Até há bem pouco tempo, não sabia o que era um Sol Música. Em minha casa, nos meus tempos de mini-Miguel, o Sol Música não fazia parte da grelha de canais. Em Cucujães, a ordem ditava: VH1 ou MTV Portugal (muito mais o primeiro que o segundo). Se há razão pela qual ouço tanta da música que ouço hoje, é por causa do VH1. Sinto que não sou o único zoomer com essa experiência.
Anos antes, o Sol Música funcionou como semelhante oásis musical para millenials melómanos. O canal de música espanhol começou a ser emitido em Portugal em 1997, inicialmente com a mesma transmissão que nuestros hermanos, com um foco tripartido entre música internacional, espanhola e portuguesa. Em 1999, Portugal passou a ter emissão própria do Sol Música, com foco extra na música portuguesa, fazendo chegar ao ouvido de milhares de portuguesas canções e sons que, de outra forma, não teriam chegado. Afinal, no final da década de 90 e início dos anos 2000, a forma principal de consumir música em Portugal era através da televisão. A revolução da Internet ainda estava por chegar.
Em Espanha, o Sol Música não deixou de existir. Em Portugal, a emissão do Sol Música Portugal terminou entre dezembro de 2004 e janeiro de 2005. 20 anos depois, a Rute Correia e a Ana Leorne, editoras aqui do burgo, partilham entre conversas as suas memórias do canal.
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[Rute Correia] Lembro-me que o Sol Música foi lançado em 1997 em Portugal e apareceu lá em casa quando os meus pais tiveram TV Cabo. Era o canal número 14.
[Ana Leorne] Olha, não me lembrava qual era o número do canal.
[Rute] Ao início, passava só música cantada em espanhol. Era muito diferente dos outros canais de música que tínhamos em casa, que era o VH1, a MTV Europe, o MCM. Creio que era isso. Também tivemos o VIVA durante uns tempos, mas depois desapareceu.
[Ana] A minha experiência é bastante diferente da tua porque só tive TV Cabo mais tarde, para aí em 2002 ou 2003. De 99 para 2000, quando os meus pais mudaram de casa, passamos a ter uma parabólica que apanhava o VIVA Zwei – ou seja, nem era o VIVA original. Portanto, a minha educação musical, até 2002-2003, foi Zwei. Não foi Sol nem MTV Europe.
[Rute] Eu era assídua da MTV Europe. A certa altura, o Sol Música sofreu uma transformação e mudou de posição na grelha. Deixou de ser o número 14 e passou a estar junto dos outros canais de música, entre as posições 25 e 29 da grelha. O Sol passou a ser o 28 ou o 29, acho eu.
[Ana] Lembro-me que mais tarde surgiu outro canal de música, já depois da MTV Portugal inclusive, que transmitia do Porto. Era o MVM.
[Rute] Isso foi muito mais tarde, não foi?
[Ana] Muito mais.
[Rute] Não me lembrava disso, que trip. Anos antes do MVM existir, ou seja, quando eu era uma gaiata para aí em 1999, comecei a passar mais tempo sozinha em casa e quase tudo o que consumia na televisão era sobre música. E o Sol Música tinha uma cena diferente, que mais tarde a MTV Portugal soube surfar. O Sol Música era só playlists automáticas. Não havia apresentadores, ninguém falava. Era música non-stop.
[Ana] Havia umas entrevistas, mas eram só os artistas que falavam. Não tinhas lá um entrevistador a falar.
[Rute] Sim, e havia outra coisa. O Sol Música passava tudo. Não tinha trincheiras. Podias ouvir Chullage como podias ouvir Melão. Era uma loucura. E passavam cenas internacionais também, não era só música portuguesa. Mas para a altura que era, passavam muita música portuguesa. Havia muita coisa a borbulhar nessa altura, mas coisas como a SIC Radical só apareceram mais tarde.
[Ana] A SIC Radical tinha bué música.
[Rute] Mas apareceu um bocadinho mais tarde, tal como a MTV Portugal, que começou a emissão em junho de 2003. Antes disso, o Sol Música já passava de tudo. Passavam muito hip-hop. O meu primeiro contacto mais a sério com hip-hop foi com o Sol Música. Passava Da Weasel, Mind da Gap, Chullage.
[Ana] Lembro-me de ver bandas como EZ Special a passar também, e várias bandas com quem toquei na altura.
[Rute] Lembro-me que no último ano de Sol Música estar a passar Fingertips até à exaustão.
[Ana] Sim, e Gomo. Lembro-me também de ver o videoclipe da “Making Me Better” dos Lulla Bye. E Fonzie também, que por alguma razão eram big in Japan.
[Rute] Sim, havia um conjunto de bandas dessa altura, no pós-Silence 4, que só cantavam em inglês. Foi uma explosão de música portuguesa cantada em inglês. E não quero estar a ser purista, mas depois o Sam The Kid versou sobre isso, não é? Os Silence 4 explodiram, já eram bebés dos anos 80 e tinham crescido expostos à música anglófona. No Sol Música, encontravas mais música portuguesa cantada em português do que na SIC Radical, por exemplo. Apesar da SIC Radical também ter espaços temáticos de metal e hip-hop.
[Ana] Quando eu tocava, cantava sempre em inglês, mas não tinha necessariamente a ver com a cena dos Silence 4. As nossas referências cantavam em inglês também.
[Rute] Lá está. E no Sol Música, encontravas uma paisagem diferente. Passava uma série de coisas, até às vezes com uma qualidade mais “manhosa”, que não ouvias noutros sítios ou só ouvias em espaços muito contidos. O Curto Circuito tinha uma rubrica de hip-hop, por exemplo, mas não era diária. Rodava com outras.
[Ana] Havia pessoal que ia tocar ao vivo ao Curto Circuito também.
[Rute] Sim, e a SIC Radical tinha programas dedicados. Lembro-me de um programa chamado Beatbox, que era do José Mariño, mas que passava bué tarde. No Sol Música, encontravas coisas assim em horário normal. Acho que ouvi Moonspell pela primeira vez no Sol Música, também. Não gostei, mas ouvi. E o Sol Música tinha uma cena que curtia imenso, que era o rodapé das mensagens de texto.
[Ana] A SIC Radical também teve isso.
[Rute] Isso era a cena.
[Ana] Quando trabalhei na MTV Portugal, tínhamos uma espécie de oráculo onde mandavas uma mensagem com “amor” e o nome de duas pessoas e aquilo devolvia a percentagem de amor entre os nomes. Lembras-te disso?
[Rute] Não me lembro, mas consigo listar todos os reality shows e date shows dessa altura [risos]. Lembro-me que no Sol Música as mensagens estavam limitadas a 160 caracteres. Eu mandei uma vez, mas achava que aquilo era grande banhada. A mensagem só apareceu passado duas semanas. Fiquei entusiasmadíssima quando a vi aparecer na televisão! [Risos]
[Ana] Tudo funcionava à base de chamadas ou SMSs na altura.
[Rute] O Sol Música tinha um culto diferente, especialmente antes da MTV Portugal aparecer.
[Ana] Quando a MTV Portugal apareceu em 2003, foi uma espécie de soft transition. Nem toda a emissão era a partir de Portugal. Parte da emissão ainda era MTV Europe. Passava imensa música portuguesa, sim, mas havia muita coisa que era obrigatória passar porque fazia parte da playlist internacional.
[Rute] A MTV Portugal passava imensa música.
[Ana] Por isso é que conseguiu fazer concorrência ao Sol Música. Diretamente ou indiretamente, a MTV Portugal fez concorrência, neste caso, desleal, ao Sol Música. Era uma marca muito maior que se inseriu no mercado e acabou por eliminar a concorrência e ficar com um monopólio. Quando o Sol Música encerrou a emissão, todos os canais de música, à exceção do MCM, porque são franceses [risos], eram quase todos derivados da MTV.
[Rute] A SIC Radical não passava só música, por exemplo. O Curto Circuito tinha um peso cultural gigante, contudo.
[Ana] Era huge. Toda a gente queria ir ao Curto Circuito.
[Rute] Tinha um impacto cultural enorme e passava imensa música. Os próprios separadores na SIC Radical, no início, eram videoclipes.
[Ana] Era incrível.
[Rute] E não eram cenas muito mainstream. Era uma cena alternativa, mas também não era uma cena alternativa-
[Ana] Era alternativo, mas era alternativo americano. A SIC Radical tinha um modelo completamente americano.
[Rute] Sim, mas a música que passavam, incluindo a portuguesa, estava muito ancorada a essa cena mais alternativa.
[Ana] Sim, mas eles não iriam passar Melão porque não era cool. A SIC Radical era a cena fixe. Lembro-me de passar Happy Tree Friends na SIC Radical.
[Rute] Sim [risos]. Lembro-me da MTV Portugal passar Anjos a dado ponto.
[Ana] O Sol Música não estava dependente de tops de vendas, como era o caso do Top+. Tu precisavas de gerar audiências para teres publicidade e tu precisavas de ter artistas que dessem audiências – mas isso não vinha propriamente do top de vendas. A MTV Portugal, por exemplo, perseguia mais isso. Até porque existia uma relação grande com as editoras. Não me lembro da MTV Portugal dar hype a um artista nacional que não estivesse numa major. E eu acho que o Sol Música chegou a dar hype a artistas independentes portugueses.
[Rute] Sim, o Sol Música passava imensas coisas que não estavam em majors. Dei o exemplo do Chullage. Lembro-me que namorei com um rapaz que morava na Arrentela, no Seixal, e lembro-me deles, quando passava um videoclipe do Chullage no Sul, irem todos para a casa de alguém para ver o videoclipe. Isso era uma cena incrível. Ele era o herói daquele barro.
[Ana] Cheguei a fazer isso com bandas amigas do Porto quando o videoclipe deles passava no Sol Música.
[Rute] Acho que o Sol Música foi um sítio capaz de cultivar um gosto em mim pela música portuguesa que não era tão apurado nessa altura. Tu tinhas as megas estrelas, como os GNR, o Rui Veloso, os Silence 4, o Pedro Abrunhosa, mas o circuito era muito mais fechado do que era hoje e a oferta de sons também era mais limitada. Hoje tens muito menos trincheiras entre géneros, mas na altura, não. O Sol Música foi um sítio de conforto para mim onde eu encontrava música portuguesa que estava fora desses eixos
[Ana] Lembras-te de ver música eletrónica no Sol?
[Rute] Sim. Lembro-me de ver também Lúcia Moniz e a Susana Félix e disso ter um impacto em mim também. Não tinhas muitas mulheres com lugares de destaque desse género, a tocar guitarra, na música portuguesa.
[Ana] Tiveste os Rádio Macau, antes disso, e os The Gift, que tiveram um dos primeiros videoclipes portugueses a passar na MTV.
[Rute] MCM chegou a passar The Gift. Cheguei a apanhar.
[Ana] Mas todos estes nomes, grande parte delas não eram instrumentistas. Só a Xana dos Rádio Macau. Quando comecei a tocar com Rope, também tocava guitarra, e lembro-me do Ricardo, que era o guitarrista principal, chatear-me porque queria que eu tocasse mais guitarra. Ele puxava por mim porque não queria que eu fosse o token da banda, que era o standard para a altura. Não tinhas assim muitas referências portuguesas para mulheres.
[Rute] Sim, e foi um pouco por causa disso que foi marcante ver a Lúcia Moniz e a Susana Félix. Na verdade, estava a pensar. Um bom paralelismo é que o Sol Música fez o que mais tarde os Morangos com Açúcar fizeram. Misturavam imensa coisa. Na banda sonora de McA, tinhas coisas mais edgy e coisas mais mainstream. Anos antes dos McA, a série Riscos tinha feito algo semelhante.
[Ana] Tenho imensa pena que essa série se tenha perdido.
[Rute] Acho que o Sol Música tinha essa magia e ocupava um espaço que ninguém ocupava. E lá está. A partir do momento que surge a MTV Portugal, as coisas mudam de figura porque a MTV era uma marca muito mais forte.
[Ana] E todas as bandas queriam aparecer na MTV a partir do momento que apareceu a MTV Portugal. Se não conseguisses, aceitavas o Sol Música.
[Rute] Isso fez com que o Sol Música fosse uma espécie de fever dream muito fugaz.
[Ana] Depois de a MTV Portugal ser lançada, o Sol Música durou exatamente ano e meio.
[Rute] Aquilo fechou no final de 2004 ou início de 2005?
[Ana] Fechou no final de dezembro de 2004. Aliás, deve ter acabado mesmo a 31 de dezembro. Lembro-me de estar de férias no Marão e de estar a ver o Sol Música e aquilo estar a passar os mesmos vídeos em loop de hora em hora e de haver um rodapé que dizia que eram as últimas emissões do canal.
[Rute] Não tenho uma imagem tão viva do final, mas lembro-me que quando terminou, passou a existir um vazio. Eu via muito a MTV Portugal, mas senti que faltava qualquer coisa, porque a abordagem era diferente. E eu acho que para quem viveu a adolescência durante esses anos, foram assim os últimos anos de grande esperança mediática. Havia muita coisa a acontecer. A TV Cabo estava a rebentar, a Internet estava a rebentar. Tinhas imensos canais novos a aparecerem, como a SIC Radical ou a SIC Mulher, tinhas o Curto Circuito. Acho que esse bloco temporal acabou por se cristalizar como uma espécie de fever dream dos millennials adolescentes. E houve várias coisas a acabar entre 2004 e 2005. É por essa altura que “o” Blitz deixa de ser jornal e passa a ser revista. Eu nunca comprei o jornal, mas comprava a revista.
[Ana] Eu fui ao contrário. Nunca comprei a revista.
[Rute] Acho que quem se lembra do Sol Música, tem assim uma cena mega nostálgica pelo canal porque toda a gente via aquilo. Porque a maneira como consumias música era principalmente através da televisão. Era uma cena super icónica. Tenho muitas saudades do Sol Música e fui muito feliz a ver o Sol Música.