Funny story. Comecei a pensar neste artigo uns dias antes dos YAKUZA anunciarem que estavam de regresso aos lançamentos. Coincidência? Acho que não.
Já se passaram quase quatro anos desde que YAKUZA, coletivo de jazz lisboeta, nos brindaram com AILERON, longa-duração vertiginoso de estreia onde combinaram o universo do jazz fusion japonês e do nu jazz londrino com uma estética kitsch-tuning portuguesa despretensiosa. Essa colisão de universos resultou num dos melhores álbuns de jazz feitos no nosso país na última década (arrisco-me mesmo a dizer: o melhor), tendo sido na altura apontado como um dos melhores lançamentos de 2020 pela Threshold Magazine, Rimas e Batidas ou pelo extinto Espalha-Factos (mea culpa neste último).
Em 2023, os YAKUZA revelaram um sneak peek do que podia ser o sucessor de AILERON ao divulgarem a gravação do concerto que deram no Festival Iminente em 2022 (Live at Festival Iminente, Lisboa, 2022). Quem já viu YAKUZA ao vivo, sabe que pode contar com várias coisas. Primeiro, com mesmo muito groove. Segundo, com uma energia algo punk que confere aos seus espetáculos uma vitalidade que não se encontra tão presente noutros grupos que alimentaram a revolução que o jazz português viveu nos últimos anos como os Mazarin, AZAR AZAR, Bardino, OCENPSIEA, Cíntia ou Fumo Ninja, (à exceção dos OCENPSEIA – e onde é que andam esses marotos também?!).
Todavia, nenhum destes grupos consegue ter a aura e a vibe que os YAKUZA transbordam em cima de palco. Esse é o terceiro ponto que os distingue dos camaradas da cena musical de nu jazz português. Será essa aura culpa dos óculos de Afonso Serro, teclista cujas ações no seu instrumento predileto são a chave da música dos YAKUZA por servirem de alavanca para tudo o resto que lhes rodeia? Ou será culpa de quando, num concerto de YAKUZA, surge no público um conjunto de manos vestidos a rigor de macacão prontos a furar a panela do Toyota Celica mais próximo? Quando vi YAKUZA no Party Sleep Repeat de 2023, foi ambas. Quando os vi na Musa, foi mais culpa dos óculos.
Atualmente os YAKUZA, que funcionam como uma entidade em constante mutação, contam com contribuições com Afonso Serro, outrora fundador dos Mazarin e dos Atalia Airlines, teclista, André Santos (aka AFTA3000), baixista, Pedro Ferreira (Quelle Dead Gazelle), guitarrista, Alexandre Moniz (Galgo), baterista, Pedro Nobre, outrora líder da big band Loosense, percussionista. Em AILERON, a base sonora do grupo eram as teclas de Afonso, as linhas de baixo deliciosas de André e o jogo de ritmo que estas delineavam com a bateria de Alexandre. Porém, os YAKUZA não são apenas uma banda; colaboram com outros músicos e bebem dessas influências. As contribuições de Pedro Ferreira, que em AILERON colaborou na delirante “KATANA”, e Pedro Nobre já se fazem notar em “Penha” e “Batota” – mas já lá vamos aos novos singles do coletivo.
Antes, permitam-me discursar sobre porque gosto tanto de AILERON. É um disco onde o automóvel funciona como centro do universo e a música tenta captar essa aura. Não é à toa que bandas como Casiopea surgem como clara referência para a música dos YAKUZA. A banda japonesa de jazz fusion entendia o automóvel como um pedaço de engenharia admirável e tentava transpor para a música a sensação de conduzir um a alta velocidade. No caso dos YAKUZA, há uma relação semelhante. O olhar para a banda sonora de videojogos como Gran Turismo, Sega Rally Championship ou Ridge Racer como influência, tanto estética como sonora, não surge do zero, mesmo que a banda tenha admitido que isso ocorreu acidentalmente. “Nós não tínhamos a ideia de fazer uma banda sobre carros, não foi assim que a coisa começou”, confessou Afonso ao Rimas e Batidas em 2020. Na altura, Afonso Serro e o seu colega de casa, fig.gif, realizador do videoclipe de “TUNING”, passavam o tempo a ver “muitos vídeos de jogos de carros”. A ideia para essa colisão de mundos presentes nos YAKUZA surgiu aí.
No entanto, os YAKUZA claramente entendem que a sua música opera como um bom automóvel. Funciona com várias mudanças, brilha mais debaixo do néon, constrói-se peça a peça até estar pronto a sair da fábrica. E um automóvel demora tempo a ser construído – pelo menos um bom, como são grande parte dos clássicos japoneses dos anos 80 e 90: os RX-7, os Impreza, os Lancer, os Celica, os Skyline, os MX-5, cuja estética tunada adorna AILERON.. É engenharia do mais alto gabarito. Um automóvel destes a ser guiado no limite é poesia em movimento, e a música dos YAKUZA, como se escuta em malhas como “PICHELEIRA” (big band à la T-Square), “TUNING”, “AILERON” (Pt. 1 e Pt. 2) ou “KATANA”, capta esse movimento. Quando a linha de baixo de “TUNING” é a primeira coisa que se escuta em AILERON, sentimo-nos prestes a ligar o motor do nosso bólide para arrancar. Quando as guitarras explodem lado-a-lado com sonância transcendental em “KATANA”, sentimos o pneu slick no limite da aderência. Felizmente, não houve nenhum acidente ao virar da curva e chegamos a casa sãos e salvos ao som da melancolia de “ADAGIO”.
E se um automóvel demora a ser feito com rigor, então os YAKUZA estão cientes de que é necessário tempo para construírem o seu novo modelo. Talvez tenha sido por isso que levaram o seu tempo a construir o sucessor de AILERON. Intitulado 2, o álbum será editado no final de outubro pela Disco Extendes.
“Penha” e “Batota” são a confirmação que os YAKUZA estão a abrir o seu jogo. Isto já não é só sobre automóveis e poesia em movimento. É sobre encontrar o limite de um para descobrir onde nasce o outro. É, acima de tudo, sobre tentar encontrar o limite do jazz – exceto que o jazz não tem limite. É sempre sobre descobrir mais e mais. E os YAKUZA não têm medo de descobrir e experimentar.
Em “Penha”, dedicada a todos os moradores da Penha de França, escutamos uma canção que se aproxima mais a captar o som ao vivo do coletivo. Soa mais “suja” que algumas das malhas de AILERON e bebe mais de algumas influências que já lá estavam, mas que agora soam mais presentes. Em “TRUQUE DI MENTE”, essas pistas já se escutavam. Não é que a eletrónica já não estivesse presente em AILERON (particularmente em “Aileron Pt. 2”), mas o espaço extra ocupado no som dos YAKUZA como escutado em “Penha” torna o grupo simultaneamente mais excitante e fraturante, mas não menos YAKUZA. Quando sensivelmente a meio de “Penha” a canção explode num devaneio que lembra uns Comet is Coming e a eletrónica britânica dos anos 90, não deixa de soar a uma canção dos YAKUZA. A identidade sonora vincada do coletivo encontra-se embutida em “Penha”. Teclados luxuosos como peça central, linhas de baixo aguerridas, groove para dar e vender, uma ambiência que parece surgir da mais luxuosa garagem subterrânea onde habitam os desportivos mais fixes do planeta.
“Batota”, por outro lado, é um statement claro da diversificação sonora que os YAKUZA pretendem abraçar em 2. É uma ode ao lado mais psicadélico do conjunto, com as guitarras wah-wah de Pedro Ferreira a servirem como costura delicada ao acabamento delineado pelo resto do grupo. É, de momento, uma faixa única na discografia dos YAKUZA.
Mas se a qualidade musical dos YAKUZA os coloca num patamar diferenciado no panorama jazzístico nacional, é precisamente a forma como vincam a sua identidade independentemente de brincadeiras sonoras que os distingue dos restantes colegas de cena. Se existia algum medo de que os YAKUZA pudessem cometer o erro que alguns dos seus pares do novo movimento de jazz português cometeram, ou seja, de soarem pastiche de grupos como os BADBADNOTGOOD ou Sons of Kemet, esqueçam.
A mesma ideia que os YAKUZA referiam, em 2020, de não pretenderem ser “jazz londrino em Lisboa”, mantém-se viva em “Penha” e é essa convicção que torna os YAKUZA, de longe, o grupo mais interessante a revolucionar o jazz em Portugal e os únicos capazes de livrar essa escola da punheta intelectual, do mofo e do conservadorismo (falta a questão racial e de género, mas não podemos ter tudo de uma vez). O único projeto que lhes faz frente são os GUME e esses têm um intuito musical completamente diferente – muito ligado ao afrofuturismo – do coletivo lisboeta.
Se compararmos o output criativo dos YAKUZA, por exemplo, com os Mazarin, nota-se como os YAKUZA conseguiram manter-se interessantes. Os Mazarin, por outro lado, desde os tempos de Mazarin (2018) e Interlúdio (2020), têm feito cada vez mais música menos interessante. Pendular, recentemente divulgado pela Now Jazz Agora, contém excitantes composições como “Dallas” ou “Meia Cura”, mas grande parte do disco não atinge o mesmo nível de qualidade. E pior: parece que os Mazarin passam grande parte de Pendular a tentarmos que gostemos do disco de toda a forma possível. Dimensions, o disco de estreia de LANA GASPARØTTI, é outro registo em que se escuta este problema. “Mar” é uma belíssima faixa, mas grande parte destas canções soam a clichês de nu-jazz. Parece que estão à procura não de mudarem o zeitgeist, mas de serem o zeitgeist. É chato quando querem a aprovação do establishment, ok? No caso dos YAKUZA, essa vontade simplesmente não existe na sua música. Outra vez: é a aura punk do coletivo a vir ao de cima.
É curioso que os Mazarin e os YAKUZA tenham surgido de uma génese semelhante. Como Rui Miguel Abreu escreveu em 2020, estes projetos são formados por músicos “cuja biblioteca é o Spotify, cujo clube é o YouTube”. É a geração que descobriu city pop através de Mariya Takeuchi, que sabe como a estética shibuya-kei pode ser trabalhada no contexto do que é o cenário musical português.
Afonso Serro, em particular, é o principal motor e referência desta geração de músicos. O som das suas teclas tem vindo a ser replicado por uma série de grupos desde que apareceu a tocar em Mazarin e, mais tarde, aprimorou em AILERON. É ele a figura central de todo este movimento de um novo pensamento que, além de criar um jazz “de agora”, quer relembrar que o jazz não tem quaisquer limites.
Uma evidência clara da influência de Afonso e, por consequência, dos YAKUZA, encontra-se presente na banda lisboeta SAMALANDRA, recentemente galardoados com o prémio de Novos Talentos FNAC na área da música. O seu EP de estreia homónimo, lançado no último trimestre de 2023, assenta no cruzamento de múltiplas influências de estilos diferentes para transformar o seu jazz. Como se isso não bastasse, os SAMALANDRA possuem uma aura punk claramente influenciada pelos YAKUZA, como bem se escuta em “Elvira”. Contudo, no caso dos SALAMANDRA, apesar de prometerem bastante neste curta-duração de estreia, ainda têm muito a fazer para vincar a sua identidade. Malhas prometedoras como “Elvira” revelam o potencial, mas canções como “CHELIA” soam a meras cópias de outros grupos com ligeiros adornos diferentes – neste caso, dos Fumo Ninja.
É um facto que os YAKUZA não querem ser uma cópia de nada nem desejam ter a aprovação de ninguém. Quando esses dados são associados à qualidade musical de AILERON, à energia revitalizante dos seus espetáculos ao vivo e à excitação dos dois primeiros avanços de 2, há mais que caso suficiente para afirmar o seguinte: não há outro grupo de jazz em Portugal tão excitante e diferenciado quanto este coletivo lisboeta. Este juiz decidiu – e está decidido.