A procura por uma identidade própria é matreira. Muitas vezes, somos deixados à deriva ao tentar responder a perguntas absurdas como “Quem sou?” ou “Quem somos?”.
No caso de uma banda, ambos os questionamentos estão interligados. À medida que cada elemento vai crescendo e descobrindo-se, a cena muta-se. Altera-se. Evolui. De repente, a maneira como a coisa (leia-se: música) surge deixa de ocorrer como antes. Talvez até a sonoridade se altere.
Este existencialismo e a busca por descobrirem quem são é o que, ao longo da última década, tem movido os Cave Story – Gonçalo Formiga, Bia Diniz (aka April Marmara), Ricardo Mendes e José Sousa (aka Zé Maldito). Em West (2016), o seu longa-duração de estreia, cantavam sobre como era fazer música enquanto putos da linha do Oeste. Em Punk Academics (2018), tomaram como objeto de exploração um vasto leque de influências punk, hardcore e DIY (do it yourself).
Agora, ao terceiro disco, intitulado Wide Wall, Tree Tall e editado esta sexta-feira (31), os Cave Story olham na direção de afirmarem (ou melhor, de relembrarem) que (já) não são apenas mais uma banda de rock das Caldas da Rainha e que (já) não são apenas putos a fazerem rock a partir de uma “pequena casa no Oeste”. É da procura por afirmações, reflexões e dimensões que surge Wide Wall, Tree Tall, um disco que não esquece a aura punk e de música de guitarra dos seus predecessores enquanto bebe das explorações expansivas e texturais reveladas no curta-duração natalício The Town, lançado em 2021.
Para sabermos mais sobre Wide Wall, Tree Tall – que será apresentado ao vivo dia 18 de maio no B.Leza, em Lisboa – e para refletir sobre o universo em torno desta década e picos de existência para os Cave Story, a Playback passou uma tarde de sábado a trocar uns quantos dedos de conversa com Gonçalo Formiga e Zé Maldito.
Bem, Cave Story. Veteranos da cena do indie rock português…?
[Gonçalo Formiga] No outro dia, o Gato Mariano também começou a entrevista a dizer: “Uma banda que sigo há dez anos”. E nós, “Eish, como é possível”…
[Zé Maldito] Não é dez, acho eu.
[Gonçalo] Ele é capaz de seguir há dez anos. É de 2013 que são as primeiras demos [Demos].
[Zé] É? Então também sigo há dez anos.
Começamos por falar das demos e de Cave Story existir há uma década… Eu tinha 14 anos nessa altura.
[Zé] Eu tinha… Estamos em que ano? 2023? Eu tenho 26, por isso tinha 16.
[Gonçalo] Eu tinha 21.
Eras quase da minha idade quando Cave Story começou.
[Gonçalo] Ya.
[Zé] ‘Tás a ver? Não é por começares tarde que vai correr bem! [Risos]
Acho que essa década de banda está um bocado espelhada neste vosso novo disco e, de certa forma, os vossos discos têm sempre um conceito por detrás. Em West, vocês cantavam sobre como era fazer música enquanto putos da linha do Oeste; em Punk Academics, tomaram como objeto de exploração as vossas influências; neste Wide Wall, Tree Tall, sinto que o tema passa por explorar como é o universo de ser músico ou criativo presentemente. Passa por aí o tema do disco?
[Gonçalo] Também, e em particular no primeiro single que lançamos, a “Sing Something For Us Now“. E acho que o resto, se não for isso, tem pelo menos a ver com a nossa posição numa série de referências e coisas que existem atualmente – quais são as expectativas, qual é a realidade para nós e para pessoas que estão agora a começar uma banda. Tudo isso são coisas em que pensamos muito, e pensamos nisso numa questão de perspetiva, de como o valor das coisas está muito associado ao teu contexto e à maneira como o fazes. Sinto que muita da música feita em Portugal, e muito do trabalho artístico, muitas vezes sofre de não haver uma verdadeira visibilidade desse contexto, de onde elas nasceram e foram criadas.
Estamos aqui a falar de, por exemplo, ninguém ir contar essa história ou estamos a falar mesmo de o artista não conseguir dar, ou ter visibilidade com aquilo que criou?
[Zé] Não sei se não tem a ver mais com… Nós estamos numa posição muito específica na Europa e no mundo e não existe uma história muito marcada daquilo que nós fazemos, deste contexto muito específico–
Neste caso, vocês Cave Story, ou…?
[Zé] Não, não–
De criativos portugueses?
[Zé] Sim, e música mais de margens, de alguma maneira. Claro que é comercial e vai passar nas rádios mais normais, mas da mesma maneira que nos acontece a nós, imagino que aconteça muito mais a gente de música muito mais exploratória, muito mais à parte dos circuitos comerciais. Mas não há uma história muito marcada de grandes sucessos de música que seja mais ou menos dirigível.
[Gonçalo] Acho que é isso e acho que tem a ver com aquilo que estava a dizer, das expectativas. Aqui [em Portugal], quando começas uma banda, tens a ideia de que queres ser como as bandas que ouves e não como as bandas onde depois te inseres. No nosso caso, durante uma década, em que vivemos sempre dentro do contexto português… Claro que gostávamos de tocar mais fora e de estar num contexto em que fosse mais possível sobrevivermos e fazermos isto mais a sério. Quando estava a falar de ser dentro do contexto nacional, é no sentido de, quando tu vês uma história de uma banda portuguesa a ser contada no estrangeiro, normalmente é sempre muito a partir de uma narrativa já muito, na minha opinião, gasta do que é que ser português – e se calhar ainda nem foi contada o suficiente para que sejam contadas outras, sabes?
Por exemplo, há uns tempos li uma entrevista já antiga do Panda Bear – acho que foi na Pitchfork – e eles [a Pitchfork] vieram cá e estiveram com ele, e as coisas que eles relatam do que estão a fazer são as coisas mais clichê de um turista. Claro que, no caso dele, faz sentido, porque ele é turista cá, apesar dele viver cá [em Lisboa], se calhar, há quase tantos anos como nós, mas mesmo assim, era aquela coisa de ouvir-se fado na rádio, comer peixe não sei onde, um pastel de nata… E eu estava a falar disso no outro dia com alguém. De repente, é difícil tu fazeres uma coisa e não teres que a justificar no contexto que existe, sabes? Por exemplo, os Glockenwise fizeram isso incrivelmente bem [no Gótico Português], criando uma analogia com a Rosa Ramalho. No entanto, há outras coisas que são feitas e, para nós, são uma tentativa de fazer isso e não são assim tão interessantes. Há coisas que não aprecio muito naquela portugalidade kitsch. Não sou muito fã.
[Zé] Exato. Acho que é uma coisa que daqui a relativamente pouco tempo ou se vai mutar, e vai passar alguma coisa que tenha alicerces mais reais, ou então vai desaparecer um bocado também. Mas imagino que não desapareça. Vai continuar a desenvolver-se.
No caso dos Glockenwise, acho que existe um paralelo interessante com os vossos discos. Primeiro, porque são duas bandas que vêm da margem – os Glockenwise de Barcelos, vocês das Caldas da Rainha –, e depois, ambos os discos soam “tristes”, de certa forma.
[Gonçalo] É engraçado pensares nesse paralelismo porque acho que nós, desde muito cedo – e se calhar foi por isso que também ficamos amigos muito cedo –, encontramos esses paralelismos na nossa maneira de ver as coisas. Acho que já falamos disso em outras entrevistas, da relação Barcelos-Porto e Lisboa-Caldas ser muito semelhante, na sensação de que tu nunca és realmente de Lisboa apesar de já vivermos cá há imenso tempo. O The Town, por exemplo, foi muito sobre isso. De repente, eu estava nas Caldas outra vez, a questionar o que está a acontecer com a minha vida? [risos] E acho que realmente há uma série de sentimentos e coisas muito partilhadas com os Glockenwise, e quando conversamos, sentimos essas afinidades. Por exemplo, o Nuno [Rodrigues], como Duquesa, tem o Norte Litoral e nós temos o West. Se calhar, existe uma relação entre o Wide Wall, Tree Tall e uma ideia de margem ou uma ideia do que significamos e de onde é que vimos, não é?
[Zé] E o nome do disco, é tipo: são não-medidas. Largo, alto, são sempre coisas muito relativas, não é? E a ideia é estarmos a fazer música, como estavas a falar, com contexto e expectativa. Claro que podemos ter o desejo de fazer as coisas com uma escala ou outra, tanto a nível profissional como de ideias, mas depois temos sempre a felicidade (ou infelicidade) do nosso contexto ser um bocado vazio. Então, não sabemos se Wide Wall, Tree Tall há de ser muito grande porque depende muito de onde é que se insere, percebes?
[Gonçalo] Nós falarmos destas questões em aberto também tem muito a ver com essa procura, de encontrar, num quadro de referências, onde nos inserimos. Apesar de termos uma relação forte de formação com a ideia da cidade das Caldas e com essa coisa de não estarmos num centro grande, ao mesmo tempo, e voltando àquilo que estava a dizer há bocado, de sentires que fazes parte de alguma coisa. Acho que existem muitos coletivos, por exemplo, em Lisboa, e nós nunca tivemos isso nas Caldas. Nós não temos uma Cafetra ou uma Cuca Monga, ou o que quer que seja nas Caldas, mas mesmo estando em Lisboa, nunca vamos fazer parte de nada disso. E isso reflete-se no que fazemos e na forma como o fazemos. Nós vamos sempre ser uma banda das Caldas onde quer que vamos.
[Zé] Mas vivemos todos em Lisboa há anos.
Vão ser sempre apresentados como “uma banda das Caldas”.
[Gonçalo] Sim, e isso é uma coisa que tu consegues partilhar em Portugal. Aí, vamos àquilo que dizia há pouco. Como é que tu transpões esse contexto para uma coisa global? É muito difícil. Claro que tens obviamente montes de bandas que faziam a mesma coisa noutros países, de subúrbios/cidade, etc. No entanto, não consegues explicar propriamente, a não ser que tenhas uma conversa com a pessoa e digas: “Ah, sou deste sítio…”–
[Zé] Há de ser o equivalente a alguém vir da Indonésia e explicar-te que é de uma terra não conhecida. Infelizmente, não conheço assim tantas [pessoas da Indonésia], e por isso não percebo qual é o contexto.
[Gonçalo] Claro que estamos a falar aqui de um contexto ocidental muito uniformizado. No entanto, existem muitas idiossincrasias em estar em Portugal a fazer o que tentamos fazer ou a expressar-nos da maneira que nos queremos expressar.
Quando falamos dessa questão, até do circuito português: vocês há dez anos, quando aparecem com as demos – e depois com o Spider Tracks –, gera-se hype, tanto que venceram o Vodafone Band Scout em 2014, se não me engano. Agora, dez anos depois, como veem o hype que se gerou em vosso redor?
[Gonçalo] Estamos gratos por todas as pessoas que se interessam pela nossa música, que nos querem ouvir, e queremos é chegar a mais pessoas. Não sei, mas se houve assim um bocadinho de hype muito inicial, foi ótimo para nós, porque sentimos que podíamos fazer mais. E tocamos imenso nesse ano. Os cachês eram sempre mínimos, mas tocamos 40 concertos em três ou quatro meses.
[Zé] Foi entre o Spider Tracks e o West. Lembro-me que havia uma foto do [Pedro] Zina [baixista anterior dos Cave Story] com uma folha A4 e tivemos de colar uma segunda folha A4 com as datas todas–
[Gonçalo] Porque não cabiam todas [risos]. E [tocar] era tudo o que queríamos. Isso deu-nos uma coisa que, a certa altura, estávamos a tocar mesmo bem [risos], porque estares sempre a tocar ajuda imenso a coisa.
[Zé] A certa altura nem ensaiávamos.
[Gonçalo] Exato, porque passavas de um concerto para outro. Mas, normalmente, ensaiávamos sempre pelo menos uma vez.
[Zé] Mas era mais aquela coisa de ver o que íamos tocar.
[Gonçalo] Isto se calhar não responde à tua pergunta, mas ainda no outro dia estava a falar sobre isso. Aliás, nós temos falado muito sobre essa ideia porque é algo que nos tem preocupado, a ideia de termos tocado tão menos do que tocávamos há três anos. Não diria que perdemos o à vontade, porque é daquelas coisas que é sempre igual de certa forma, mas perdes destreza. É como se fosses um atleta e estivesses impedido de competir.
[Zé] É completamente diferente estarmos a tocar lá no bairro (ou aqui [em Lisboa]) e depois estarmos a tocar numa tour.
[Gonçalo] Sim, e isso informa depois também a maneira como fazemos música. Se não tocamos e ensaiamos constantemente, as coisas vão surgir de forma diferente. Aliás, há uma coisa que eu sei, porque estudei isto uma vez. Todas as bandas, assim mais rock, que lançam uma primeira coisa e começam a tocar bastante, existe sempre um ímpeto inicial que, mais tarde ou mais cedo, vão lançar um single ou tocar uma música nova que é sempre a rasgar. Garanto.
Qual é a vossa? A “Richman“?
[Zé] Não, essa já era anterior ao Spider Tracks.
[Gonçalo] Acho que a nossa foi para aí a “Special Diners“, que saiu no Punk Academics, mas que já tocávamos no Spider Tracks. Mas ya, quando és uma banda nova e começas a tocar bastante, acaba por surgir uma música assim porque tu ficas com imensa pica de estar sempre a tocar. Tudo isso informa depois o que tu fazes e a maneira como tu o fazes. Este disco, se calhar, é muito mais calmo porque nós não estávamos numa situação de tocar com PAs altos todas as semanas, percebes? E não sei se é mais calmo. É diferente.
[Zé] Até agora, a forma como as coisas eram feitas, era tudo muito live. Este aqui foi mais construído.
[Gonçalo] Exato. Tem mais detalhe e algumas coisas são menos in your face.
Em 2018, contavam à Antena 3 que o Punk Academics tinha sido um disco feito de rajada comparativamente com o West. O Wide Wall, Tree Tall voltou então a ser algo mais pensado e trabalhado? O The Town também era um EP muito de detalhes…
[Zé] Se bem que o The Town foi feito de–
[Gonçalo] Rajada. Foi feito para aí numa semana.
Mas aquilo é caseiro.
[Zé] Sim. Nós estávamos os dois nas Caldas e ficámos a pensar que já estávamos há dois anos sem lançar nada. E eu ia ter com o Gonçalo ao nosso estúdio todos os dias de manhã, e houve um dia em que fizemos qualquer coisa, e depois à noite o Gonçalo mandou-me uma demo assim tocada no teclado só. Era sempre assim. No final do dia, o Gonçalo mandava-me o que tinha feito e uma ideia, e íamos fazendo, mas foi assim uma coisa super rápida, mas que depois ainda estivemos ali a mexer imenso.
[Gonçalo] O The Town, como é um EP, é muito mais fácil de ser consistente, pelo menos da maneira como nós trabalhamos. Acho que não consigo fazer um disco que seja tão consistente como um EP, entendes? Sinto que vamos dispersar mais tarde ou mais cedo. Depois acabamos por pegar nessa ideia, porque nós temos muitas mais músicas gravadas àquelas que estão no disco e tivemos de fazer uma seleção. E essa seleção foi de longe a parte mais difícil do disco, de ver o que cola e que não cola. Quando finalmente decidimos, fez sentido, de certa forma, com a ideia do título, de perspetiva, de dimensão, de cada música ter o seu próprio espaço e, ao mesmo tempo, terem uma coisa que as une, que, no fundo, é a nossa identidade e a nossa vontade de criar.
[Zé] Aliás, logo a seguir a fazermos uma pré-seleção das músicas, fomos gravar uma das faixas ao HAUS, e fomos para gravar uma música e gravamos cinco ou seis, porque ficamos com a pica de estarmos a fazer coisas. Nenhuma dessas [está no disco] – estão guardadas –, mas aquela coisa de estarmos ali, a pensar que se está a formar uma massa nova, dá uma perspetiva sobre aquilo que estamos a fazer. E isso é ótimo.
Quando é que começou a ser criado este disco? Foi a seguir ao The Town ou vinha de antes?
[Gonçalo] Já vinha de antes.
[Zé] As primeiras ideias ainda eram com o Zina.
[Gonçalo] As músicas mais antigas deste disco foram feitas para aí em 2020 e as mais recentes foram feitas para aí há um mês [risos], que foi quando entreguei o disco.
Neste disco, existe uma procura da identidade da banda, que é algo transversal à vossa obra, não é?
[Gonçalo] Não só procura. Acho que já tivemos mais procura e continuamos a ter porque vamos ser sempre humildes o suficiente para dizermos que não sabemos exatamente o que queremos. No entanto, neste disco, existe uma parte de necessidade e afirmação.
[Zé] Não diria tanto que é procurar o que havemos de ser, é mais chegar a termos com. É mais assumir que somos estas coisas todas.
[Gonçalo] Por exemplo, neste disco existem músicas que não sabemos exatamente ainda como as vamos tocar ao vivo. Não é que isso nos tenha impedido antes, mas desta vez, se calhar, não vamos mesmo conseguir tocar uma música porque, por exemplo, não me lembro como é o piano porque eu não toco piano e toquei naquele dia porque me estava a sair e agora não me lembro, percebes? [risos] Esse tipo de coisas.
[Zé] Mas é um novo desafio, tentar encontrar uma tradução daquilo para nós os quatro.
[Gonçalo] E agora esqueci-me do início da questão. [Risos]
[Zé] Tinha a haver com se o disco era sobre procura–
[Gonçalo] Exato, sim. Tem uma procura, mas sinto que tem uma ligeira afirmação necessária, principalmente nesta fase de voltarmos a tocar e de nos sentirmos aquilo que somos, não é? Acho que o dano maior de parares de tocar e editares música é que, de repente, não sabes quem és ou o que estás a fazer.
[Zé] É assim, nós também mudamos bastante. O Zina–
Estava lá desde o início praticamente.
[Zé] Sim, e mudou. Agora está a Bia [Diniz] e eles são pessoas diferentes. É uma formação diferente.
[Gonçalo] Sim, e o método de criação deste disco foi diferente.
Em que sentido é que mudou?
[Zé] Acho que, em primeiro lugar, somos todos pessoas diferentes e crescemos todos, de alguma maneira–
Desde o último disco ou de forma geral?
[Zé] No geral, desde sempre, mas principalmente como passou tanto tempo [desde o último disco]–
E houve uma pandemia pelo meio.
[Gonçalo] Houve muito tempo para refletir, para perder muito tempo com perguntas completamente absurdas [risos] e pôr as coisas em perspetiva [risos] – não queria nada dizer isto [risos]. Mas mesmo a parte mais de criação, o que mudou foi que tivemos de fazer como podíamos. Ou seja, se me surgisse uma linha de alguma coisa, tinha de pedir ao Ricardo para vir gravar uma bateria ou pedir ao Zé para ir buscar uma chapa ao Leroy Merlin para termos aqui um som no final desta música–
Isso foi utilizado em que música? Ficou gravado?
[Gonçalo] Na “Absolute Best”.
[Zé] Está lá no final. Aliás, a chapa não era para aí. A chapa era para a “Clean Summer Clothes”, mas depois não apareceu.
[Gonçalo] Ficava demasiado.
[Zé] No início estava fixe, mas com o resto, ya. Basicamente, havia uma música em que o refrão era uma chapa.
[Gonçalo] Mas depois desistimos dessa ideia. Mas ya, foi diferente nesse sentido. Não foi tanto de estar na sala e irmos gravar e fazer overdubs, foi mais de estarmos a construir a música por partes. Um bocado mais puzzle, um bocadinho menos seguido. Muito diferente do Punk Academics nesse sentido.
[Zé] Eu só estive presente no Punk Academics na composição e foi uma experiência completamente diferente. No Punk Academics, era estar às 11h no estúdio e ficar lá até às 20h, todos os dias. E faziam-se coisas. Enquanto estávamos a fazer, estávamos a gravar.
[Gonçalo] Há músicas que se não foram o primeiro take, e quando eu digo primeiro take, não era a música estar feita e depois ser gravada. Não. A música era feita e era gravada logo. Isto no Punk Academics. Neste, não.
Sim, este é um puzzle. Sinto que, neste disco, vai-vos ser apontado que este é o vosso registo mais synth heavy, independentemente dos sintetizadores terem sido sempre algo essencial da vossa sonoridade. A “Martin Stellar”, que é uma das Demos, é muito mais New Order que pós-punk, por exemplo.
[Gonçalo] Muito bem visto. É engraçado porque eu já conseguia prever, quando lançamos as primeiras coisas, que eventualmente um dia íamos por uns teclados e ia surgir essa questão de agora “ter mais synths“. Não, nós sempre usamos sons o mais interessantes possível, seja com sintetizadores, seja com outras coisas. Quer dizer, nós temos violas e pianos em todos os discos desde o Spider Tracks. Numa música ou outra, surgem. Às vezes, se calhar na mistura, podemos puxar um bocadinho mais para cima ou meter mais no background, mas sempre gostei muito de textura e de produzir as músicas assim.
[Zé] Mas uma coisa que me lembro desde que te conheci basicamente era de falarmos dos Swell Maps e de como o piano deles tinha aquele som numa banda super de música de guitarra. Aqueles pianos soam a uma sala gigante. Não no sentido de ser um auditório, mas o espaço que ocupa quando ouves. É tudo bué expansivo. E é uma coisa que sempre soube que era um objeto de interesse.
[Gonçalo] Sempre foi – e como digo isto sem ser foleiro? – uma coisa que usamos.
[Zé] E sempre foi um ponto de referência.
[Gonçalo] Sim, sempre foi uma referência ou uma opção estética, completamente roubado aos Swell Maps a ideia de teres um piano gravado para fita super distorcido com reverb. Depois, a viola, obviamente. As Raincoats, os Velvet Underground, aquela ideia de teres uma viola a fazer um drone por trás de uma guitarra também é uma coisa que sempre quis. No Spider Tracks, o meu colega de casa tocava violino, gravou. No Punk Academics, pedi uma viola emprestada a uma amiga. Agora, comprei uma viola [risos], e finalmente já a posso tocar.
[Zé] Na verdade, muitas mais músicas deste disco tinham viola. Quase sempre era: “E se puséssemos aqui uma viola?” [Risos]
[Gonçalo] Sim, tentamos sempre meter viola em todo o lado. E o The Town também tem viola em quase todo o lado.
Há pouco estávamos a falar sobre este disco ser “triste”–
[Gonçalo] Quote tua! [Risos]
Sim, minha [risos]! Mas apesar disso, tem a questão do humor, que foi sempre algo muito presente na vossa música. Onde está a linha neste álbum entre o que é sátira e aquilo que vocês realmente sentem?
[Zé] [Risos] Ótima questão. Nós nunca falamos sobre isto, e eu não sei qual é a opinião do Gonçalo, mas acho que isso é um dos pontos do disco. Onde é que está a linha entre estarmos a brincar e isto ser muito sério e triste? Acho que isso é, e não vou falar em termos de letra, porque aí tem de ser o Gonçalo, em termos do a que é que isto soa, no geral. Passa por aí.
[Gonçalo] É assim, tu podes falar de letra porque tu és a primeira pessoa a quem eu mando as letras–
[Zé] Sim, mas em termos de onde vem. Em termos do que eu leio e sinto, é isso que tiro. Há muitas alturas em que isto é sério, e sério no sentido em que nos implica de uma maneira muito real, e não sério no sentido de que não se pode brincar, é 100% isto e não há margem para dúvida. É sério no sentido em que nos afeta e é sobre a nossa vida de uma maneira muito real.
[Gonçalo] Acho que estás a explicar muito bem a ideia. É sério no sentido em que nos afeta e que levamos muito a sério o que queremos fazer, mas…. [compasso para pensar] Lá está, é precisamente essa a questão. A linha não é muito visível. Acho que as coisas estão num lugar intermédio aí. As coisas são sérias, mas nós só conseguimos dizer essas coisas sérias com algum humor. Por exemplo, a “Sing Something For Us Now” e o “go to hell”. Eu não mando ninguém para lado nenhum, entendes? Eu respeito 100% todas as perspetivas que as pessoas possam ter sobre o que eu faço. No entanto, para mim, é muito sério identificar-me como músico, porque para mim, é muito importante a todos os níveis. A nível pessoal, a nível emocional, da minha carreira, daquilo que quero fazer. Por isso, a linha está aí, acho. É uma coisa muito séria, mas vou dizê-lo com humor e sátira.
[Zé] Até porque a ideia não é que isto é sério. É mais que, para nós, isto é muito verdadeiro. É uma tradução literal do que é a nossa vida. É muito sério estarmos a fazer isto e queremos que isto seja a nossa vida. Acho que é um bocado por aí.
[Gonçalo] Acho que tenho uma resposta e desculpa se for muito vaga. Acho que a maioria dos artistas que gostamos, só gostamos se os conseguirmos imaginar a fazer sopa.
Algum tipo específico de sopa ou só sopa no geral?
[Gonçalo] Imagina, por exemplo, o Jonathan Richman. Eu consigo imaginá-lo a fazer uma sopa. Basicamente, não sou muito fã de coisas em que não consigo imaginar a pessoa a fazer uma sopa. Acho que é aí onde está a linha entre seriedade e humor.
Eu consigo-vos imaginar a fazer uma sopa.
[Gonçalo] There you go. Grande banda. [Risos]
Excelente teoria. Mas olhem: o humor neste disco lembra-me ligeiramente Dry Cleaning. E há duas faixas que até instrumentalmente me lembram Dry Cleaning, a “Clean Summer Clothes” e a “Absolute Best”.
[Gonçalo] Nós sabíamos que este momento ia chegar [risos], porque é uma daquelas bandas que gostamos bastante desde o início, apesar de eu só ter prestado mais atenção ao primeiro álbum [New Long Leg]. Mas é daquelas coisas que é inevitável e é uma questão de contexto, porque se estivéssemos noutro sítio, se calhar alguém podia comparar os Dry Cleaning connosco, estás a ver? Porque nós temos dez anos e os Dry Cleaning não [risos].
Sim, dessa perspetiva… Vocês tinham músicas que soavam a Dry Cleaning no primeiro disco.
[Gonçalo] Sim [risos]. E nós gostamos imenso.
[Zé] E é uma boa referência.
[Gonçalo] A postura dela [Florence Shaw, vocalista dos Dry Cleaning] e tudo mais, é uma banda que admiro bastante. Mas lá está, é difícil estar nesta situação, mas vai sempre acontecer e tem a ver com aquilo que falamos no início, com o nunca conseguires sair deste contexto [português]. Os melhores comentários que nós temos, quando as pessoas dizem bem de alguma coisa, é: “Que fixe, gostei imenso. Nem parecia português”. E eu fico: como assim? O que é que isso quer dizer? E isso acontece muito. Vais ver as caixas de comentários e não somos só nós.
Sim, é algo comum… Pode ser consequência da desvalorização da criação musical portuguesa?
[Zé] Não acho que seja uma coisa de desvalorização. É mais as pessoas terem uma ideia feita sobre o que é [a música portuguesa]. E se essa ideia não é boa o suficiente, é normal que as pessoas deixem esses comentários, até porque muitas vezes não ouvem coisas suficientes. Mas há uma razão para isso, que é: não há disseminação suficiente de música [portuguesa].
Bem, estamos agora novamente a discutir quotas de música portuguesa na rádio…
[Zé] Não sei, não ouço rádio. [Risos]
[Gonçalo] Mas vai sempre acontecer essas referências. Já fomos comparados aos The Fall, já fomos comparados aos Parquet Courts. Alguém vai sempre encontrar alguma coisa.
Estamos aqui a falar de bandas anglo-saxónicas… Se tivessem de comparar a vossa música a uma banda portuguesa, quem é que colocavam como referência?
[Zé] Pessoalmente, para mim, isso é uma das minhas maiores dificuldades no meu trabalho, enquanto pintor, e em Cave Story. É como o Gonçalo estava a dizer. Nós não fazemos parte de uma coisa, para o bem e para o mal, e eu não consigo muitas vezes pensar [em algo que seja semelhante]. Claro que há bandas com quem já tocámos e que faz todo o sentido, mas não é uma coisa que se tivéssemos de comparar… Ao nível de trabalho, e se calhar de percurso ou fluxo de ideias ao longo do tempo, se calhar Glockenwise é uma boa–
[Gonçalo] Mesmo assim, acho que temos linguagens muito diferentes.
Sim, neste momento estão em linguagens um bocadinho diferentes [risos].
[Gonçalo] Literalmente línguas diferentes [risos]. Nós temos afinidade com muitos artistas e com muitas pessoas com quem trabalhamos, seja enquanto banda, seja outros tipos de trabalhos. Mas lá está, identificarmos especificamente a nossa música com o que outras pessoas fazem, não há nada muito direto. Acho que nos sentimos bem em muitos line-ups, mas não quer dizer que estejamos… Não te sei responder, sinceramente. O que é que tu achas?
Isso também é complicado para mim, honestamente! Acho que era interessante entender o que vem antes de vocês na linha do “indie rock português”, e acho que há ali gaps, especialmente em meados dos anos 2000. Há a Bee Keeper nos anos 90, e depois há um gap até à Flor Caveira que aparenta estar um bocadinho mal definido ao nível de informação disponível. Por exemplo, nas Caldas, o que havia antes de vocês nesta linha?
[Gonçalo] Olha, as Caldas tinham uma cena. A melhor pessoa para falar contigo sobre isso é o Manuel Simões, porque ele é das pessoas que mais junta todos os flyers, zines, cassetes. E havia realmente uma cena nas Caldas. Se calhar, a banda mais célebre são os Tina And The Top Ten, a banda do João Paulo Feliciano. Mas, curiosamente, nós só descobrimos depois. Eu tinha uma banda antes de Cave Story e o Manel veio falar comigo para tocarmos num evento da A062. Eu não sabia o que era a A062 – era uma associação que existia nos anos 90 nas Caldas, e quando falamos de 90, é ali 90s, 2000, 2001, 2002, por aí. Depois, a partir de 2003, há um gap até 2010, quando começam a surgir outras coisas – e não sei exatamente o que aconteceu nessa altura, realmente. Mas antes havia essas bandas, que não estão muito estudadas.
Os dois discos que vocês lançaram contaram com edição da Lovers & Lollypops. Este novo vai sair por uma editora ou vai ser auto-editado?
[Gonçalo] Edição de autor. Somos nós.
Mais um paralelo com os Glockenwise, então [risos].
[Zé] Pois é. Mas estas coisas são mesmo cósmicas. Eu lembro-me que fechámos a data de lançamento e a cena toda de como ia ser, e no próprio dia em que estávamos a fazer isso, eles anunciaram a “Vida Vã” e o disco com edição de autor. E é tipo, como é possível estas coisas alinharem-se todas? Não sei, é fixe.
Em 2016, contaram à Antena 3 que curtiam gravar mais bandas, editar, de ajudar o ecossistema dessa forma. O Gonçalo, por exemplo, foi fazendo isso ao longo do tempo. Abre-se espaço para isso outra vez no futuro?
[Gonçalo] Eu já tinha uma editora que co-editou com a Lovers todos os nossos discos, que era a Hatsize – e editamos também um EP e um single de Veenho, um split do Zé com o Primeira Dama e do Zé com o Vicente [Mateus] ao vivo na Casa Bernardo. E sim, eu continuo muito interessado em produzir bandas e fazer parte dessa comunidade e ajudar a criá-la com as pessoas que quiserem trabalhar connosco. Agora vamos fazer isto na edição de autor mais para nós e não estamos, se calhar, com tanta capacidade para meter outras coisas cá fora, mas eventualmente é uma coisa que tinha imenso gosto em fazer, uma curadoria com várias coisas e ter um cantinho em que pudéssemos criar coisas e partilhá-las, como o Manel [Simões] criou a Ticket to Ride e editou a cassete do The Town. A ideia dele é também zines, livros de fotografia, de criar coisas um bocadinho reais, para não viver tudo só no digital. Isso não tem problema nenhum, e isto não é uma questão existencial. É só mesmo uma questão de termos gosto nessas coisas, acho eu. Acho que partilhamos isso.
[Zé] Aliás, temos tanto gosto na cena digital como na física. Por isso mesmo não queremos que seja só digital.
[Gonçalo] Mas acho que são formatos diferentes. O que tu podes fazer para um formato digital ser interessante não é o mesmo para um formato físico. Por exemplo, a capa do disco. Assim que tu imprimiste num tamanho de capa de vinil, fiquei “wow”. Quando ficou em grande, aquilo parece que ganhou outra dimensão [risos] – peço desculpa.
Esta parte lembra-me a conversa que tive com os Hetta para o Bandcamp Daily, em que falámos sobre essa questão de dinamizar a cena, de como trazer malta nova para a coisa. Claro que aí estávamos a falar de hardcore, screamo, etc., mas acho que esta nossa conversa vai nessa direção, aplicada ao universo do indie. Como conseguimos dinamizar a cena para o futuro, para haver mais zines, mais pessoas novas?
[Gonçalo] Numa perspetiva mais de panorama social e um bocado político, acho que todas estas cenas que podemos criar, sejam essas pequenas edições, essa partilha direta, essas comunidades, tudo isso faz parte daquilo que nós fazemos como uma alternativa ao mundo em que vivemos, sendo que o mundo em que vivemos é obviamente o neoliberalismo/capitalismo [risos]. E essa alternativa é, no fundo, criar coisas, fazer arte, e conseguires imaginar um mundo além do capitalismo. Isso é o primeiro passo. É fazeres alguma coisa e motivares alguém–
[Zé] É criares um tecido cultural que te apoie e que apoie outras pessoas que possam [criar], no sentido de haver circuitos e coisas a acontecer onde essas pessoas possam ir, ver e inserir-se, para que essas cenas existam e não tenhas de ir para fora. Por isso, temos de o fazer.
[Gonçalo] Nós queremos vender discos, queremos vender bilhetes para concertos, e queremos sobreviver e queremos comer, e queremos isso tudo, mas é um prazer tão grande quando alguém nos diz “A tua banda inspirou a minha” ou “Senti-me inspirado a fazer uma banda por causa de vocês”. Pá, é mesmo muito, muito bom. Sempre que alguém me dizer uma coisa dessas, e felizmente já aconteceu, vou levar comigo no coração para sempre. É mesmo gratificante. Metade do que faço é porque quero fazer e quero-me expressar a mim próprio e a outra metade é porque gostava que toda a gente se pudesse expressar como eu me quero expressar, da forma mais genuína, sem compromisso e sem artifícios. Por isso, um dos grandes objetivos é mesmo que alguém se sinta inspirado a expressar, de alguma forma.
[Zé] Isso é tipo O bónus.
Não foi muito diferente a vossa resposta daquilo que os Hetta disseram sobre o assunto [risos].
[Gonçalo] Acho que quando falas com bandas que vivem de uma comunidade e que querem fazer parte de alguma coisa é inevitável que digam isso. Acho que é quando é um artista um bocadinho maior que pode estar um bocadinho mais self-centered por alguma razão, pode esquecer essa parte, porque se calhar já não é esse o propósito.
Vão apresentar o disco no B.Leza, em Lisboa, no próximo dia 18 de maio. Como vai ser equilibrar a balança entre os temas deste novo disco e os temas dos vossos registos anteriores?
[Gonçalo] É assim: à data desta entrevista, ainda não temos totalmente preparado o set, mas a nossa ideia é ter um equilíbrio entre um bocado de tudo, porque temos muitas saudades de tocar. Vamos querer revisitar algum repertório e vamos equilibrar isso com o novo disco, porque continuamos a gostar de ter outras músicas no repertório que não apenas o disco novo. Sempre fizemos assim. Nunca tocamos só o disco novo.
[Zé] Até porque o disco novo abre novas perspetivas sobre como se podem fazer coisas.
[Gonçalo] Sim, podes acabar a tocar as músicas anteriores de uma forma um bocadinho diferente. Por exemplo, agora temos duas guitarras. Nós nunca tivemos duas guitarras até agora para apresentar um disco, por isso, pode ser interessante.
Sempre foram uma banda que tocou bué ao vivo. Depois desse concerto em Lisboa, espera-se um ano na estrada para os Cave Story?
[Gonçalo] Eu espero. É um desejo muito grande.
[Zé] Sim, e é uma coisa que está a ser feita, está a ser trabalhada. Mas se quiserem marcar mais [concertos]… [risos] tenho todos os fim de semana livres! Mas sim, é um grande desejo. Da minha parte, quero mesmo bué tocar também.
Podes adquirir bilhetes para a apresentação de Wide Wall, Tree Tall no B.Leza, em Lisboa aqui.
Fotografia de destaque: Martim Teixeira