(Atenção: este artigo contém spoilers para The Bear)
A Internet tem-se tornado cada vez mais num mar de ódio. Por vezes, até pode soar condescendente romantizar e enaltecer o pré-digital (tudo que existia antes do Facebook proliferar e de lá sair o resto), mas fica difícil quando muito do que por lá se propaga é desumano. Para além de nem ser saudável estar exposto a tanta chalupice gratuita, o efeito secundário mais agonizante de andar por pássaros azuis e companhia é o reforço do ceticismo de que a bondade ainda opera no ser humano.
Humanidade tanto pode referenciar-se à natureza humana como pode ser um adjetivo relativo ao sentimento benévolo e solidário para com os outros. Essa faceta parece estar a entrar em vias de extinção, ao ponto de que já não se vê apenas como senso comum, mas sim como uma virtude mui-valiosa. Se não a encontrarmos na vida real resta-nos ir procurar onde, em caso de carência, vamos ao encontro sempre que necessitamos de nos relembrar de quem somos ou esquecer aquilo que nos atormenta. Onde? Isso mesmo, nas artes. No ficcional que nos ajuda a refletir sobre o real.
No passado dia 23 de junho, estreou na Hulu a segunda temporada de The Bear. A série da FX, que chegou com pompa e circunstância ao pequeno ecrã, deliciou o público e a crítica com a forma frenética, emotiva e caótica – destaque-se o eufemismo – com que retrata o dia-a-dia de uma cozinha do cenário underbelly de Chicago. Seguimos Carmen Berzatto (Jeremy Allen White), um notável chefe de alta cozinha, que, enquanto batalha veementemente o luto pela morte do seu irmão, tenta seguir, adversamente, com o restaurante de sanduíches que lhe foi “deixado”.
Depois de oito episódios na primeira temporada, de muito suor, gritaria e insanidades fruto de relações interpessoais inflamáveis emocionalmente, chegamos a este segundo prato com o êxtase em alta para vermos o sonho de Carmy (alcunha de Carmen) ser materializado. Com isto também temos tempo para aprofundar (ainda) mais o teor traumático que é fácil de notar nas personagens e de ainda dar oportunidade a que estas, uma a uma, tenham o seu spotlight e merecido crescimento, amadurecimento e autorealização. Vemos o atribulado Richie (Ebon Moss-Bachrach), parente emprestado dos Berzatto, a tentar encontrar-se; a irreverente Sydney (Ayo Edebiri), uma chef talentosa mas inexperiente, a continuar a batalhar naquilo que acredita; a veterana e dualmente taciturna e carinhosa Tina (Liza Colón-Zayas) a ter o seu momento; o doce Marcus (Lionel Boyce), a prosseguir a sua veia de pasteleiro; e ainda a irmã de Carmen, Natalie (Abby Elliott), a tentar orientar-se pelo meio das burocracias chatas de restauração.
Ainda houve tempo para nos apresentar a novas personagens e para nos entregar dos melhores episódios deste ano – e quiçá, dos anos que se avizinham -, no “especial de natal” mais infernal e anárquico de que há memória (o sexto episódio da temporada). Não se pense que o que se escreveu sobre humanidade no início deste texto caiu do céu aleatoriamente. The Bear é um retrato explosivo de humanidade. Por mais gritos, conflitos, insultos e atitudes imorais que se veja, todas as personagens têm bom coração. Há um notável altruísmo em todos eles. São conscientes das suas fragilidades e imperfeições, reconhecem os seus erros e por mais difícil que seja controlarem-se ou que o seu temperamento dificulte, tentam sempre melhorar e caminhar adiante da sua melhor versão.
Para um leitor familiarizado com a Playback, talvez esteja a surgir a questão “Porque raio se está a falar de uma série de televisão numa revista de música?”. Pois bem, The Bear triunfa por uma remessa de fatores. Podemos enaltecer os diálogos régios pelo quão pujantes, mundanos e facilmente relacionáveis são; a direção endiabrada; as personagens aprazíveis; como todos estes elementos se fundem para fazer corroborar a tenacidade emotiva a que a série nos deixa sujeitos. Nós preocupamo-nos com estas pessoas, identificamo-nos com elas e, por sua vez, ao olhar para estes corações conflituosos que lá no fundo são sempre bondosos, vemos as nossas fragilidades e consequentemente refletimos sobre a nossa humanidade. Todas as ferramentas narrativas enumeradas são importantes, mas acredite-se que a carga emocional da série não seria a mesma sem mais um dos grandes trunfos de The Bear: a música.
O cinema e as produções audiovisuais sempre tiveram uma relação próspera com a música. Não só com as bandas sonoras, que por vezes, são por si discos soberbos mesmo retirando do contexto da película – já lá vamos -, mas também pelo uso de músicas que não foram concebidas em contexto do projeto em questão – needle drops. Estes podem ser usados para imergir o espectador num certo período histórico, para enaltecer uma cena, serem uma extensão dos sentimentos de uma personagem, para funcionar como trademark de algum motif recorrente… enfim, a lista estende-se. Dá-se um efeito recíproco, onde a música afeta a cena, mas a cena também afeta a forma como consumimos a música. Atente-se o poema sinfónico de Strauss, Also sprach Zarathustra, que hoje em dia é significado de grandeza, de algo colossal e glorioso, tudo porque Stanley Kubrick decidiu que esta fosse a theme do seu clássico 2001: A Odisseia do Espaço (1968). Daqui, é toda uma floresta pronta a ser desbravada pela criatividade de contadores de histórias.
Quem vê os nomes presentes nas soundtracks da primeira e segunda temporada de The Bear, parece que estas vêm diretamente de uma cassete de um cool kid melómano dos anos 80 e 90. Estão recheadas de muita guitarra e muita canção emotiva. Há até quem catalogue muita coisa daqui como dad rock. Só daí, é evidente que nomes como Pixies, Pearl Jam ou Weezer fazem parte da partitura. Talvez Christopher Storer, criador e um dos supervisores musicais da série (ao lado de Josh Senior), queira extrapolar aquilo que experienciou enquanto chicagoan que é. Não sendo surpresa que Wilco (curiosamente, dad rock!), banda de Chicago, seja um dos nomes mais recorrentes a figurar nos episódios. Malhas como “Via Chicago”, “Handshake Drugs” ou “Impossible Germany” são acompanhamentos esplêndidos para seguirmos os meltdowns de emoções e questionamentos identitários que vamos assistindo no ecrã – mas quem nunca sentiu isso a ouvir Wilco? (Já que se fala de Chicago, não espanta que enquanto sobrevoamos a cidade e acompanhamos o quotidiano das nossas personagens se escute Sufjan Stevens, em difusão de uma rádio local, com a canção – adivinhe-se – “Chicago”).
Mas as playlists de Storer têm acompanhamentos para todos os tipos de tensão. Na primeira temporada de The Bear escutamos ainda nomes como LCD Soundsystem para quando a voltagem aumenta ou até, espante-se, AC/DC. O melhor exemplo disso, e a faixa mais usada na série, é “New Noise”, dos suecos Refused, que serve sempre para sonorizar o caos infernal e reforçar que a pressão está on (não é por acaso que esta malha seja também a escolhida para a cena do dilúvio excremental no vencedor da Palme D’Or de 2022, Triangle of Sadness). Por outro lado, as músicas selecionadas por Josh e Chris acabam por evitar a necessidade de um compositor para a banda sonora, pois, até nos momentos mais dramáticos, eles sabem por onde escolher. Tome-se como exemplo o fatalismo em que se recebe “Hope We Can Again” dos Nine Inch Nails, no season finale da segunda temporada.
Há também que elogiar o à-vontade com que Chris e Josh utilizam o mainstream, usando-o para transcender o impacto de cenas ou pelo simples mecanismo de ser mais apelativo. Van Morrison, Radiohead ou The Rolling Stones são alguns dos nomes que provam isso mesmo, motivando um paralelo com o que é feito, por exemplo, no filme Mommy de Xavier Dolan, com um clímax ao som de “Wonderwall” dos Oasis. Em The Bear também se espreme a acessibilidade e o quão cativante uma música pop mainstream consegue ser, impactando pelo inesperado e virtuando pelo quão incidente essas escolhas conseguem ser para a emoção que se pretende emanar.
Veja-se a cena do sétimo episódio da segunda temporada em que Richie se liberta a cantar efusivamente “Love Story (Taylor’s Version)” de Taylor Swift enquanto conduz. Relembre-se que Richie, nos primeiros episódios da primeira temporada, “apaziguou” um conflito entre geeks de um videojogo arcade ao disparar um tiro para o ar com a sua arma de fogo. Que não se pense que a cena se trata do clichê cómico “homem bruto a ouvir música fofinha”. Não. Em The Bear, respeita-se a canção; aliás, enaltece-se-la, à medida que a música também enaltece a cena com o seu refrão orelhudo e aquela pretensão comercial à la popstar gigante. Claro que há a consciência por parte dos produtores de que tornar Richie num Swiftie é meio caminho andado para gerar discourse online (bem sucedido), mas esta cena revela muito sobre o momento que este vive: solto, sem as amarras do seu vazio motivado pelo seu temperamento, problemas conjugais e o suícidio do seu melhor amigo. Está finalmente realizado e com vontade de ver o próximo dia raiar. O Richie da primeira temporada não cantava Taylor Swift, mas este canta – e ainda bem.
O que distingue o uso de música em The Bear de outras séries não é só ter boa pastilha desde o primeiro episódio, mas sim como esta representa uma extensão do paradigma emocional da série. Nem sempre no sentido lato – Richie não estava num romance de secundário estilo Romeu e Julieta, como já vimos -, mas na ambiência e naquilo que estes sons nos fazem sentir. Exemplo disto é a quantidade de vezes que escutamos a canção “Strange Currencies”, dos lendários R.E.M., na segunda temporada do enredo.
A letra de “Strange Currencies” serve que nem uma luva à complicada e difícil de catalogar relação entre Carmy e Claire (Molly Gordon) – “I don’t know why you’re mean to me / When I call on the telephone / And I don’t know what you mean to me / But I want to turn you on, turn you up, figure you out / I wanna take you on”. Porém, quando escutamos a guitarra desértica da cantiga e os cantares dualmente desesperados e reconfortantes de Michael Stipe, bem como a energia amorosa de uma canção apaixonada, sentimos, novamente, o amor. O amor que, de uma maneira ou outra, todas as personagens sentem umas pelas outras e pelo restaurante que ali vai nascendo. Sente-se o amor delicado que o desajeitado Pete (Chris Witaske) nutre por Natalie; o amor que Marcus esconde (mal) de Sydney; o que Sidney sente pela cozinha.
Curiosamente, é outra faixa dos R.E.M. que termina a segunda temporada, a beatífica “Half a World Away”. Mais uma vez, uma música guiada por guitarras, com uns bandolins danados a elevarem a melodia e um Stipe possante e melancólico a cantar letras como “This could be the saddest dusk I’ve ever seen / I turn to a miracle, high-alive / My mind is racing, as it always will / My hands tired, my heart aches / I’m half a world away, here in my head”. É uma definição certeira do que vemos. Depois de se atirarem aos leões, vemos o desgaste emocional da equipa do ex-The Beef, agora The Bear (prestes a inaugurar), à medida que percebemos como estes deverão entrar na terceira – ainda não confirmada, mas quase certa – temporada: distantes, alienados, ofuscados pela incerteza e nervosismos do que aí vem. Mais um caso de como este binómio música-cena funciona reciprocamente.
The Bear toca-nos por nos representar. Eu, pessoalmente, sei estrelar um ovo e pouco mais – modesto, até me safo. No entanto, The Bear nunca foi só sobre comida. Sim, os pratos fazem crescer água na boca e dá para contar pelos dedos duma mão e ainda sobrar o número de cenas em que não está presente uma cozinha. Mas The Bear é sobre ser-se humano. Imperfeito, descontente de quem se é, a tentar ser-se melhor e batalhar connosco e com os outros por isso. Quem não se relaciona com auto-sabotagem, inseguranças, autodepreciação, luto, paixões, ou quem nunca discutiu de forma gritante com quem mais ama? Evoluir, aparar falhas e imperfeições dói e magoa quem nos rodeia. Faz parte.
Enfim, música, não é verdade? Ser melómano e cinéfilo, sempre indeciso entre no qual depositar mais amor, tem os seus bons momentos. The Bear é um deles. Pegando nestes temas, música, humanidade e audiovisual, recordo o meu filme favorito de 2022, Aftersun, realizado por Charlotte Wells. Todavia, já que falamos de séries, faça-se então o que estas nos fazem a toda a hora: largar um belo de um cliffhanger. A música em Aftersun também é dos maiores motivos para o seu triunfo, de uma forma bem diferente e igualmente fascinante comparativamente com The Bear. Pensarei sobre isso…na próxima edição. Não percam a próxima Playback porque nós, também não.