Perdoa-lhes, Ms. Jackson: Uma eulogia à riqueza do rap além das letras

“Ms. Jackson” é um clássico. Um refrão orelhudo, flows intrincados do Big Boi e um verso (mais um, na verdade) absolutamente genial do Andre 3000. A temática – amores que amadurecem até se tornarem caducos – é abordada com a criatividade a que os OutKast nos habituaram, agarrando num tópico não propriamente pioneiro e trazendo-lhe um novo e interessante ângulo. E é precisamente por essa temática e a forma como é abordada que quero começar a dissertar. Mas, primeiro, contexto.

Eu sou amante de música em geral, mas eu sou do rap. Sou das batalhas de freestyle na rua e das escritas no YouTube, sou das rodinhas de improviso e das cyphers, das punchlines, das multis… o rap tem uma linguagem muito rica porque também lhe dá muito foco. A palavra é muito importante para um rapper e a mestria com que a utiliza é quase sempre o barómetro da sua qualidade. Mas, sendo eu do rap, também sou amante de música em geral. E o rap também o é, não bebesse ele de várias e diversas fontes para se construir. Também sou das vozes de Marvin Gaye e Stevie Wonder, do groove dos Earth, Wind & Fire e das linhas de baixo infecciosas dos Isley Brothers – tudo artistas que descobri através do rap. Vou corrigir – ou, pelo menos, modificar – uma frase que escrevi acima: o rap tem uma linguagem muito rica porque lhe dá muito foco mas, também e acima de tudo, por ser um género musical que nos comunica não só com a palavra.

Voltemos aos OutKast e a “Ms. Jackson”: Big Boi a ser Big Boi, refrão icónico, Andre a ser génio e um conceito incrível. Tirem o Andre, tirem o Big Boi e tirem o refrão. A comunicação não acaba. Podemos tirar toda a parte da comunicação verbal que os OutKast continuam a dizer-nos – e de forma clara – a temática desta faixa. Logo no seu início, ouvimos um piano que nos toca a marcha nupcial que vai desafinando até se perder e desaparecer, seguindo um pouco a cadência do verso que o Andre mais tarde rimaria. Não sabemos quem inspirou quem nem precisamos de o saber; o ponto deste artigo é isso mesmo: o rap, enquanto expressão meramente escrita ou vocal, nunca será tão rico como é quando acompanhado pela beleza e riqueza da música que tão bem o complementa.

É muito fácil encontrar detratores do rap enquanto género musical mesmo dentro da própria cultura. A maior parte acaba por sê-lo sem mesmo se aperceber. No entanto, colocar um foco excessivo (ou único mesmo) na componente lírica ignorando toda a riqueza musical que o rap nos traz é fazer um péssimo serviço a uma cultura que nasceu dos DJs, das festas, dos b-boys… Na verdade, sinto muitas vezes que o discurso divisivo que impera entre os heads se aproxima demasiado ao dos velhos do Restelo que continuam a não aceitar o rap como uma forma de expressão musical válida.

Ignorar a música é ignorar o J Dilla, o Dre, o Premier, o Metro Boomin, o Hit-Boy, e é desvalorizar a relação simbiótica entre DJ e MC no passado e produtor e rapper no presente. O rap é rico porque nos fala em várias linguagens: a dos nossos antepassados através do sampling, a da inovação através da maneira como continua constantemente a ser um género sem medo de experimentar e arriscar e, claro, a verbal que, também ela não se resume à letra, mas também à cadência, aos conceitos e aos flows.

Ritmo e poesia não é ritmo ou poesia. Não há que tomar partidos, fazer escolhas, escolher um campo. A relação é complementar e, no processo de criação, um existirá sempre para elevar o outro. Resta-nos a nós, que somos ouvintes, saber sê-lo e aprender a receber todas as formas de que este género musical comunica connosco.

Orgulhosamente da Reboleira, nasceu em 1994 e começou a ouvir rap em 1998, ainda a fita tinha que ser rebobinada. Depois de criar o Hora H, podcast associado à H2Tuga, fundou a Hip-Hop a La Carte e tem vindo a geri-la desde 2020.

Ritmo e poesia não é ritmo ou poesia.

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