Transformar emoções em música de uma forma delicadamente suave e visceral é uma das características que mais define Bia Maria. Nascida e criada em Ourém, lançou recentemente o seu primeiro álbum, Qualquer Um Pode Cantar, marcando uma nova etapa na sua carreira musical após três EPs: Mal Me Queres, Bem Te Quero, Tradição (um conjunto de temas tradicionais interpretados pela própria) e do Roberto.
Mais do que uma celebração da música enquanto forma de expressão, este disco é um manifesto de empatia e inclusão que tanto traduz inquietações pessoais como de uma geração em busca do seu lugar no mundo. Com um conjunto de canções confessionais e universais, Bia Maria reforça que a arte é um espaço aberto a todos, sem barreiras ou pretensões, e faz um convite para que qualquer um se permita cantar e expressar a sua verdade. É desta forma que reafirma a sua presença no atual panorama musical português.
A Playback esteve à conversa com Bia Maria que nos deu a conhecer melhor o universo deste Qualquer Um Pode Cantar, com tempo ainda para falar sobre como é ser mulher no mundo artístico.
Qualquer Um Pode Cantar é um título que sugere democratização, que qualquer pessoa pode ter uma voz. Como é que surgiu?
Em primeiro lugar, porque está presente no meu dia a dia – dou aulas e tento sempre transmitir isso às crianças, tanto num lado mais, lá está, político e interventivo de “vocês têm todos uma voz, podem e devem todos usá-la ainda que com cuidado e atenção”, como num lado mais pedagógico, no sentido de “todos podem e devem cantar, devem sentir que conseguem cantar, não têm de cantar todos da mesma forma, podem ter identidades diferentes enquanto cantam, podem desafinar que está tudo bem, e isso não tem de vos impedir de continuar a tentar”.
Para ti, o que significa “cantar” no sentido mais íntimo da palavra? É uma forma de expressão individual? De união com os outros? De liberdade?
Inconscientemente, acho que começou por ser uma forma de expressão individual, uma forma de desabafo interior. Entretanto, comecei a cantar num coro e percebi que também havia uma espécie de energia transformadora que unia as pessoas. Depois voltei outra vez à minha ideia inicial de quando era mais nova, de que poder cantar e expressar aquilo que sinto, por vezes, era uma forma de fugir ao mundo, de tentar encontrar ali um conforto ou um sítio seguro.
Na sociedade, existe uma tendência de colocar a música (e a arte em geral) num pedestal, como algo que só alguns podem e/ou conseguem fazer. Parece-me que com este disco também pretendes contribuir para desconstruir essa ideia.
Sim, tento ir contra esse elitismo que, por vezes, ainda existe, e tento olhar também para a questão da descentralização. Com isto, quero dizer que a ideia natural é que todos nos vamos fixar ou em Lisboa ou no Porto, porque são as grandes metrópoles, são as cidades onde tudo acontece, e faz sentido. Só que, efetivamente, quando começamos a percorrer o país, a conhecer outras pessoas e outros artistas, começamos também a entender que eles não estão só fixos nestas grandes cidades. Há artistas espalhados por todo o lado e acho muito importante olhar para o país e para a arte dessa forma – perceber que existe um circuito e que, lá está, não temos todos de escrever da mesma maneira, de dizer as coisas da mesma maneira, de ter a mesma linguagem. Devemos abrir os olhos para isso, pelo menos.
Sentes que existe um fio condutor que liga todas as canções do disco, seja temático, sonoro ou emocional? Ou foi mais uma coleção de momentos isolados que, por acaso, acabaram por se unir?
Na verdade, tive esse problema – não consegui lançar disco até ter um conjunto de canções que dissesse “ok, isto é qualquer coisa”. A nível de letra/temática, as canções estão mais ou menos dentro da mesma coisa, mas vão passando por temas diferentes, mas depois a nível sonoro há qualquer coisa que tem de as conectar. Ou seja, tem que haver uma linguagem própria em todas elas que as una. Tive muitas oportunidades de lançar pelo menos um disco antes deste, mas não estava contente, não achava que o outro tinha essa identidade que era precisa, então tive de trabalhar até chegar ao resultado que queria.
Quando começaste a escrever as primeiras canções do disco?
Escrevi a primeira canção do disco em 2020 e foi a “Lenço de Papel”. Depois surgiu a “Roupa Velha” que começou como um poema, comecei a escrevê-la também em 2020, mas depois percebi que não era um poema, era mais uma canção, e acabei-a em 2021. Depois diria a “Aconchegos de Um Sujeito” em 2022-
Parece-me ter havido um longo intervalo entre a escrita de cada canção.
No início, sim. Foram várias etapas de um processo de descoberta minha, diria. A “Para o Joaquim” também foi em 2022. Mas, por exemplo, depois “Marcha da Paridade”, “O Corpo”, “Nódulos”, “Micronódulos” e “Qualquer Um Pode Cantar” já foram todas em 2023.
Quando escreveste a “Lenço De Papel” já tinhas a ideia de um disco criada na tua cabeça?
Não sabia se ia estar neste disco em concreto, mas sabia que ia estar num disco. Depois quando escrevi a “Roupa Velha” percebi que faziam sentido juntas e que podiam funcionar juntas. Mas andei ali muito em luta, porque quando tinha um outro disco a ser construído a “Roupa Velha” não estava presente. Mas entretanto abortei esse disco e, lá está, percebi que “não, ok, é a mesma linguagem, há qualquer coisa que as une, tenho de as juntar” e fui continuando a escrever.
Todas as letras foram escritas por ti. Partiram de experiências pessoais? Foram mais um exercício de observação do mundo ao teu redor? Ou uma junção de ambos?
São sempre o reflexo do meu caminho e das minhas experiências. Mas este álbum é talvez, como tu própria o disseste, um olhar mais atento das coisas que se estão a passar à minha volta. Mais concretamente, é o reflexo da consequência daquilo que as outras pessoas têm sobre mim e daquilo que o mundo tem sobre mim. Sou eu a aperceber-me de certas falhas na sociedade e como isso me faz sentir – certas inquietações, certas sensações com as quais não lido bem… É quase como ir à terapia e ter a terapeuta a dizer-te “olha, existe este problema, e este, e este, e temos estas formas de solucionar” e este álbum sou eu a fazer isso comigo própria através de canções.
Olhas para o processo de escrita de canções como uma atividade terapêutica?
Sim. Além de ser uma forma de obter respostas concretas (embora, por vezes, não me aperceba disso), diria que também é uma forma de me descansar e de libertar coisas que tenho para dizer.
Qualquer Um Pode Cantar é um disco que reflete um amadurecimento pessoal e artístico, abordando temas como o desamor, as pressões da vida adulta, a precariedade, etc. Houve alguma temática e/ou sentimento que tenhas tido mais dificuldade em transformar em canção?
Normalmente, os sentimentos mais difíceis são aqueles sobre os quais é mais fácil depois escrever. Ou seja, a nível pessoal, é tão difícil para mim expressar e dizer algumas coisas às outras pessoas que fica muito mais fácil para mim escrever tudo isso em canção. Não sei, é um processo tão… Imagina, não tenho que falar sobre eles a ninguém, estou só ali a escrever e quase que parece uma epifania – sento-me, sei que tenho aquilo aqui dentro que não partilhei com ninguém e a única forma que tenho de me livrar… Nem é de me livrar, porque nunca vai embora… Mas de ficar mais leve, é realmente escrever. Acontece de repente, sem aviso e, na verdade, nem estou a pensar se custa ou não custa, só penso mesmo que aquilo tem que sair.
Em alguns temas, há momentos que parecem ser quase conversas ou confissões. Qual é o papel da vulnerabilidade no teu processo de escrita?
[Risos] Olha, tenho uma amiga que diz que tenho dificuldade em ser vulnerável com as pessoas pessoalmente. Ou seja, dou-me às pessoas mas há um nível em que tenho dificuldade em ter essa profundidade, tenho medo dela. Por isso, diria que como não o sou com as pessoas [risos], sou com as canções. Até pela lógica daquilo que estava a falar antes. Como é um espaço em que quando estou a escrever não me sinto observada, nem julgada… Efetivamente, sei que as pessoas depois podem acabar por ouvir, só que quando estou a escrever não sei se as pessoas vão realmente ouvir, porque são canções que podem ou não sair… Sinto-me num lugar completamente seguro para falar das coisas que sinto e, na verdade, há muitas coisas que às vezes digo nas canções que nunca disse a ninguém na minha vida.
Durante o processo de escrita, procuraste deixar espaço para que quem ouve as tuas canções possa interpretá-las à sua maneira?
Sim. Por exemplo, a meio da “Marcha da Paridade”, que é uma canção sobre o empoderamento da mulher, digo “Só tu me tens e mesmo assim não me queres ter”, e lembro-me de alguns amigos meus dizerem-me “então estás a fazer uma marcha tão empoderada mas depois estás a dizer a outra pessoa que a pessoa te tem mas não te quer ter”. É giro pensar nisto porque eles viram dessa forma mas eu não escrevi dessa forma. Não é obrigatório pensar da mesma forma que escrevi. Mas isso tem vindo a acontecer com várias canções. Com a “Aconchegos de Um Sujeito”, por exemplo, e também há muitas interpretações da “Roupa Velha”. É muito bonito, porque a arte também tem… Acredito que não temos de explicar tudo, o artista não tem de explicar tudo – ou qual é a razão ou por que é que escreveu. Sou um bocado contra isso e chateia-me às vezes fazer candidaturas para pedir apoios, porque temos de explicar a nossa música do princípio ao fim. Gosto que existam pontas soltas. Gosto que, lá está, esteja à descrição da outra pessoa que está a ouvir para se identificar com aquilo da maneira que sentir. Gosto também de ouvir outras perspetivas de quando as pessoas me ouvem e depois dizem “ouvi aquela parte e fez-me lembrar esta situação específica, fez-me sentir isto”.
Uma coisa que me chamou a atenção não só neste disco, como em toda a tua discografia, é a constante presença de nomes próprios. No EP Mal Me Queres, Bem Te Quero tens duas faixas com os nomes “José” e “Maria”, deste como título ao teu segundo EP do Roberto e, agora, neste disco tens uma faixa chamada “Para o Joaquim”. Existe uma intenção ou um simbolismo específico por detrás destas escolhas? O que representam estes nomes para ti?
[Risos] Pois, aconteceu. Na verdade, até me lembro que depois do Roberto disse “vou parar, já chega, não vou dar mais nomes de pessoas a EPs, nem a álbuns, nem a canções” [risos]. Mas depois, lá está, a minha música tem esse lado meio de confissão e muitas vezes é dirigida a pessoas. Não sei, acho meio mágico e misterioso [risos] colocar nomes de pessoas porque já há uma energia meio… As pessoas querem saber, ficam do tipo “Mas quem é o Joaquim? Quem é o José?” e acho isso muito engraçado. Mas “Para o Joaquim” fazia mesmo sentido e pensei “não vou dar outro nome a isto e vai estar no álbum”. Se calhar até é uma coisa que vai acontecer mais vezes ou pode até nem acontecer mais, não sei.
O álbum tem uma identidade sonora muito própria, que mistura elementos tradicionais com toques contemporâneos. Como chegaste a essa sonoridade? Houve algum ponto de viragem em que disseste “é isto que quero fazer”?
Foi sempre um processo de explorar muito. Tinha as canções para o álbum e pensei “agora tenho que produzi-las com alguém”. Só que tenho este problema grave que fico muito picuinhas com aquilo que quero que soe e tenho ideias muito próprias cá dentro que às vezes não sei passar para o lado de lá. Além disso, ainda não tinha propriamente as ferramentas para produzir um disco, mas pensei “se quero que as coisas soem àquilo que estou a sentir vou ter que trabalhar por elas, mais ninguém vai poder fazer isso por mim”. Então, peguei no Ableton, peguei nas minhas canções e comecei a explorar várias sonoridades à base de coisas muito orgânicas – tinha instrumentos muito orgânicos em casa, de percussão, e tinha também a guitarra, que era uma coisa que queria explorar muito mais neste disco – e depois fui mergulhando até encontrar… É quase como quando nos apaixonamos e parece que é do género “ah ok é isto, é maravilhoso” e era essa a sensação que queria com as canções. Só que efetivamente isso não acontece à primeira vista, é preciso trabalhar, é preciso ter um caminho muito consistente e é também preciso falhar muitas vezes.
Não foi a tua primeira vez a trabalhar a parte da produção.
Já trabalhei na produção antes, mas assim a fundo, como aconteceu neste disco, foi a primeira vez.
Fizeste escolhas muito interessantes de colaborações para este disco. Todas elas elevam este registo tradicional com que te apresentas. O que te guiou até estes grupos?
Quando cheguei à “Qualquer Um Pode Cantar” e ao conceito do álbum, percebi que… No início, não sabia se queria ter colaborações, mas no momento em que percebi que era um álbum sobre a voz e sobre ter coros (porque havia efetivamente uma ou duas canções que iam ter coros), percebi que precisava de uma massa de vozes a trabalhar nas minhas canções. E foi tudo muito giro porque as Sopa de Pedra funcionam de uma forma muito diferente de uns Coral Troviscal ou de uns Essence Voices ou de um Orfeão de Vagos. Cada grupo aparece no disco de uma forma muito diferente. Percebi que queria muito trabalhar com coros, porque foi uma parte muito importante do meu processo enquanto artista. Deu-se esta oportunidade e pensei “ok, é isto e vai ter de acontecer
Como foi o processo de criação deste disco comparado com os teus projetos anteriores? Houve algo de particularmente desafiador ou que te surpreendeu durante o percurso?
Diria que foi mesmo a produção. Nunca tinha mergulhado na produção sozinha. Mais especificamente a pré-produção, porque depois trabalhei com o Guilherme Simões. E talvez também a perseverança de ter esperado muito pelo álbum. Foi um processo muito longo, lá está, desde a primeira canção que escrevi até chegar ao conceito total tive que esperar algum tempo, tive que aprender a ser paciente, que é uma coisa que não sou porque quero tudo para ontem [risos]-
Valeu a pena a espera? Valeu a pena ser paciente?
Valeu muito a pena. Mas é isso, foi tudo um desafio muito grande para mim.
Uma vez que este disco reflete a tua jornada pessoal e profissional, como professora, mulher e artista, como acreditas que este Qualquer Um Pode Cantar pode influenciar ou transformar as vidas de quem o ouve?
Ui, não sei [risos]. Não consigo bem responder, porque não tenho esse distanciamento. Para mim, significa muitas coisas. Acho que, acima de tudo, quando penso que outras pessoas o possam estar a ouvir, gostava que elas se sentissem livres, no sentido de… Mesmo que às vezes não o sejamos, que elas pensem que o podem ser. É quase utópico, porque às vezes nem todos podemos cantar e a liberdade, principalmente enquanto mulheres, ainda há muita coisa que está por travar e por lutar. Mas gostava que sentissem uma certa força e uma certa inspiração de “ok, nós podemos não ser livres ainda, podemos não conseguir cantar nem escrever, mas estamos a um passo de tentar conseguir e, portanto, temos de fazer qualquer coisa, não podemos ficar sentadas à espera que as coisas surjam”. Acredito que é quando nos mexemos e trabalhamos e acreditamos em utopias que as coisas surgem. Portanto, talvez seja essa a maior sensação… Se as pessoas sentirem isso, fico feliz.
Sobre ser mulher e ser artista, como te posicionas face a isso considerando o atual panorama da música portuguesa?
Por acaso, acho que vivemos tempos bonitos no sentido de, pela primeira vez, conseguir olhar à minha volta e encontrar imensas mulheres de quem sou mega fã, de quem admiro, com quem gosto de trabalhar, que respeito, que têm uma mentalidade de apoio e de abraço e não de defesa do tipo “só pode existir uma” – esta coisa que às vezes nós não temos culpa mas está metida dentro da sociedade e das nossas cabeças. Mas fico muito feliz e grata por estar rodeada de tantas mulheres e de sermos todas humildes e de abraçarmos os projetos umas das outras e nos apoiarmos genuinamente. Depois, a nível do panorama, há muitas coisas para mudar, como a igualdade em festivais-
Recordo-me de teres criado uma playlist no Spotify só de mulheres depois da polémica em volta do cartaz da edição de 2022 do Vodafone Paredes de Coura, mais concretamente do dia “inteiramente dedicado à música portuguesa”.
Ai, sim. Depois ainda começámos a pegar em projetos de pessoas não-binárias e a abrir ainda mais a porta e era surreal a não-projeção que todos esses projetos estavam a ter. E de música muito bem feita, com muito bom gosto, atenção. Acho que isso também foi uma porta que se abriu para mim, no sentido de perceber que “ok, tenho que falar sobre isto, vou escrever e cantar sobre isto”. Depois acho que também há muitas coisas que fazem com que as mulheres às vezes se sintam, neste meio, perdidas e desamparadas. Nem sei bem dizer. Têm surgido histórias sobre isso, sobre abuso e assédio, e acho que, parecendo que não, é uma coisa que desmoraliza muito. Já é difícil para uma mulher estar no meio desta indústria, muitas vezes com a falta de apoio e de igualdade, e quando começam a surgir situações de assédio por parte de colegas fica desconfortável. Não sabes em quem podes confiar. Existem abusos por parte de programadores, de pessoas em festivais, de técnicos – e isto acontece constantemente. É angustiante, põe em causa a tua saúde mental e o teu conforto, fica ainda mais difícil. Até a própria sexualização da mulher – tens que ser isto e aquilo, e se não fores ouves e se fores também ouves. Há sempre um constante julgamento do qual nunca estás livre e meio que te aprisiona. Quer dizer, quero ir para palco, quero cantar, quero escrever à minha maneira e com a minha linguagem – porque a minha maneira de escrever nunca vai ser igual à de um homem, claro, e vice-versa, mas são ambas válidas -, e não quero ser julgada ou criticada por isso. É uma constante e parece que nada muda. São essas coisinhas pequeninas que temos de começar a lutar e a falar e a sermos assertivas do tipo “isto é a minha maneira de ser, vou para palco como quiser, vestida como quiser e dizer o que sinto e o que me apetece” e o mundo tem que lidar.
Quando mencionaste “situações de assédio por parte de colegas”, suponho que estavas a referir-te à recente denúncia de violação contra o pianista João Pedro Coelho que acabou por abrir uma caixa de Pandora do assédio no jazz português-
Sim, precisamente.
Bastou uma denúncia de uma mulher [Liliana Cunha aka Tágide], feita através das suas redes sociais, para abrir uma caixa de Pandora do assédio no jazz português. Sentes que houve uma evolução no sentido das mulheres do meio musical se sentirem mais encorajadas a partilhar as suas histórias e experiências e a exigir mudanças? Ou ainda há um longo caminho a percorrer para quebrar o medo e a barreira do silêncio?
Sim, acho que houve uma evolução. Por acaso, comentei sobre isso com algumas colegas minhas quando surgiu esta polémica toda dentro do jazz, ainda que saibamos que não acontece só dentro do jazz, mas dentro de toda a indústria musical, e de outras tantas áreas, como o cinema, etc. É triste isto, porque é preciso haver quase uma coisa drástica e caótica para que se sinta um pouco de esperança, porque efetivamente senti um pouco de esperança, porque havia mesmo muitas mulheres a dizer “eu também senti isto, isto também aconteceu comigo”. Mas, lá está, é estúpido que tenha que acontecer uma tragédia destas para que as mulheres comecem todas a falar e percebam “caramba, estamos todas no mesmo barco, passámos todas por isto, porque é que temos que andar todas umas contra as outras”. Emocionei-me umas quantas vezes. Uma pessoa partilha num grupo que passou por isto e, de repente, estão mais de cinquenta pessoas a dizerem que sentiram o mesmo e a ajudarem-se umas às outras, a mostrar uma solidariedade incrível e acho que é isso que pode mudar o mundo, é esta união, é um dia percebermos que efetivamente temos todas de correr para o mesmo lado e não ao contrário como nos fizeram acreditar.
É isso mesmo. Sinto que foram muitos anos a sentirmo-nos quase que silenciadas e ter havido esta união elevou tudo isto a outra dimensão porque, no fundo, ninguém se sentiu sozinha.
Exato. Custa não ter o apoio do resto, ou seja, das pessoas dentro da indústria e de todo o meio. Mesmo que haja poucos homens a dar esse apoio ou a falar sobre isso – que já houve alguns -, de repente, se todas as mulheres têm força para dizer isso… Quer dizer, é uma massa gigante, são muitas vozes e não há ninguém que possa ir contra essa massa. É preciso continuar a ter essa esperança e a acreditar nessa utopia.
Voltando um pouco atrás, quando falaste sobre a desigualdade em festivais, como achas que está neste momento em Portugal? Identificas melhorias com o passar do tempo?
Sim. Aliás, acho que até havia uma página no Instagram [Todas as Vozes] em que pegavam nos cartazes dos festivais, apagavam os nomes dos homens e ficavam só os nomes das mulheres. Só para se perceber a (des)igualdade. Atenção, há imensos festivais – e isso é de dar os parabéns – que têm super em conta isso, até mesmo associações e programadores que têm em atenção em que as coisas estejam minimamente equilibradas durante as programações que fazem durante o ano (ciclos de música e espetáculos). Mas efetivamente ainda há festivais que infelizmente ainda não têm isso em conta. Parece que há uma certa ideia que as pessoas só vão ouvir homens-
Consideras então esse um dos possíveis motivos pelos quais não apostam mais na presença de mulheres em festivais?
Sim, mas acho que há várias perspetivas, acho que há algumas pessoas com outra visão que acham que… Se calhar há um tipo de música que é mais feita por homens e, portanto, os programadores acreditam que talvez o público que vai a esse festival prefere realmente homens… Não sei, isto é só uma reflexão. Efetivamente, isso ainda acontece, há muitos homens que ainda ouvem música só feita por homens e não compreendem a linguagem das mulheres. Se bem que acho que os públicos também se educam e, portanto, isso está sempre a mudar. Depois também acho que existe uma monopolização gigante dentro da indústria dos mesmos nomes que tocam quase sempre aqui e acolá. Sempre as mesmas pessoas a tocar, o amigo do amigo, etc. Parece que há um ciclo. Mas é isto, acho que é uma mistura de tudo.
Agora para terminar, depois de três EPs e agora um álbum, como olhas para a tua evolução enquanto artista e enquanto pessoa?
Ui [risos]. Com este Qualquer Um Pode Cantar, senti que não tive medo de me desafiar, nem de falhar. Isto foi um passo muito grande para mim enquanto artista. Se bem que, às vezes, não sei bem se sou efetivamente artista, [risos] mas pronto, enquanto alguém que escreve [risos] estou sempre a desafiar-me, a tentar escrever melhor, a encontrar novas palavras e a sair da minha zona de conforto. Além disso, com este disco percebo também que consigo fazer outras coisas, coisas diferentes e com bom gosto. Depois, enquanto pessoa, sei lá [risos], sinto que estou sempre a aprender. Acho que é muito importante… Nem é o ser humilde, mas ter os pés assentes na terra para andar aqui. Por exemplo, não gosto nem consigo ter aquela postura de diva ou de emproada, em geral, na vida. Atenção, há pessoas às quais isso assenta bué bem, mas a mim não [risos]. Gosto de ser para as pessoas enquanto artista aquilo que também sou enquanto pessoa. Não gosto que haja ali uma grande separação. Sou igual… Quer dizer, não sou igual… Mas no sentido de… Estou ao mesmo nível dos meus alunos, dos velhotes com quem canto, daqueles a quem dou aulas, de todas as pessoas. Não sou superior a ninguém. Na verdade, se o mundo inteiro tivesse estes pés assentes na terra e se conseguíssemos olhar mais uns para os outros da mesma forma, tudo seria diferente – seríamos muito mais empáticos, diria. Portanto, aprendi tudo isto, que é, no fundo, a própria ideia do disco de “qualquer um poder cantar”, ou seja, estamos todos no mesmo barco.
Fotografia de destaque: Cristiano Marcelino