“Com claire rousay, nunca estamos sós”. Foi isto que Luís Filipe Rodrigues, a escrever no Ípsilon em maio, declarou sobre o mais recente longa-duração da artista. 

Claro que, contudo, esta descrição não se aplica apenas a sentiment, editado em abril pela seminal Thrill Jockey. Aplica-se a toda à obra de claire rousay que, a princípio, se evidenciou como baterista de bandas de math-rock e de emo. Destacando-se depois como mestre de cerimónias de ambient e musique concrète, mostra agora que é capaz de combinar todos os universos sonoros que a influenciaram em canções de emo ambient tão pessoais quanto enternecedoras. The Bloody Lady, editado esta sexta-feira, é mais uma prova disso.

No próximo dia 24 de novembro, claire rousay regressa a Portugal para tocar na quarta edição do Festival FENDA, que decorre em Braga entre os dias 22 e 26. Para esse espetáculo, a compositora e cantora traz consigo um setup especial, onde replica o quarto da capa de sentiment. Se estas canções são para serem escutadas de madrugada entre quatro paredes, então ao menos que não o façamos sozinhos.

Antes desse concerto, a Playback ligou à artista canadiana-americana para falar sobre o seu novo disco, a relação entre a música emo e slowcore, música como documentação de sentimentos, e crises espirituais.

Falas do termo emo ambient para descrever a tua música já há alguns anos, mas sinto que sentiment é o teu disco mais emo até ao momento. Para alguém que fala da influência de artistas como Pedro The Lion na sua música ou que tem um disco cujo nome vem de uma letra de Jimmy Eat World [if I don’t let myself be happy now then when?], como é que a música emo ainda influencia hoje a tua vida?

Gosto de fazer música que eu gostaria de ouvir, e por causa disso sinto que a música que faço é uma versão atualizada desses discos com os quais cresci e que me fizeram apaixonar por música. Por exemplo, esses discos de Jimmy Eat World e Pedro The Lion ainda significam muito para mim. Mesmo que não os ouça tanto como quando tinha 12 ou 13 anos, ainda têm muito valor. Acho que a minha música é a minha forma de contribuir para as coisas que gosto de ouvir e me poderiam impactar, se isso fizer algum sentido.

Por acaso tenho andado a ouvir bastante o Futures recentemente. Não sei se a tua fase emo alguma vez desaparece [risos].

Verdade. É para sempre! [Risos] Se cresceste com isso e se teve algum impacto significativo no teu crescimento, não podes livrar-te disso. Essa memória vai estar sempre lá. Acho que para mim, e também emocionalmente, a música emo teve muito impacto a dado ponto na minha vida. Foi bué formativo. Portanto, acho que nunca vai desaparecer [risos].

Acho que a primeira vez que tive contacto com música mais “emocional” foi quando vi o videoclipe da “Dookie” dos Green Day na VH1. Depois comecei a ouvir Weezer e assim, e foram experiências cruciais para eu começar a ouvir mais música.

Essas cenas são sempre fixes. Eu não sinto que estou a tentar replicar essa era da música. Por exemplo, nessa altura, na era da VH1 e da MTV, sinto que as músicas e os videoclipes eram um só. A componente visual da música estava tão entranhada na música que se tornavam um só na tua memória. Não sinto que tento fazer isso com videoclipes, mas acho que estou a tentar fazer isso com o espetáculo deste disco, onde estou a tentar replicar a capa do sentiment. Tenho muito interesse no lado visual que acompanha a música e adoro quando alguém tem um espetáculo ao vivo que é bonito e complementa as canções.

Vais trazer a cama para o teu concerto em Braga?

Sim! [Risos]

Como é a logística disso?!

Bué complicada. Da última vez que estive na Europa já fiz este espetáculo com este cenário e gastei muita energia e dinheiro, mas sinto que é uma das coisas que simplesmente preciso de fazer. É bué caro e bué difícil de fazer acontecer, mas não quero saber. Trago muita coisa comigo e carrego muitas malas [risos]. É o que é.

Lembro-me de ler um tweet do Joshua Minsoo Kim que dizia que os melhores discos de emo estavam sincronizados com o que estava a ser feito na música slowcore. Consigo ver essa relação no sentiment também. Sentes isso?

Sim. Eu sinto-me mais ligada às partes lentas da música emo do que propriamente às partes caóticas. Gosto de ambas, e acho que são igualmente dramáticas, mas gosto quando bandas fazem música mais lenta. Mas eu concordo. Acho que existia essa relação entre emo e slowcore, e nos anos 90 esse cruzamento soava bastante único. É como o impacto que bandas de hardcore e skramz [screamo] tiveram no emo. Não foi só a introdução da cena do cantar com melodia, mas também a cena de retirar instrumentação, abrandar, explorar o espaço. É bué fixe quando as bandas conseguem comunicar tanta emoção usando tão pouco.

O Clarity dos Jimmy Eat World tem muitos momentos que fazem isso. Acho que a “Goodbye Sky Harbor” é um dos melhores exemplos disto que estamos a falar.

Sim. Bandas como os Codeine ou Bedhead têm discos onde as canções são enormes e repetitivas. E há faixas no Clarity onde os Jimmy Eat World tocam o mesmo riff para aí 100 vezes de seguida [risos] e isso é mesmo fixe. Se eles tocassem esses riffs de forma rápida, o efeito era totalmente diferente daquilo que ouvimos no disco.

claire rousay
Fotografia: Taryn Ferro
Li uma entrevista tua onde disseste que tiveste de aprender guitarra para gravar o sentiment. Como te vês enquanto guitarrista agora?

Estou a melhorar [risos]. Não tocava nada bem quando comecei. Tive de aprender a tocar as canções do disco sem parar porque, para gravar o disco, gravei aos bocados e colei tudo depois. Mas para tocar ao vivo, tive de aprender a tocar guitarra suficientemente bem para conseguir tocar as malhas. Agora estou a aprender como as harmonias funcionam na guitarra. Eu estou habituada a tocar teclas e é muito mais fácil para mim ver harmonias em teclas do que em guitarra. Mas quando toco guitarra, posso brincar com as cordas e com as afinações para criar dissonância. É bué fixe. Ainda estou a aprender isso e hei-de chegar lá.

Como é que surgiu o sentiment? Do que li, demoraste alguns anos a fazer o álbum. Como é que estas canções evoluíram com o tempo?

Eu gosto bastante de escrever canções, mas tinha algum receio de as mostrar publicamente. Até porque, quando comecei a fazer música, não estava propriamente a fazer canções, não é? E não sabia se as minhas canções eram boas ou não. Tive de passar muito tempo a pensar se valia a pena partilhar ou não e a questionar se alguém ia sequer gostar disto. Por outro lado, estava obcecada com a tal cena de emo ambient ainda antes deste disco surgir. Acho que a junção disso tudo levou ao sentiment, mesmo que algumas das canções deste disco já tenham quatro ou cinco anos e outras tenham menos de um.

É curioso que o disco tenha demorado tanto tempo a ser feito porque o sentiment soa quase como se fosse um diário.

Ya. Acho que quando fiz o alinhamento do disco e vi como as canções se ligavam entre si apesar de terem sido feitas com tanto tempo de diferença… pensei: “Wow! Não mudei mesmo nada durante estes anos.” [Risos]

Qual foi a primeira e a última canção que escreveste para o álbum?

Tenho de ir ver, espera… [Vai pesquisar no computador] A primeira que fiz foi a “please 5 more minutes” e a última que fiz foi a “lover’s spit plays in the background”.

A “lover’s spit plays in the background” refere-se a uma canção [“Lover’s Spit”] do meu disco favorito de Broken Social Scene. Qual a tua relação com o You Forgot It In People?

Adoro esse disco e adoro todas as cenas de Broken Social Scene. Mas para ser honesta, acho que as minhas coisas favoritas são o material a solo do Kevin Drew, especialmente o Broken Social Scene Presents: Spirit If… A “Tbtf” é uma das minhas canções favoritas. E tive imensa sorte porque, por causa desta canção que fiz, nós entrámos em contacto e às vezes mando-lhe mensagem a perguntar como ele está e ele diz-me que se precisar de alguma [canção], é só dizer. É bué fixe! Fazer uma canção como a que fiz e a pessoa cuja música referenciei mandar-me mensagem a perguntar: “Hey, está tudo bem contigo?” [Risos]

Tiveste de treinar a tua capacidade de escrever canções para fazer o sentiment também?

Sim, e não foi só treinar a cena de conseguir escrever canções, mas também aprender como gravar e mixar uma canção com estrutura de canção pop. Por exemplo, eu sei tocar numa bateria real a batida para uma canção desse género, mas no computador é diferente. Esse tipo de coisas demorou bastante tempo a aprender e a fazer. Acho que pessoas que passam muito tempo a fazer música eletrónica dão por garantido que nunca vão ter de aprender essas coisas porque não precisam muito do elemento  acústico. Mas há muito espaço para fazer coisas com esses sons, mesmo que haja menos espaço para erros também. Quando gravas uma cena em acústico, tens de descobrir onde colocar o microfone e como equalizar algo. Acho que isso foi o que demorou mais tempo. Processar como comunicar o que estava a ouvir dentro da minha cabeça através dessas técnicas de gravação convencionais. Tipo com a guitarra. Primeiro tive de aprender a tocá-la e depois tive de aprender a gravá-la! Foi uma maluquice. [Risos]

Este não é o primeiro disco onde a tua voz surge, mas é certamente aquele em que ela mais se escuta, mesmo que ela esteja escondida por autotune. Isto está relacionado com estares mais confortável com conseguires comunicar aquilo que estás a sentir através do formato canção?

Acho que durante muito tempo tentei comunicar ideias básicas e emoções muito intensas através de ferramentas muito abstratas. Como tentar comunicar a sensação de coração partido através de improviso na bateria, por exemplo. É bastante difícil, percebes? Então, passei a achar que se fizesse música ambiente, poderia conseguir. Música ambiente triste [risos]. Depois tive a ideia de fazer música com autotune que podia ser triste – e com essa ideia, podia escrever canções. Porque é através da canção que as pessoas conseguem comunicar sentimentos. Acho que este disco foi a forma mais direta que encontrei para comunicar os meus sentimentos através da minha música. Mas perceber como o conseguia fazer demorou tempo, bastante tempo. Desde que acabei o álbum, comecei a trabalhar noutro imediatamente que é totalmente diferente. São canções longas e exuberantes com muita instrumentação que não está presente neste disco com canções. Mas também comecei a fazer outro disco que são só canções, por exemplo. Sinto-me sortuda porque tenho agora mais experiência a exprimir-me de formas diferentes e assim posso passar mais tempo a fazer música para me exprimir. Porque quanto mais aprendes a fazer uma coisa, mais tempo consegues passar a fazê-la. E eu gosto de fazer música.

Li na tua newsletter que tens cinco discos para sair nos próximos tempos. Como é que geres todo o teu arquivo? Gravas cenas que mais tarde voltas a utilizar? Ou fazes tudo no momento e é assim que sai um disco?

Ambos, para te ser honesta. Eu tenho um disco rígido cheio de coisas e de vez em quando vou lá buscar sons. Eu geralmente trabalho projeto a projeto. Há projetos que são encomendas e é trabalho muito específico porque precisa de ser feito à medida de alguém. Nesses, quando submeto, não volto a tocar nele porque sinto que o que está lá pertence só a esse projeto. Mas nas outras cenas que faço tento reutilizar as coisas ao máximo. Se alguém gravar um violino para mim, por exemplo, aquilo pode ir parar a várias canções e a soar de forma diferente se manipular com o Ableton. Acho que muito do que faço tem por base essa ideia de remix. Por exemplo, estou a preparar o espetáculo ao vivo para um desses discos que vai sair no próximo ano. E o disco são basicamente 10 faixas, cada uma com cerca de 6 minutos, e estou a construir um espetáculo que quero que seja 50 minutos exatos e seguidos de som. Então, estou a construir novas versões dessas canções para o espetáculo ao vivo para chegar a esse objetivo, e utilizo tudo o que está no disco.

Andas sempre com um gravador contigo?

Sim, vários. É bom ter diferentes opções [risos].

Qual é a coisa mais estranha que já gravaste?

Em 2023, depois de um concerto nos Estados Unidos, fui sozinha à procura de um bar onde pudesse fumar lá dentro e só encontrei um bar onde estava a acontecer uma noite gay de dubstep [risos]. Lembro-me de haver um homem com um butt plug em forma de rabo de raposa a dançar ao som de Skrillex e tive de gravar aquilo. Só se ouvia pessoas a gritar no áudio [risos]. Não utilizei isso num disco, mas utilizei durante um espetáculo ao vivo.

Existe alguma relação entre o sentiment e o a softer focus? Sinto que existe uma relação sonora entre ambos.

Acho que sim. Acho que o a softer focus é o mais próximo do sentiment que tinha feito até ao sentiment porque só tem duas faixas que são longas. Aquilo são mais ou menos canções, diria. E a “sycamore skylight” do sentiment foi feita na mesma altura em que fiz o a softer focus. Modifiquei-a com o tempo, sim, mas foi feita na mesma altura. Daí as semelhanças. Mas também há canções do sentiment que, como disse antes, foram feitas antes do a softer focus. Eu sinto que o a softer focus é a segunda parte de algo que comecei com o a heavenly touch. Sinto que o sentiment está relacionado com esse mundo, mas não é propriamente sucessão direta. Mas há outro disco que estou a terminar que sinto que vai ser o terceiro nessa sequência. E depois terminarei essa minha fase.

A trilogia da suavidade [the trilogy of softness].

Ya, totalmente! [Risos]

Sinto que esses teus discos construídos mais à base de colares sons uns aos outros funcionam quase como álbuns de fotografia. São formas de documentares a tua vida.

Na maioria das vezes, sim. São formas de eu documentar um momento específico e deixar as pessoas fazerem o que querem com ele. Sinto que nada do que faço está perfeito quando está terminado, mas sinto que o sentiment é o álbum com o qual estou mais satisfeita até ao momento. Sinto que com todos os outros discos mudaria algo, mas com este não. Acho que há discos onde continuar a adicionar coisas já não está a servir o disco. Não preciso que a música esteja perfeita ou terminada para a lançar, se isso fizer sentido.

Acho que isso é uma forma de pensar de “artista que lança música só no Bandcamp”.

Sim, porque eu não quero saber. Eu mando as coisas que faço às pessoas e as pessoas dizem “Sim, vamos lançar isso em vinil”, e eu fico só: “Ok, está aqui, façam o que quiserem com isto”. Se acho que não quero trabalhar mais em algo, não o faço.

Às vezes dou por mim a pensar demasiado naquilo que escrevo. Do género, termino um texto e fico a refinar coisas durante dias. Sinto que pode ser sempre melhor. Acho que é um mecanismo para lidar com a síndrome do impostor [risos].

Ya, isso também me acontece. É interessante porque há bocado disse que sinto que não mudei assim tanto desde que comecei a fazer o sentiment até agora, mas quando submetes algo que tem valor para ti como, no teu caso, textos, ou no meu, música, a partir do momento em que envias e sentes que está terminado, no segundo a seguir já és outra pessoa e já queres mudar o que mandaste. Acho que isso está ligado à síndrome do impostor que sentimos, mas também à cena de mudarmos. Estamos sempre a mudar. Nunca vais ficar para sempre a sentir o mesmo com alguma coisa. Não é assim que o mundo funciona. Por exemplo, eu antes era uma daquelas pessoas que quando recebia um email, respondia imediatamente. Agora, deixo-os acumular porque simplesmente não gosto de trocar emails. Deixa-me stressada. Mas isso também me leva a pensar que é bom porque não envio a minha reação imediata. É bom deixar ficar algo a marinar.

Eu às vezes demoro a responder a emails porque fico meio ansioso com o que dizer.

Sim, eu também. E às vezes há cenas que nesse email que não parecem reais até se concretizarem.

E há algumas que mesmo depois de se concretizarem não parecem reais!

Isso é verdade. Sinto que fazer uma tour é estar constantemente a questionar se é real porque nunca parece real.

Parece uma névoa?

Sim, ou um sonho. Sempre que volto de uma digressão, conto histórias e parece que estou a contar os meus sonhos às outras pessoas [risos]. Não parece real. Quando estou em tour, sinto-me invencível [risos]. É como se estivesse num sonho onde nada de mal pudesse acontecer porque não é real, mas é bastante real. A vida de toda a gente continua quando tu estás em tour. Ir em tour é do estilo, tu metes a tua vida em pausa e podes ir fazer o que quiseres. E quando voltas, o mundo está diferente.

Em 2021, disseste numa entrevista que começaste a documentar tudo com sons porque não conseguias escrever o que sentias. Recentemente, começaste uma newsletter no Substack onde estás a partilhar o que sentes através da escrita. Sentes que a tua relação com a forma de documentares coisas alterou-se nestes últimos anos?

Definitivamente. Acho que é por causa disso que fiz o sentiment, que é um disco onde escrevi muito mais do que antes e há menos elementos de gravação e observação. Eu sou um bocado uma pessoa de tudo ou nada. Dedico-me a algo até encontrar a próxima coisa onde me vou focar e faço isso a toda a hora. Acho que criar esse Substack e, ao mesmo tempo, ter criado uma subscrição de Bandcamp, é a minha forma de tentar conciliar tudo. Continuo a gostar de gravar e fazer coisas com gravações, até porque é quando me sinto mais ligada à minha parte criativa – é quando estou a gravar sons. Portanto, cenas desse género são uma forma de tentar ligar-me a mim mesma de outra forma. Além disso, é uma forma que encontrei para tentar passar menos tempo nas redes sociais. Eu odeio tanto redes sociais. Eu sei que o Substack é basicamente outra rede social, mas-

Acho que há muitas pessoas a sentirem um dilema com a sua presença nas redes sociais. Eu há dias que quero muito simplesmente abandonar as redes, mas por causa deste trabalho de escrita, sinto que se saísse ninguém ia ler o que escrevo. Mas consigo sentir que as redes estão a morrer como as conhecemos.

Estão totalmente e não sei se estão particularmente a serem substituídas porque as pessoas estão a passar mais tempo a olhar para ecrãs do que nunca. Mesmo se não estiveres a scrollar nas redes sociais, estás a olhar para um ecrã. A fazer o quê?! É difícil. Acho que, na nossa área, é muito complicado deixarmos as redes sociais. Eu odeio que o meu nome apareça com números ao lado porque depois tens pessoas que definem o teu valor a partir desses números. Essa é uma das razões pelas quais deixei de usar Spotify. Aquilo diz-te quantas pessoas estão a ouvir a tua música e como eu não tenho assim tantas pessoas a ouvir-me nessas plataformas, sinto-me mal comigo própria. E mesmo no mundo real. Quando encontras alguém que tem bué seguidores, rapidamente começas a tratar a pessoa de maneira diferente. E porquê? Uma vez estava num jantar onde me estava a dar bastante bem com uma pessoa, e quando fomos trocar redes sociais, vi que a pessoa tinha meio milhão de seguidores e fiquei nervosa o resto da noite porque senti que ela importava mais do que eu. Mas não importa! Estávamos a divertir-nos bastante antes disso – portanto, o que mudou?

A perceção. Por exemplo, sinto que há muito booking hoje de concertos que acontece através de quantos ouvintes tens no Spotify. Sinto que isso passou a acontecer mais depois da pandemia. Lembro-me de para aí em 2021 ou 2022 de ver o cartaz de um concerto dos Joyce Manor em que os Surf Curse iam abrir para eles – e os Surf Curse tinham muitos mais ouvintes que os Joyce Manor porque tinham tido um hit no TikTok. Hoje se calhar já seria ao contrário, mesmo que os Joyce Manor tenham uma comunidade de ouvintes mais ativa.

É muito estranho o quanto significam os números do Spotify para algumas pessoas e o quão pouco significam para outras. Não sei. Acho que há muitas pessoas que estão desligadas do que é a arte de fazer música que querem muito saber desses números e nunca vão ver concertos. Eu conheço pessoas que nunca deram um concerto e tiveram canções a ficarem virais no TikTok e de repente, passaram a sentir que tinham de aprender música porque iam ter de ir tocar ao vivo. E não precisa de ser assim. Por exemplo, quando fazes esse tipo de booking como o caso desse concerto de Joyce Manor, se calhar não sabes se as pessoas se vão dar, percebes? Não sei se era o caso, obviamente. Porque a comunidade importa. Não podes deduzir que duas cenas vão funcionar a fazerem tour só por causa do número de plays. Isso é uma maluquice. Não pode girar tudo em torno dos números de Spotify.

Falaste ao longo dos anos sobre a tua relação com a religião e que, desde que a  deixaste para trás, não conseguiste preencher esse vazio. Achei interessante porque tenho pensado muito nisso. Houve uma altura da minha vida em que deixei a religião totalmente para trás, mas nos últimos tempos tenho estado numa espécie de crise espiritual porque sinto que é muito complicado arranjar algo para acreditar. Acho que não sou o único a passar por isso. Como vês a tua relação com a fé hoje em dia?

É difícil de explicar porque sinto que nunca chegou a um ponto em que eu não quisesse acreditar em nada. Ou seja, sempre quis acreditar que existia algo, mas quando comecei a escavar a cena da fé, comecei a pensar que, afinal, não era real e não existia nada. Mas há um certo conforto em acreditar. No cristianismo evangélico em particular, há a cena de se ter uma ligação única e espiritual, muito de um para um, com um poder maior, seja esse poder Deus ou Jesus. Nada mais importa. É como uma relação e não tanto religião organizada. E era fixe! Porque eu sentia que havia alguém a olhar por mim e a proteger-me. Mas depois pensei: se calhar isto não é assim tão fixe, e comecei a sentir-me sozinha. Quando passas a tua vida condicionada a acreditar em algo e esse algo é que existe alguém a proteger-te e apercebes-te que isso talvez não seja verdade, sentes-te mesmo isolado. E acho que ainda sinto isso. Também estou a passar por uma crise espiritual agora e estou a tentar mudar coisas na minha vida para tentar encontrar uma figura de poder maior em que acreditar porque ainda sinto esse vazio. A música consegue preencher grande parte desse vazio, mas não é o mesmo. Sinto também que passamos por essas fases onde sentimos grande orgulho em sermos agnósticos ou ateus e onde sentes que não precisas de religião, mas anos mais tarde sentes que precisas de ter algo em que acreditar. Precisas dessa positividade e conforto. É muito complicado, ao olhar para o mundo de hoje, encontrar um lugar de conforto. Tens de encontrar as pessoas certas para servirem de conforto no caso de não conseguires mesmo acreditar numa cena maior que tu ou conseguires ter essa conexão espiritual com algo.

O sentiment foi lançado pela Thrill Jockey, editora seminal de Chicago. Como é que nasceu essa relação?

A Bettina Richards, que começou e gere a editora, mandou-me um email a dizer que se algum dia quisesse lançar algo pela Thrill Jockey, estaria interessada. Então, mandei-lhe o sentiment e disse-lhe que o disco soava assim e se eles estavam ok com isso. E ela disse que sim. Foi muito simples [risos]. Sempre fui fã das cenas da Thrill Jockey e de como a editora é gerida. Ela vai fazer isto a vida toda e eu gosto de trabalhar com pessoas que querem fazer o que estão a fazer para sempre.

Numa entrevista de 2020 com a Tone Glow, disseste que toda a gente só precisa de uma mão para as agarrar. Tens a esperança de que as pessoas que escutem o sentiment encontrem essa mão para agarrar no álbum?

Espero que sim, mas compreendo totalmente se não acontecer. Há muitas coisas no disco com as quais acho que as pessoas não se vão relacionar tão facilmente, principalmente a nível estético. Mas espero que as pessoas gostem da música, espero que seja possível, sim. Espero que ao menos as pessoas que venham ver ao vivo, mesmo que não gostem, achem que sou simpática [risos]. Isso já seria o suficiente.

Claire Rousay apresenta sentiment em Braga no festival FENDA a 24 de novembro no Auditório São Frutuoso. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.

Fotografia de destaque: Zoe Donahoe e Adam Sputh

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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