O fim de uma era: um adeus agridoce ao Mercado Negro

Há ligeiramente pouco tempo (em meados de dezembro passado, talvez), recordo-me especificamente de um dia acordar com raios de sol a perfurar a janela do meu quarto e esboçar um sorriso de contentamento. De folga do trabalho, aproveitei para passar o dia com uma amiga pelas ruas de Aveiro. Entre jolas e dois dedos de conversa, falou-se sobre o Mercado Negro, um dos espaços mais emblemáticos da cultura aveirense. É aqui e agora que confesso, sem uma ponta de orgulho, que nunca tinha entrado no Mercado Negro até esse mesmo dia. Os anos passavam e eu apenas ia ouvindo e memorizando histórias e experiências vividas por outros. Se se estiverem a questionar do porquê, lamento, mas não acho que tenha uma resposta que não soe simplesmente a desculpa esfarrapada. Já culpei o facto de não viver no coração de Aveiro, a falta de oportunidades, a falta de companhia, e até a mim mesma, porque quando se quer, há sempre solução – não é o que se diz por aí? Mas chega de me massacrar, porque também se diz que mais vale tarde do que nunca e, na verdade, ainda bem que esse dia aconteceu.

Entrei no Mercado Negro pela primeira vez. Subi aquelas escadas, atravessei aqueles corredores, admirei aqueles tetos trabalhados, percorri cada sala, observei detalhadamente cada obra de arte com que me ia deparando, cruzei olhares com quem estava presente, e tudo pela primeira vez. Ali, naquele momento, consegui perceber o fascínio que tanta gente sente por aquele espaço. Em dada altura, lembro-me da minha amiga me ter dito que o Mercado Negro ia fechar, ou pelo menos era o que lhe tinha chegado aos ouvidos. Os dias foram passando e não se ouvia falar sobre o assunto. Chegámos a colocar a hipótese de se tratar apenas de um rumor, ou talvez apenas não quiséssemos acreditar.

Mas, infelizmente, aconteceu. Na passada terça-feira (23), o Mercado Negro fechou oficialmente as suas portas, no mesmo ano em que completaria dezoito anos de existência. Ah, claro, para dar lugar a um alojamento local. Surpreendidos? É que eu não. Porra. Parte-se-me o coração por ter que assistir a este constante desmoronamento do mundo da cultura e da música. Não faz muito tempo que anunciaram que o STOP poderia encerrar, escorraçando sem dó nem piedade os músicos e lojistas que coabitam naquele espaço. E que o M.Ou.Co e a Casa Independente irão possivelmente seguir o mesmo caminho. A especulação imobiliária fez mais uma vítima mas, desta vez, em Aveiro, aquela que se apelida de capital da cultura. Irónico, não é?

Não estava propriamente planeado trazer-vos este tema, até me sugerirem fazê-lo (obrigada, Miguel!). Na verdade, não era algo que não me tivesse já passado pela cabeça, mas não achava que fosse a pessoa indicada para tal, pelo motivo supracitado acima, então a ideia ficou apenas guardada na gaveta. Contudo, quando o Miguel me desafiou, senti uma necessidade de seguir com isto para a frente, fosse de que forma fosse – e assim foi. Fui-me lembrando de alguns amigos, e de algumas caras conhecidas, e pedi-lhes umas palavrinhas sobre o capítulo final do Mercado Negro. Tanto a sentir. Tanto a dizer. O resultado é este: uma ode ao Mercado Negro e um movimento de revolta. Honestamente, não sei se salvar o Mercado Negro ainda é uma possibilidade, mas podemos (tentar) lutar com o que estiver ao nosso alcance. É o que estou a fazer aqui: dar voz àqueles que não querem ser silenciados. Uns com um nó na garganta menos difícil de desatar do que outros, mas os sentimentos são comuns a todos: gratidão, saudade, tristeza e frustração. Há também uma petição a decorrer, caso queiram entrar neste barco, prestes a afundar, connosco.

Sendo assim, abaixo, segue-se um turbilhão de pensamentos vindos de seis pessoas com o coração partido enquanto dizem adeus à sua eterna “casa”. Obrigada.

João Ferro, aka Ferro (músico)

O encerramento do Mercado Negro vem como mais um murro no estômago à cultura underground Aveirense, numa luta injusta e altamente devastadora. 

Não me recordo de quando subi aquelas escadas pela primeira vez, as mesmas que, desde puto, me levavam para uma casa fascinante onde me sentia confortável e seguro. Uma casa que me acolhia num solitário copo de vinho, ou numa mesa cheia de amigos. Uma casa onde vi dezenas de concertos, muitos dos quais sem conhecer, de todo, as bandas. Uma casa onde conheci e criei laços com diversas pessoas, pois não se pode falar no Mercado sem se falar das pessoas. Bartenders, programadores, clientes, e etc, são as pessoas que fazem e sempre fizeram o Mercado Negro.

Lembro-me de quando decidi ser artista. Foi o Mercado Negro que, aos meus 18 anos, me abriu as portas e realizou o meu sonho de pisar um palco em nome próprio pela primeira vez. Guardo todos estes sentimentos vividos com muito carinho e gratidão, sentimentos que se tornam cada vez mais difíceis de replicar em alguém com o desejo de partilhar com a cidade a sua arte. 

Hoje, o artista Aveirense vê-se renegado e desprovido de mais uma plataforma de cultura emergente da cidade do sal. Uma capital de distrito que se proclama capital da cultura, mas que vira as costas à mesma e abraça um plano intensivo de gentrificação e um paraíso turístico sem alma e sem vida. A minha força está com aqueles que continuam a remar contra a maré em tentativas de dinamizar uma cidade que não nos quer. Viva os ovos moles, os moliceiros e a especulação imobiliária.

Ester Simões (frequentadora do espaço)

Não me lembro do meu primeiro dia no Mercado Negro, já lá vão uns anos, mas lembro-me-

De ser mais nova e esperar sentada nas escadas, ao final da tarde, para que as portas abrissem para ir “estudar”. Do pôr do sol. Das conversas à varanda, da luz quente e baixa, dos tetos trabalhados, do papel de parede, do chão que estalava a cada passo, da tosta portuguesa e das paredes desenhadas a caminho do WC. Das salas cheias de arte e das pessoas que eram arte. Do longo corredor até ao bar onde se trocavam olhares, desviavam-se passos e equilibravam-se copos. 

Era o lugar das conversas com os amigos antigos e das gargalhadas com os amigos novos. Se aquelas paredes falassem… 

Era casa de tanta gente e para tanta gente. 

Obrigada pelas memórias. Um brinde eterno a ti, Mercado.

Inês Amaral (frequentadora do espaço)

O Mercado Negro sempre foi para mim um ponto de encontro em Aveiro. Mesmo sem combinar nada, sabia sempre que seria ali que ia encontrar os meus amigos. Aquelas paredes ouviram muitos risos, segredos e desabafos. Foi lá que o meu namorado me viu pela primeira vez, foi lá que vi concertos de bandas que ainda hoje acompanho e foi lá que fiz amigos para o resto da vida.

É com muita tristeza que recebo a notícia do seu encerramento. Aveiro perdeu um ambiente multicultural, de entretenimento, lazer, e oportunidades. Um pouco irónico para aquela que se intitula a capital da cultura. Ficam as memórias e o sabor amargo de uma luta contra a pressão imobiliária, que está longe de ver um fim.

Rodrigo Capeloa (frequentador do espaço)

Mercado Negro, ou simplesmente “Mercado”. Eu sempre gostei da sigla MN, acho que as duas letras combinam tão bem esteticamente. Por falar em estética, essa sim terá sido sempre o primeiro impacto que o MN causava. Ninguém é indiferente àqueles tetos trabalhados em gesso com o seu ar de quem guarda uma parte da história de Aveiro por contar. E assim é, entre as fendas que sobrevivem ao desgaste do tempo e a cor do gesso provocado pelas noites em que ali se fumou tanto e tanta coisa, existe certamente muita história para contar num daqueles que é o maior edifício do histórico bairro da Beira Mar. Caso nunca tenham reparado, é visivelmente um dos mais largos naquela primeira linha de edifícios que serve como cartão de visita da cidade e da região. O meu pai refere-se sempre ao espaço como memória de outros tempos em que ali frequentou o ISCIA – Instituto Superior de Ciências da Informação e da Administração. Hoje com aquele papel de parede florido que me estraga as memórias da parede vermelha mal pintada, onde me lembro de ver um concerto delirante de “Sindrome”, era a sala do diretor da escola, provavelmente como prática normal da altura, o Sr. Director também ali fumava. 

Sim, o MN já foi menos embelezado do que é hoje, na minha opinião mais enquadrada com aquilo que era uma verdadeira Associação Cultural, e não um espaço tão atraente a turistas e estudantes universitários estrangeiros. Algumas das salas que hoje vemos decoradas com temáticas “cubanas” ou fechadas, foram não há muito tempo diferentes lojas e estabelecimentos de variados projectos. Lembro-me de um concerto de Coelho Radioactivo na inauguração de uma loja de skate, onde se podia, só porque sim, ir lá à tarde e tocar guitarra com um enorme amplificador Marshall.

O Mercado Negro foi aberto em 2006, e embora não me lembre ao certo que idade tinha quando lá fui a primeira vez, sei que fui com os meus pais ver um evento da AJA (Associação José Afonso), uma qualquer tertúlia de poesia e música de intervenção, de um tal Pedro Branco, por sinal filho de José Mário Branco. Quando lá entrei, sabia que não tinha idade para estar ali, ou pelo menos percebi que estava a conhecer algo novo, um ambiente novo ao qual não estava habituado. Não tivesse sido até um momento de grande impasse para a organização da AJA à entrada do auditório (com uma configuração também ela bem diferente de hoje em dia). Quando os meus pais perguntavam se a criança também pagava, realmente aquilo pareceu-me muito “revolucionário” para mim na altura, se soubesse o que queria isso dizer naquele contexto “político”, mas foi certamente revolucionário para mim. Os tempos seguintes foram agitados na minha mente ao entender o que ali se passava naquele espaço com um nome tão estranho e até ter idade de começar a frequentar o espaço pelo meu próprio passo. 

Lá deve ter chegado a altura em que com a minha certa dose de autonomia comecei a frequentar o MN por minha própria iniciativa, e posso dizer que o MN me serviu de muita coisa. Ali conheci muita coisa e muita gente, algumas pessoas que nunca mais vi sequer, mas muitas que ficaram, inclusive grandes amores de vida. Apesar de ser um obcecado com a música ao vivo, marcou-me uma peça de teatro no corredor, em que o corredor de acesso ao bar se transformou num cenário de avião com janelas pintadas nas paredes, e em que os espectadores estavam sentados em duas filas de cadeiras lado a lado, como de um avião se tratasse. Mas isso foi no tempo em que o MN tinha dois acessos, eu preferia entrar por aquela porta de lado, que dava acesso pela travessa do “Batel”. Sair ou entrar por lá uma vez por noite era obrigatório, talvez pela inveja que a casa de banho feminina causava com aquele papel de parede característico vintage 50’s ou aquele sofá de espera à entrada da casa de banho. Nesses tempos de segunda porta aberta, ainda se podia receber só com um papel na porta a dizer “ligue para este número, quando chegar…” um de tal Kevin Morby, que vinha estrear-se a Portugal ainda sem o impacto de hoje no público português, concerto que não bate para mim a qualidade das MN SESSIONS à lareira com o nosso Silent Preacher a tocar temas de outros tempos. Vão lá ver quem é, a ver se o reconhecem (alter-ego de Vítor Hugo, mais conhecido por dar voz e guitarra a Moonshiners e Siricaia).

Reparem que ainda me refiro ao MN no presente, como se não tivesse fechado, e que estou mais agarrado às memórias do passado mais longínquo do espaço. Com muito respeito por várias pessoas que lá trabalharam e quiseram fazer “Casa”, não deixa de ser irónico no ano em que somos Capital Portuguesa da Cultura virmos a perder este que foi, durante tantos anos, o maior hub criativo da cidade e um dos maiores espaços de partilha da cultura independente da cidade. Isto deveria ser alvo de reflexão de parte a parte, não da marca Aveiro 2024 – Capital Portuguesa da Cultura e com a Câmara Municipal de Aveiro, que não tem competências de intervenção num espaço privado, que nem estatutos associativos tem, mas sim reflexão sobre os efeitos da especulação imobiliária, do poder político e daqueles que trabalham os espaços culturais de iniciativa privada, deixando como proposta: Que públicos queremos? Que públicos devemos trabalhar? O serviço cultural deve ser revertido em função de atração de público “mais rentável”?

Rafaela Candeias (frequentadora do espaço)

Despedimo-nos do Mercado Negro com um amargo na boca. Uma casa portuguesa que com o seu cheiro característico a tabaco, entranhado nos tetos trabalhados das suas famosas salas, acolheu artistas e arte. O lugar que abraçou cada um que lá passou. O Mercado Negro era um espaço emblemático e crucial na cidade de Aveiro, carregado de histórias e de primeiros amores. Agora fecha as suas portas, tornando a cidade mais triste. É um pontapé no cu da cultura. E isto é uma espécie de despedida pessoal ao Mercado Negro, o meu sítio favorito que me viu crescer.

Rafael Trindade, aka ben yosei (músico)

O Mercado Negro foi uma das primeiras casas nas quais tive o prazer de tocar e tenho ótimas memórias dela – da vista lindíssima pela janela da sala do bar, da recepção amável e gentil que senti por parte tanto do público como dos funcionários, e mesmo que na altura estivesse a tocar canções profundamente abstratas em inglês com instrumentais de noise sob o meu nome próprio, de ainda assim ter sentido exatamente isso. Uma casa na qual me senti em casa. Foi um dos primeiros momentos do meu percurso musical em que genuinamente acreditei em mim mesmo. 

O que aconteceu ao Mercado Negro é sintomático de um problema muito maior no nosso país, que retira cada vez mais valor da vida das pessoas e o substitui por mais tormento à vida de qualquer pessoa interessada e/ou envolvida no ramo da cultura.

O meu apelo a quem guarda recordações, momentos e boas memórias do Mercado Negro, é que se agarre a elas enquanto catalisador de algo maior e impactante, à palavra das pessoas e ao poder das nossas vozes. Podem tirar a casa do inquilino, mas não têm o direito de tirar o inquilino de casa.

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Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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Ficam as memórias.

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