O desconhecido. Mar nunca dantes navegado e que nunca será inteiramente explorado.
Existe uma relação de amor-ódio entre nós, seres pensantes, e o que há além daquilo que o nosso intelecto toma como familiar, trivial, conhecido, manifestando-se desde a nossa infância até aos nossos últimos dias. Na infância, teme-se pela ausência de luz. À medida que envelhecemos, receia-se o término de tudo isto. Entre estes tormentos, muitos outros hão de surgir, talvez com muitos (ou quase todos) a partilharem a mesma origem: o desconhecido.
O doloroso desconhecimento do que pode vir está na origem de muitas das nossas ansiedades. Porém, este ínfimo espaço que tanto nos poderá assustar acaba por também ser o combustível responsável por andarmos por aí. A parte do amor pelo desconhecido é precisamente o poder que este tem de nos enriquecer, ora por satisfações, ora por desilusões. Cada nova experiência molda-nos e contribui para aquilo que somos (e que vamos ser). Por isso, desbravar o desconhecido é das coisas mais intrigantes que podemos fazer.
Na Playback, diz-se que “Onde há música, há vida”, e onde há vida, há muito que se desconhece. Nós, entusiastas da primeira arte, vemos como propósito constante a exploração do que não conhecemos. Seja ouvirmos um álbum bem falado nas lides musicais, ouvir um disco porque a capa nos intrigou, ou ouvir recomendações de compinchas, tudo isto são aventuras, que nos impressionando ou não, acabam por construir a nossa identidade.
Este fenómeno (o de descobrir música) muitas das vezes nem sequer é premeditado. Acontece quando ligamos uma rádio, quando mordemos o diabólico isco das redes sociais, ao deambular por sítios públicos musicados, ou até via televisão. É evidente que é mais provável sairmos satisfeitos de uma experiência se esta tiver um contexto mais preciso e direcionado aos nossos interesses. Acontece muito nos sítios onde se vive a música (festivais, por exemplo), onde para assassinar tempo, acabamos por nos deparar com bandas que talvez nunca chegassem até nós de outra maneira.
Antigamente, isto é, antes dos Napsters desta vida terem facilitado a disseminação de música, ir a um concerto era uma das formas mais fáceis de conhecer bandas e projetos musicais. E para lá se ia, com pouco ou nenhum conhecimento sobre as bandas em questão, pois não havia a acessibilidade de encontrar os trabalhos “gratuitamente” através do poder das Internets, nem que fosse só para saber se seria interessante assistir às suas atuações ou descobrir qual a setlist mais comum da banda via setlist.fm.
Descobrir música ao vivo é algo delicioso, e talvez assim o seja por ter um grande risco a si associado. Uma performance ao vivo é um momento único, onde uma banda pode dar outra dimensão à sua música e afastar-se daquilo que é a sua correspondente versão de estúdio. Quantas vezes já saímos desiludidos de um concerto por uma banda não fazer jus à qualidade do seu reportório? Ou, vice-versa, quantas vezes uma banda nos surpreendeu por, ao vivo, exceder e entreter muito mais do que os seus discos?
Contudo, em ambos os casos, existe sempre uma expectativa, uma pré-noção, um conhecimento antecipado daquilo que poderemos vir a experienciar. Mas quando isto não existe, a nossa experiência está inteiramente dependente dos artistas que ali, momentaneamente, nos exibem as suas valências. Quanto mais aleatória for a ocasião, maior pode ser o seu retorno. Na moeda inversa, se o concerto for mau, não é o fim do mundo e não deixa particular mágoa alguma, pois a expectativa era inexistente. Agora, um bom concerto, quando não se tem expectativas, é um aconchegar para os nossos corações musicais. Nestes casos, a surpresa ou desilusão poderá surgir depois, ao investigar a discografia, mas quando ao fazê-lo acabamos por corroborar o interesse que nutrimos ao vivo, somos banhados por uma satisfação inigualável.
Falemos então desta jarda de concerto.
No passado fim de semana, larguei o meu Algarve e rumei em direção a Pombal. Ao chegar, recebi uma chamada de um primo, quase uma quinzena de anos mais velho, a convidar-me para a ir a um concerto de uma banda de Castelo Branco, que ele desconhecia, mas que iam atuar num sítio que lhe era querido e estava curioso para saber como aquilo estava. Para adicionar à sua intriga, ele ficou a saber do concerto porque um dos integrantes lhe deu um pin (sim, aparentemente ainda se faz disso).
O concerto era na ADAC (Associação Desportiva e de Ação Cultural da Charneca), um epicentro do undergredo (mistura exorbitante do underground e do degredo benigno) do cenário do metal de há uns anos a esta parte. Ao telefone, o meu primo dizia-me: “Pelo que estou a ouvir acho que são uma banda de pós-rock”. Porém, ao saber o nome da banda – já lá vamos! -, e ao cuscar as suas redes, fiquei com algumas dúvidas sobre tal afirmação. Pareciam-me caminhar mais para os lados do rock psicadélico. Todavia, surpresa das surpresas – nenhum de nós estava errado. No caminho até à venue, foi-me contada a história da ADAC. Dos concertos e dos convívios, das bandas que por ali passaram e da importância que esta associação teve no desenvolvimento e entretenimento artístico-cultural dos jovens pombalenses e arredores. Ao chegar, no rés-do-chão, ouviam-se afinações, acendiam-se cigarros, tiravam-se imperiais finos (desculpem) e tagarelava-se enquanto mais de duas dezenas de pessoas aguardavam pelo início da atuação da banda. Mas falta aqui responder a uma pergunta importante: quem era a banda?
Os Wakadelics, banda proveniente da Wakalândia, região do imaginário albicastrense, aterraram na terra que detém o melhor arroz de tomate do país (sim, é uma referência ao Manjar do Marquês) para fazerem chover martes. Em palco, encontrava-se a formação atual da banda fundada em 2016: Chico no baixo, Guilherme Lopes na guitarra (que segundo os integrantes não necessita de ser afinada), Ricardo Brito na bateria – podem também apanhá-lo nas percussões de outros projetos como Fugly -, e o guitarrista e vocalista João Bargão, o shôr responsável pelo pin que originou a cadeia de eventos que me faz estar a escrever-vos. Além disso, e não menos importante, a banda tem ainda um quinto elemento, Miguel Fernandes (aka Ozzy), oleiro responsável por visualizar as sonoridades aventureiras da banda ao longo do concerto. Se no início se deparava apenas com uma tela branca à sua frente, à medida que este navegava pela Wakalândia, traçava brutos e belos riscos que ajudavam a figurar a identidade sónica do que se musicava em palco.
Falemos então desta jarda de concerto. Os Wakadelics fizeram-nos entrar no seu universo com um rock psicadélico seguro, que me fez crer no meu pequeno prognóstico. Contudo, devia tê-lo deixado para o final, pois o que se sucedeu – a abertura de rompante das portadas wakadelianas -, tirou-me o tapete e deixou-me de queixo caído. Embarcamos numa viagem sonoramente alucinogénica que visitava tudo o que era estilo e que nunca tirou o pé do acelerador (vá, só quando a luz do recinto foi abaixo na segunda ou terceira música, tal era a voltagem que empenhavam, permitindo-nos tempo de refrescar gargantas e siga para bingo). Voou-se de uma espécie de rockabilly contemporâneo nos ácidos para um punk ágil, onde se variava ritmos e intensidades, mas sempre dando perninhas ao psicadélico (talvez, O elemento transversal ao seu catálogo), deixando a porta aberta para cavalgar em direção a outras noções estilísticas sonoras. A certa altura, assumi simplesmente que não fazia ideia do que poderia surgir a seguir, quando após uma pujante experimentação metálica e leónica, se caprichou um ska apunkalhado e divertido.
Sempre com pouco tempo para ausências de som, fluindo por vezes quase instantaneamente de faixa para faixa, a insanidade musical onde cada pedaço musical era musculoso e eclético foi progredindo. Consistentemente sob uma lente psicadélica, escutaram-se momentos a puxar ao pós-rock, ska, indie rock, pós-punk, traços de hardcore e space rock, e até mesmo pitadas de emo e alguma influência do rock clássico português. Muito tentei afunilar tudo isto num só estilo, agrupando estes nomes e separando-os por hífenes, mas bastou-me investigar um bocadinho para encontrar como estes seres wakadelianos gostam de catalogar a música que fazem: caldeirada albicastrense (é uma excelente definição). No final, a insanidade ruidosa que se fez sentir atingiu picos de adrenalina impróprios para cardíacos, culminando numa dissociação total das barreiras sonoras através dos efeitos galácticos em que se ensopou o baixo (talvez sejam os efeitos secundários ao passar pelo portal de saída de Wakalândia), dando a nota final para um concerto que mais pareceu uma viagem independente, um memoir de um viajante que nos escrevia diretamente de terras wakadelicas.
Assim que cheguei a casa, foi tempo de tirar a limpo se realmente a descoberta que tinha em mãos era tão valiosa como demonstrou ser ao vivo. Apesar do reportório ainda curto e limitado, contando com quatro singles e uma performance gravada ao vivo (similar àquela que assisti), não é difícil de ratificar viçosamente o interesse que se teceu em Pombal (felizmente, parece que o disco de estreia vem aí no próximo mês de maio). Todas as faixas que estão cá fora comprovam o caráter eclético dos Wakadelics, que entre o sideral e o onírico, constroem paisagens coloridas, pintadas por riffs monstruosos, baixos alienígenas e percussão bipolar e maníaca. Parece que esta Wakalândia é uma Amazónia musical com uma biodiversidade sonora além-metafísica, que nos alicia a não sairmos de lá…
Iremos sempre desconhecer mais do que aquilo que conhecemos e isso é catastrófico. Mas joguemo-nos então a esse mar para tentar descobrir o máximo que conseguimos enquanto aqui estamos. Quanto mais fundo mergulhamos, mais escuro estará, menos iremos conhecer, mas talvez daí possa surgir algo que nos possa satisfazer. A aleatoriedade da vida tem muito que se lhe diga. Mas por vezes, nas ocasiões e lugares mais aleatórios, é onde se passam os melhores momentos. Eu descobri os Wakadelics. Se calhar muitos dos que lêem, também. Portanto, fica o desafio. Aventurem-se! Muitas bandas que desconhecem estão à vossa espera num local e ocasião que há de surgir, mas que, por enquanto, ainda se ignora. Mas isso é a magia do desconhecido, não é?