No início desta semana, escrevi sobre como o amor era a grande inspiração da música de Sara Tavares. A abertura do álbum Sara Tavares & Shout! levanta o véu do que esperar ao longo dos 53 minutos seguintes: um disco de gospel entalado entre o português e o inglês, com instrumentais que transpiram anos 90, e uma projeção vocal alinhada com as grandes divas da altura. Ancorada na igreja por influência de sua avó, Sara Tavares cedo percebeu que os murmúrios católicos não correspondiam à ebulição espiritual que encontrava na música. Assim, alavancada por Dale Chappell (que, vindo da música cristã, foi o seu primeiro professor de canto), Sara Tavares acabaria por fundar um dos primeiros coros nacionais de gospel, os Shout!, que a acompanharam na estreia em longa-duração. Ainda em 1994, gravaram uma demo que juntava já canções que entrariam no alinhamento final, “Fix me, Lord” e “Oh, happy day”, dois clássicos do género.
Não nos enganemos: lançar um disco de gospel nos anos 90 não gritava propriamente “sou o próximo grande nome da pop nacional,” e foi essencialmente um veículo de auto-descoberta da própria Sara, que teve uma liberdade cedida gentilmente pela BMG.
Sei que posso fazer tudo
Mas nem tudo me convém
Tenho liberdade p’ra viver
A minha vida mal ou bemSara Tavares & Shout! em “Escolhas”
Ainda assim, é um disco do seu tempo. Instrumentalmente, destaca-se pelas linhas de baixo bem marcadas entre o funk pós-Viagens do Abrunhosa e o pop-rock acústico que se fazia na altura (lembrou-me artistas como João Gil ou Luís Represas), os solos de saxofone de “Pray for you” e “Vejo um Sol”, o gospel expressando-se em palmas acelerando refrões, sopros de metal e pianos que carregam a melodia, e uma equalização de bateria que dificilmente teria saído de outra década. Mas o que brilha, naturalmente, é a voz de Sara Tavares, embrulhada por coros que a elevam.
Apesar de estar longe daquilo com que se identificará mais tarde, há já alguns momentos notáveis que encontram ecos na sua obra posterior. Acompanhada apenas por estalar de dedos e um contrabaixo, “Deus Ajuda a Todos” é uma pérola quase acapella, em que as vozes dos Shout! assumem o comando instrumental do acompanhamento a Sara – em quase todos os seus álbuns, Sara Tavares inclui momentos em que só se ouve voz. “Do Sonho Eu Sei” evoca já uma delicadeza que encontraremos, mais tarde, em Balancê. Aliás, a composição da introdução, com a guitarra a antecipar graciosamente a entrada do baixo, lembrou-me vagamente “Noite de Morabeza” de Boy Gé Mendes, um dos nomes históricos da música cabo-verdiana com quem ela trabalhará nesse disco. Também a canção final, “Barquinho da Esperança”, tem contraponto na obra futura, confluindo ligeiramente com “De Nua” (de Balancê) ou, até, “Minino” (de Xinti) no seu jeito de canção de embalar.
Ouvir um disco com 25 anos de distância é um exercício suscetível de traições de memória, mas não deixo de pensar como a Sara Tavares deste primeiro disco é, de facto, a materialização do que ela representou no imaginário nacional nessa altura. Ainda colada à interpretação de Whitney Houston no Chuva de Estrelas e a “Chamar a Música”, o trabalho de Sara Tavares estava ancorado no seu vozeirão.
Curto apontamento: estou chocada com facto de não ter sido ela uma das vozes da versão portuguesa de “When You Believe”, balada da banda sonora original de O Príncipe do Egipto que juntou Mariah Carey a Whitney Houston num dos duetos mais inesquecíveis da música pop. “Quando Acreditas” é lindíssima nas vozes de Anabela e Lúcia Moniz, mas todo o percurso de Sara Tavares apontava nessa direção, não é? Ainda assim, não é de somenos que em 1996 (ano de edição do álbum), tenha dado voz a Esmeralda em “Longe do Mundo”, na dobragem portuguesa de O Corcunda de Notre Dame, uma canção cuja espiritualidade bem podia estar integrada no cânone de música cristã.
Musicalmente, o disco homónimo de Sara Tavares & Shout! reflete pouco o que seriam as peças fundamentais da sua obra, mas antevê alguns traços que persistiram nos 25 anos que se seguiram. A mistura de idiomas, neste caso do português e do inglês, demonstra já uma visão artística ancorada na fusão de expressões culturais – a sua música como produto daquilo que ela própria é. Apesar de ter continuado a sua jornada afastando-se progressivamente de canções que puxavam mais pelos decibéis que conseguia alcançar, Sara Tavares nunca largou a fé em Deus, pelo que todos os seus álbuns estão profundamente marcados por essa veia espiritual. Aliás, apesar de sair do gospel, é no álbum seguinte, Mi Ma Bô, que imprime a manifestação mais emblemática da sua vertente religiosa, mas disso falaremos na próxima edição.