Em plena pandemia, Ana Lua Caiano viu-se mergulhada no mundo da produção musical, acabando por criar um conjunto de canções que refletiam um universo muito particular. Em 2021, deu a conhecer um pouco do seu trabalho ao ser um dos projetos selecionados para as SBD Sessions. Contudo, foi em 2022 que se estreou com um single lançado em conjunto com Rossana intitulado “Lobo Rouco”.
Deduz-se facilmente o que a caracteriza e o porquê de fascinar aqueles que ousam ouvi-la. Ana Lua Caiano transpira tradição, fazendo uso de coros, harmonias e cânones, e a isto aliam-se sintetizadores, beat-machines e sons retirados do quotidiano, trazendo o toque contemporâneo às suas canções. Já as letras são resultado de alguém que gosta de observar detalhes do dia-a-dia, bem como trazer à tona o que mais a inquieta. Quando falamos de Ana Lua Caiano, falamos imediatamente de experimentalismo e desconstrução. Tal reflete-se no seu EP de estreia, Cheguei Tarde A Ontem, e mais ainda no EP Se Dançar É Só Depois, lançado no passado mês de maio.
Ana Lua Caiano continua a percorrer diversos palcos de Norte a Sul do país mas, ainda assim, dedicou algum tempo a conversar com a Playback sobre o seu trabalho.
O que sentes que une e diferencia os teus dois trabalhos [os EPs Cheguei Tarde A Ontem e Se Dançar É Só Depois]?
Inicialmente, a ideia era que os dois EPs fossem, na verdade, um álbum. Isto, se calhar, no início de 2021, quando comecei a pensar nas músicas mais seriamente. Só que, depois, achou-se que era melhor separar em dois trabalhos por serem muitas canções – doze, neste caso. Ora, portanto, era melhor separar por termos logísticos, e assim foi. Houve músicas que, inicialmente, estavam previstas para que entrassem nesse álbum que não aconteceu, então acabaram por ficar para trás. Outras músicas mais recentes que eu fiz, depois desse primeiro momento, acabaram por entrar no EP.
Portanto, aquilo que eu sinto que os une… Sinto que são bastante parecidos em termos de sonoridade. Talvez o que os separa um bocadinho é que… Ok, eu trabalhei no segundo EP mais tarde, ou seja, ainda que algumas músicas sejam contemporâneas, a produção é feita um bocadinho depois. Portanto, este EP está mais experimental, talvez. Brinco mais com o ritmo, por exemplo. Umas músicas têm um formato mais tradicional da canção, outras músicas soam diferentes – não têm um refrão propriamente dito. É por aí.
É mesmo aí que eu queria chegar: os temas que constituem o Se Dançar É Só Depois soam muito mais experimentais, arrojados e desafiantes. O que te levou a rumar nesta direção? Quiseste desafiar-te a ti própria?
Na verdade, eu sinto sempre que é bastante natural, ou seja, eu sinto que cada música pede um bocadinho daquilo que é, por exemplo a “Mão na Mão” – apesar de tudo, tem um formato mais tradicional, porque eu sentia que essa música pedia isso. Enquanto que, por exemplo, na “Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou”, sentia que precisava de ter várias partes instrumentais, portanto acabou por ficar mais experimental nesse sentido. Mas pronto, também pelo facto de ter passado um ano desde que eu fiz a produção do [EP] anterior para este – sinto que os meus interesses mudaram; sinto que aquilo que eu quero explorar mudou. Portanto, tem a ver com isto.
“O que eu aprendi com este EP foi o não ter medo de experimentar, de estar mais à vontade para fazer novas coisas”, afirmaste em entrevista ao Rimas e Batidas. Qual o teu segredo para não te deixares ser vencida pelo medo?
[Risos]. É assim: é bastante difícil. Por exemplo, agora que estou a fazer um álbum… Sinto que é um bocadinho difícil desligar-me. Claro que eu tento – obviamente tento fazer as coisas sem pensar naquilo que podem achar, mas… Há sempre um bocadinho de pressão, sabes? Quer dizer, até dada altura ninguém conhecia nada meu, não é? Mas claro, eu tento sempre desligar-me disso e fazer consoante aquilo que eu estou a sentir. Se sinto que preciso fazer uma coisa maior, faço. Se sinto que preciso fazer uma coisa mais pequena, faço. Se sinto que preciso fazer algo mais experimental, faço. Portanto, tento seguir esse meu sentimento mais primitivo, e não tanto racional. Muitas vezes surgem aquelas vozes do género “será que vão gostar?” ou “aquela revista gostou antes, será que vai gostar agora?”. Mas, lá está, tento não ouvi-las, não segui-las; tento, acima de tudo, seguir o meu instinto; aquilo que eu gosto e quero fazer. Mas é um equilíbrio difícil.
O teu som surge de um cruzamento entre música tradicional portuguesa, música electrónica e, ainda, sons retirados do quotidiano. De onde vem tudo isto?
Desde muito nova que a música tradicional portuguesa está presente na minha vida. Sempre ouvi muito Zeca Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco… Os meus pais tinham imensos CDs e cassetes, e ouvíamos imenso. Em casa, principalmente, mas também em viagens – eu tenho família em Aveiro, então nós íamos lá quase todos os fins de semana ver os meus avós. Portanto, ouvíamos discos assim em loop. Depois, lá está, comecei a interessar-me por coisas mais experimentais. Descobri Portishead, Silver Apples… Enfim, bandas que desafiavam limites da música. Depois, também fiz muitos workshops. Inclusive, fiz um workshop com um músico de música concreta em que, por exemplo, uma coisa que ele nos deixou fazer… Mostrou uns sons que ele gravou e disse “façam uma música” [risos]. E, pronto, depois comecei a perceber realmente que a música era… Sei lá… Um mundo; podia vir dum piano, dum sintetizador ou doutros sons quaisquer. Portanto, vem desses meus interesses e dessa minha curiosidade também em sair… Ir além da minha formação, ou seja, música clássica, jazz… Sair um bocadinho desses meios, e descobrir que outras músicas é que há, e que outras formas de fazer música é que existem. Daí acho que surgiu essa minha curiosidade em experimentar e fazer coisas novas.
Quanto ao teu processo criativo, como é que funciona?
Normalmente, começa com melodia, em que… Muitas vezes surge assim no dia-a-dia sem eu estar muito à espera. Começo a cantarolar, gravo e, num outro momento, vou ouvir o que tenho e aponto aquilo que eu acho que pode ser interessante. Depois volto a ouvir essas gravações e vou selecionando as partes mais interessantes. O que eu faço de seguida é: crio logo uma base rítmica – com muitos ritmos e assim – e começo a experimentar essa melodia e, às vezes, começo a tentar complementar até encontrar o refrão. O que acontece também é que eu ao cantar várias vezes as músicas surgem-me palavras que, normalmente, não fazem sentido [risos], mas, por vezes, há palavras que casam muito bem com a melodia e que eu tento desenvolver. O “Olha Maria” é um bom exemplo.
Falando nas palavras: as tuas letras soam fortes e poéticas, e um tanto crípticas e profundas. Escolheste intencionalmente não ser, de todo, objetiva no que diz respeito a transmitires a tua mensagem?
Sim, eu acho que é um bocadinho intencional, no sentido em que a letra, para mim, é sempre a coisa que demora mais tempo a fazer. Enquanto que a produção é uma coisa muito mais direta e intuitiva, ou seja, implica eu experimentar muito e fazer muitas coisas quase de repente. Para mim, a letra é uma coisa que precisa de maturar e pode demorar semanas e semanas e, se for preciso, ainda se altera no dia da gravação. Sinto que vou sempre mudando até chegar a essa maneira de dizer as coisas – não diretamente, portanto. Depois, a música não é como um livro ou como um poema, no sentido em que… A letra não só tem que soar bem, como também tem que encaixar com a melodia. Já me aconteceu, muitas vezes, achar “ok, isto pode ser giro” e, depois, não fica bem com a melodia. Portanto, às vezes, também tem que se abdicar e tentar mudar palavras para soar o melhor possível na música, porque há palavras que podem não soar bem numa determinada nota ou numa determinada melodia… É assim um equilíbrio entre melodia, letra, significado, e tudo.
O que escreves não me parece autobiográfico, mas abordas temáticas que parecem inquietar-te, como é o caso do tema da habitação (na “Se Dançar É Só Depois”). Fala-nos melhor sobre o que te inspira a compor e a criar.
Olha, eu sinto que nenhuma das canções é autobiográfica. Eu nunca escrevi com a intenção de desabafar, ou seja, nada muito íntimo. Claro que há coisas com as quais até me identifico… Mas as músicas contam histórias e têm personagens que não são minhas; se calhar nem é um amigo, nem nada; é um bocado a partir da imaginação. Sinto que as canções são sobre coisas que vou vendo no dia-a-dia, histórias que vou ouvindo, notícias… Acho que tudo é uma fonte de inspiração. Mas há coisas que me incomodam mais e então acabam por surgir mais vezes, como o exemplo que deste da habitação, que surgiu na “Casa Abandonada” e na “Se Dançar É Só Depois”. Por exemplo, a “Casa Abandonada” supostamente ia sair no EP anterior, mas depois acabei por deixar para este, portanto acabou por ser uma coincidência estarem as duas [canções] no mesmo EP.
Há pouco tempo, entrevistei a Milhanas sobre o álbum de estreia dela e é muito giro que ambas não só partilham a mesma fonte de inspiração na composição, como também exploram esta fusão entre a música tradicional portuguesa e a música electrónica, ainda que de formas distintas. Seria uma possível colaboração futura?
[Risos]. Talvez, talvez… Até hoje, a única colaboração que fiz foi com a Rossana, mas agora já ando a pensar em mais. Aliás, algumas já estão a acontecer. Mas, quanto à Milhanas, eu gosto imenso da voz dela – é muito bonita – e gosto imenso do trabalho dela. Mas, pronto, depois também tem a ver com… Eu sinto que certas músicas podem ter a ver mais com uns artistas do que outros… Mas sim [risos], é uma possibilidade.
Nos dois EPs cantas sobre coisas melancólicas e sombrias. Alguma vez te iremos ouvir a cantar sobre coisas felizes?
Ai [risos]. É assim, digo já que o álbum que estou quase a acabar também não é assim muito feliz [risos]. Portanto, não tão em breve [risos]. Não sei porquê, na verdade. Já compus para vários projetos e… É mesmo uma dificuldade minha. Já aconteceu eu ter que escrever uma música assim numa escala maior, eu escrevi mas não gostei [risos]. Portanto, as minhas melodias tendem a ser mais sombrias e que, depois, também trazem letras mais sombrias. Para mim, é mesmo difícil de sair algo feliz. Se calhar pode vir a acontecer [risos], mas para já não, pelo menos neste álbum que vai sair ainda não [risos].
Outra componente muito forte é a tua identidade visual. De onde vêm as inspirações para ela?
É assim, eu sou uma grande fã de cinema. Gosto muito do [Pedro] Almodóvar – que usa assim cores muito fortes -, do Wes Anderson, do [Andrei] Tarkovski – que já são coisas mais melancólicas -, mas interessa-me estes universos coloridos. São cineastas que me inspiram e, nomeadamente, quem faz os meus videoclipes – que é a minha irmã [Joana Caiano]. Ela trabalha na Inglaterra como realizadora. Portanto, o mundo visual dela, neste projeto, acabou por ser também o meu mundo visual. Nós durante a pandemia colaborámos muito: eu fazia uma música, ela fazia um vídeo. Na altura em que eu estava a experimentar essa junção da música tradicional com a música electrónica, estávamos na mesma casa – porque ela veio de Inglaterra, ficou cá e passou a quarentena connosco – e, portanto, fomos insistindo e os dois universos acabaram por se juntar. Para mim, neste momento, é o que faz sentido e é o que casa bem com o projeto.
Tens estado em digressão de Norte a Sul do país. Qual tem sido o feedback do público?
O feedback tem sido bastante positivo, o que me deixa super contente. Eu acho engraçado que quando vou a sítios que nunca fui, assim aldeiazinhas… Por exemplo, uma vez que fui a Manhouce, uma aldeia ao pé de Viseu, apareceram algumas pessoas que já me tinham ouvido antes. Eu nunca percebo… Eu faço as minhas coisas e nunca percebo que há, de facto, pessoas a ouvir, e quando percebo fico sempre super feliz. Para mim, basta uma pessoa que conheça que já é o suficiente. Mas, pronto, tem corrido bem, tem sido muito bom.
Os teus concertos são feitos no formato de “one-woman-band”. Porquê fazeres tudo sozinha? É para continuar?
Inicialmente, quando eu pensei no projeto, acho que a minha ideia era ser uma banda, porque era assim a única forma… que eu sabia o que me esperava… Mas depois acabou por acontecer eu experimentar sozinha e gostar muito. Não sei porquê. Sinto um à vontade em palco muito maior agora do que quando tocava em bandas onde só cantava ou fazia muito poucas coisas. Gosto de fazer muitas coisas. Gosto de não ter que pensar muito se estou a dançar ou se não estou a dançar. Desta forma, estou muito mais à vontade também em expressar-me e não estou tão rígida. Sinto que me ajudou também a libertar um bocadinho dessa coisa de “não saber bem o que fazer”. Para já, este ano, hei-de acabar esta digressão. Se calhar vou ter novas colaborações. No NOS Alive, por exemplo, tive também o Fred [Ferreira] como convidado e, para já, este é o andamento deste ano. Depois vou vendo. Se sentir que também o projeto começa a precisar, ou eu que comece a precisar [risos]…
Já mencionaste que há álbum a caminho. Podes adiantar-nos mais alguma coisa?
[Risos]. Olha, o que eu posso dizer é que vai sair ou em janeiro ou em fevereiro de 2024. Um primeiro single há-de sair por volta de novembro [deste ano], portanto já não falta muito [risos]. Algumas canções são recentes, mas a maior parte delas são anteriores àquelas que já lancei. Muitas são acerca da pandemia… Apesar de não se notar, na maioria, uma reflexão direta [risos], o objetivo era mesmo refletir. Por exemplo, há uma música que se chama “Ando Em Círculos”, que já toco em concertos, e ela fala sobre a rotina exaustiva, mas quando eu a escrevi estávamos em pandemia, ou seja, quando não acontecia nada [risos]. Claro que agora se olharmos para a música pode ter a ver com o dia-a-dia – repetitivo – mas que, na altura, foi uma reflexão acerca daquele momento. Então é um bocadinho isso que vai caracterizar as canções do novo álbum.
Recentemente, a SAMA [Seattle Sacred Music & Art] estabeleceu-se em Portugal e começou a dar foco a artistas nacionais. Depois do Scúru Fitchádu abrir a edição de estreia, tu foste a mais recente artista em destaque. Qual importância dás a este tipo de plataformas?
Fico super contente, porque é ótimo poder ver estas plataformas que permitem que a música… Por exemplo, no meu caso, que permita lançar-me lá para fora, não só em Portugal. É muito importante haver este, digamos que, intercâmbio cultural entre vários sítios. O projeto também tem o objetivo de trazer outros músicos… Para ouvirmos músicos que não são portugueses, cá em Portugal. Portanto, acho interessante haverem projetos que permitam essa troca de cultura para podermos conhecer e dar a conhecer os nossos projetos lá fora.
São cada vez mais os projetos a explorarem esta fusão entre a tradição e a electrónica, mas o teu nome já é recorrente. O que significa isso para ti? E, ainda, como é trabalhar na música, enquanto mulher, no atual panorama português?
Ai [risos]. Olha, eu também concordo: acho que é muito giro ouvir estes novos artistas com diferentes perspetivas que refletem sobre a música tradicional portuguesa. Por exemplo, os Expresso Transatlântico, a Milhanas, O Marta, os Bandua. Há assim alguns projetos… Apesar de todos serem assim ligados à música tradicional, são todos muito diferentes na forma que executam, e eu acho isso muito engraçado – permite perceber que cada artista tem a sua visão, mesmo que estejamos no mesmo género musical, digamos assim.
Mas olha, tenho-me sentido bem, tenho-me sentido confortável. Apesar de todas as circunstâncias [risos], não tive ainda, felizmente, nenhuma desagradável. Sinto que ultimamente têm surgido muitas cantautoras e isso é muito bom. O panorama musical português precisa disso. Sinto que se está a ouvir falar mais delas. Sinto que estão a aparecer em mais festivais. Fico super contente por ver isto a acontecer, ver que começa a haver mais representatividade. Há uns anos não se via nada disto, não havia cantautoras (mulheres). A coisa de ser a mulher que, para além de cantar, também faz, também produz, é super bom – existem muitas e espero que venham a surgir mais ainda. Depois também tenho mais opções com quem possa trabalhar [risos].
Fotografia de destaque: Joana Caiano