários clubes do país ao longo dos próximos meses. As datas podem ser consultadas aqui.
A galeria de fotos desta conversa pode ser consultada aqui.