Começar a explorar uma discografia extensa é algo empolgante, mas intimidante para qualquer melómano que, como eu, sinta um fascínio pelas obras dos nossos antecessores. No meio destas obras o nome de Nick Cave & The Bad Seeds surge inevitavelmente como um pilar imponente da música alternativa. Certo dia deparei-me com este nome e, com ele, esse mesmo desafio.Enfrentar um catálogo que ultrapassa os 15 álbuns pode ser uma tarefa hercúlea para alguém despreparado. Por onde começar? Pela ordem cronológica de forma a acompanharmos a evolução do artista? Ou pelos álbuns mais acessíveis e depois partirmos para os mais desafiantes?
Optei pela primeira abordagem. A primeira audição do seu primeiro disco, From Her to Eternity, foi… difícil. Abrindo com uma versão de “Avalanche” de Leonard Cohen, desconhecida para mim na altura, fui imediatamente confrontado com tambores caóticos e a voz rouca e rasgada de Nick Cave, cantada com uma teatralidade desconcertante que o Eduardo de 18 anos não estava ainda preparado para digerir. Depois de outra tentativa com a faixa com o nome do título, desisti. Encarei aquele álbum como um enigma musical, um desafio ao meu paladar musical. Decidi dar-lhe tempo, com a esperança de voltar mais tarde, mais maduro e preparado para o compreender.
Numa noite a deambular no YouTube, tropecei numa performance ao vivo de “Jubilee Street”, uma música de um disco bem mais recente de Nick Cave e dos seus Bad Seeds, Push the Sky Away. A repetição hipnótica do riff, a intensidade crescente, e a presença magnética de Nick Cave no palco tornaram aqueles 10 minutos numa experiência transcendente e nesse momento aconteceu o que chamamos de “clique”.
Determinado a mergulhar novamente, procurei outro álbum para ouvir que fosse representativo da sua sonoridade e cheguei a Let Love In. E que álbum! Se From Her to Eternity era uma tempestade caótica, Let Love In era uma dança sombria perfeitamente coreografada. A linha de baixo de “Do You Love Me?” conquistou-me imediatamente, enquanto as letras exploram temas de amor em todas as suas facetas mais sombrias, dor, obsessão, espiritualidade e, claro, um toque arrojado de violência. “Loverman” e “Thirsty Dog” são brutais e cruas, enquanto “Ain’t Gonna Rain Anymore” transporta uma melancolia pungente. E então há “Lay Me Low”, que consegue ser, simultaneamente, espiritual e teatral. De repente, percorrer a discografia deixou de parecer assustador e tornei-me um acérrimo fã de Nick Cave, percorrendo lives antigas em Berlim e qualquer tipo de projeto minimamente relacionado com ele.
Por fim, restava-me consagrar este matrimónio com este novo artista favorito com um concerto ao vivo. Em 2022, desloquei-me ao Porto com o intuito de assistir ao seu concerto na edição desse ano do Primavera Sound.
Na colina do Parque da Cidade, encontro-me entre uma multidão a guardar lugar para um concerto com grandes expectativas. Ao meu lado, alguns veteranos esperam pacientemente, trocando memórias de outros tempos e de como já tinham visto Nick Cave em palcos bem menores, marcados pela energia punk e provocadora de toda a banda.
Não resisto e intrometo-me na conversa e peço-lhes mais pormenores dessas histórias que me estavam a deixar encantado. Com entusiasmo, contam-me que, numa dessas noites memoráveis, os Mão Morta, banda da minha cidade, abriram o espetáculo. Os meus olhos brilhavam de admiração enquanto imaginava a cena.
A conversa ajuda o tempo passar e entra então Nick Cave no palco com um pontapé no ar gritando “Get ready for love!” com uma energia avassaladora.
Naquele dia, senti-me parte de um ritual quase sobrenatural onde a intensidade fluía entre o palco e o público como uma corrente elétrica. Um mar de vozes unidas em devoção a músicas que, à primeira vista, poderiam parecer restritas a um nicho. Canções como “From Her to Eternity” ou “Tupelo” – densas, sombrias, aparentemente destinadas a ouvidos seletos – transcenderam o seu contexto original e tornaram-se em hinos, algo que achei fascinante por estarmos a falar de músicas que inspiraram géneros como o noise punk e o rock gótico. Não há palavras ou gravações que façam justiça. É preciso marcar presença numa destas missas para entender.
Com mais de 40 anos de carreira, Nick Cave continua a desafiar as expectativas e não há sinais de vacilo, de cansaço, de fórmulas gastas. As fórmulas foram sempre renovadas e só aqueles sortudos que já o acompanham desde a sua primeira vinda a Portugal em 1988 é que tiveram a oportunidade de ver a sua renovação. Cada gesto, cada verso, é carregado de uma autenticidade que magnetiza mesmo quem chegou ao concerto sem conhecer a fundo o seu repertório. Vemos partituras a voar ao pontapé, microfones a saltar e Nick a interagir com o público numa plataforma, característica dos seus concertos, colocada encostada à grade que separa o público do palco. E tudo isto enquanto está de fato elegantíssimo.
Mesmo sendo o epicentro do espetáculo, seria impossível imaginar a experiência de um concerto sem a sua backing band, os Bad Seeds. Esta banda, que já contou com inúmeros músicos lendários, como Blixa Bargeld ou Mick Harvey, continua a ser uma das melhores backing bands da história da música, e ao vivo, essa excelência é inegável.
Entre os membros atuais, destaca-se Warren Ellis, uma figura que parece ter saído de um conto mitológico. Com a sua barba imponente e postura quase demoníaca, ele é o complemento perfeito para Cave. Mesmo assim a característica que destaca mais Ellis é o som do seu violino. Ligado a pedais de efeitos, torna-se capaz de produzir sons que ressoam como se viessem do purgatório que envergonham qualquer guitarra. O caos controlado que ele cria dá às músicas de Cave uma dimensão quase muito barulhenta.
Nesse concerto de 2022, todos cantaram, gritaram e choraram, incluindo o próprio Nick. Na época, o australiano vivia uma das fases mais amargas da sua vida, marcada pela perda trágica do seu filho Arthur em 2015. Essa dor transbordou para a atuação, trazendo uma vulnerabilidade tangível que ressoou com o público. A performance de “I Need You”, uma música dedicada ao filho, foi especialmente arrebatadora. Sozinho ao piano, deixou que as lágrimas escorressem enquanto cada nota parecia carregar o peso da perda.
Até àquele momento, essa música tinha-me passado ao lado. O disco de onde tinha sido retirada, Skeleton Tree (2016), nunca me tinha cativado. Até aí. Ao vivo, aquele instante de pura honestidade mudou isso. Skeleton Tree ganhou um novo significado para mim, transformando-se numa obra carregada de emoção que eu presenciara ao vivo.
No regresso a casa, levava não apenas a memória do concerto, mas também novas ligações emocionais com músicas que agora faziam parte de mim.
Quando o concerto terminou, uma mistura de êxtase e distração impediu-me de reparar nas horas. Só depois percebi que, na mesma noite, tinha perdido o espetáculo dos black midi, algo que normalmente me deixaria desolado. Mas como é que poderia lamentar isso depois de assistir ao melhor concerto da minha vida?
Naquele momento, fiz uma promessa a mim mesmo: veria Nick Cave sempre que tivesse oportunidade, sem exceções. Uma promessa que acabaria por quebrar por limites impostos pela minha carteira, e não pela falta de vontade, quando marcou novamente presença em solo português no Kalorama desse mesmo ano.
Para compensar, dois anos depois foi confirmado o novo regresso de Nick Cave a Portugal para apresentar o mais recente álbum que fez com os Bad Seeds, Wild God. Foi o primeiro concerto em nome próprio de Nick Cave & The Bad Seeds em Portugal desde 2008 – desde aí, todas as passagens por terras portuguesas foram em festival. Momento especial, portanto. Ser na MEO Arena, uma das piores salas destes país, não impediu a deslocação a Lisboa. Para ver Nick Cave, qualquer lugar serve.
No dia 27 de outubro, as portas do MEO Arena abriram às 18h e lá fui eu, numa corrida que mais parecia o aquecimento para uma maratona. Ainda faltavam duas horas para o início do espetáculo, e a antecipação fazia o tempo passar mais devagar.
Confesso que Wild God, o mais recente álbum da banda, não está entre os meus favoritos. Mas se há algo que aprendi com os concertos de Nick Cave é que as músicas ao vivo dele passam de banais para as minhas favoritas. E foi exatamente isso que aconteceu. O espetáculo foi uma maratona, quase três horas de música, passando por toda a grande variedade da discografia de Nick Cave and The Bad Seeds, além da execução quase integral de Wild God.
“Conversion” foi um espetáculo à parte, com uma explosão do coro que tornou a experiência ainda mais íntima e cativante. Já “Frogs” e “O Wow O Wow (How Wonderful She Is)” trouxeram uma melancolia sublime, especialmente esta última, uma homenagem tocante a Anita Lane, membro dos primeiros Bad Seeds e ex-parceira de Cave. Músicas como “Joy” e “Cinnamon Horses” apresentaram um tom mais gospel e otimista, contrastando com a intensidade emocional característica de Nick Cave. Estes temas realçaram o tema de “otimismo radical” presente no álbum e realçaram ainda a ideia que tinha de Nick Cave: a sua incapacidade de fazer as suas músicas soarem mal ao vivo.
Foi um feito impressionante, especialmente quando se pensa que Cave, aos 67 anos, conduziu o espectáculo com uma energia incansável, sem sinais de fadiga ou pausas estratégicas. Eu, com os meus 22 anos, mal consegui assistir ao concerto sem interrupções para uma visita à casa de banho, enquanto que ele parecia imortal, como se o palco fosse a fonte da sua imortalidade. Talvez tenham sido as amêijoas lisboetas que o revitalizaram.
Mesmo assim, por mais que admire a fase atual de Nick Cave, não consigo evitar que o meu coração pertença à sua versão punk, aquela fase endiabrada, com t-shirts ACAB, calças de licra e o inconfundível aroma de cerveja derramada.
45 anos depois, é quase surreal comparar essa imagem ao homem que hoje domina os palcos dos mais prestigiados auditórios do mundo. Vestido de fato e gravata, cabelo meticulosamente penteado, sentado ao piano e acompanhado por orquestras. Como é que chegámos aqui? Será que ele trocou o espírito punk pelo politicamente correto? E o que diria o jovem Nick deste futuro? Talvez nem tivesse imaginado viver tanto tempo, quanto mais ver-se nesta posição tão distinta.
A verdade, no entanto, é que esta transformação não foi abrupta. Foi uma evolução natural, moldada pelas voltas da vida. Drogas, amor e luto, a santíssima trindade que tantas vezes alimenta a mais variada criação artística, que naturalmente há-de ter deixado feridas profundas e o levaram a esta maturidade artística, sem nunca perder o seu carisma, alcançando uma profundidade que poucos artistas conseguem. É um privilégio raro poder assistir a este titã, seja em bares malcheirosos ou nos melhores auditórios.
Nick Cave é uma figura que desafia qualquer tipo de definição simples e reduzir a sua carreira ao título de rockstar seria um erro colossal. O que mais impressiona em Cave não é apenas a sua música, mas a sua capacidade de explorar a condição humana nas suas várias facetas, com uma intensidade e uma poesia que fazem qualquer tentativa de descrever o seu trabalho parecer superficial.
A sua música é, ao mesmo tempo, uma viagem e um enigma. Há uma escuridão palpável nas suas letras que nos atrai como uma força magnética. Cave não se limita a contar histórias; ele faz-nos vivê-las, muitas vezes de uma forma desconcertante.
Não importa o quanto a sua música tenha evoluído ou que a sua estética se tenha suavizado com o tempo. A sua essência continua intacta: arte que nos desafia a olhar para o abismo e encontrar beleza até nas suas profundezas mais sombrias.
Assim, enquanto o mistério que envolve a sua arte se mantém, é isso que o torna ainda mais fascinante. Nick Cave não é apenas um músico. É um contador de histórias, um poeta do caos e da calma, um Artista com A grande que continua a redefinir o que significa ser um poeta livre. Continuo a ouvir e a esperar, ansioso, por onde ele nos levará em seguida.