Em 1973, o mundo era outro. Portugal estava ainda sob o jugo de uma ditadura na iminência de acabar, o Reino Unido e a Irlanda davam entrada na CEE e coisas como a internet e os telemóveis eram realidades ainda inimagináveis para a maior parte das pessoas. Do lado de lá do oceano Atlântico, nos sempre vibrantes Estados Unidos da América, Richard Nixon era eleito para o seu segundo mandato e a Guerra do Vietname parecia estar, finalmente, a chegar ao fim. Foi nesta conjuntura que nasceu a cultura hip-hop, numa block party organizada pelo DJ Kool Herc, um jovem jamaicano a viver no Bronx, e pela sua irmã, Cindy Campbell. 50 anos depois, esta é a cultura dominante. Das rádios à moda, passando até pelo desporto, o hip-hop tem abraçado o globo com a sua influência. Tem sabido crescer com este mundo, adaptando-se, modificando-se e acompanhando as curvas e contracurvas do passar do tempo, mantendo-se jovem, fresco e atual. Como é que poderá continuar a fazê-lo daqui para a frente?
Antes de tudo, importa mencionar que este não será um artigo estilo Velho do Restelo. Nada de pânicos nem de discursos preocupados a questionar onde é que isto tudo vai parar. Pelo contrário. Este artigo serve para refletir sobre o hip-hop em geral, em particular no rap, acerca do que poderá estar para vir em termos de sonoridade, mercado e crescimento desta cultura que cruza agora, com vigor, a barreira dos 50 anos de existência. Estamos numa altura de transição, com a inteligência artificial (IA) a ganhar terreno, as regras do streaming a mudar e uma nova geração de ouvintes, com todas as suas particularidades, a chegar.
Como em todos os processos (ou, pelo menos, os bem feitos), comecemos por olhar para dentro. Portugal vive um período de fulgor no que ao rap diz respeito. Não só a nível da música que é por cá produzida e lançada, mas também pelos próprios espetáculos ao vivo, que têm aumentado em número, qualidade e dimensão – ver rappers a atuar em salas como a Altice Arena e o Coliseu dos Recreios é cada vez mais comum. Estas salas, outrora inacessíveis, são agora palco para a celebração da longevidade de carreiras ou para a apresentação de novos discos. Ao pularmos dos palcos até à rádio, encontramo-la dominada por sonoridades hip hop ou que gravitam à volta desse universo estético. Ainda no passado mês de novembro o rapper e produtor Slow J colocou o seu novo álbum, Afro Fado, entre os 10 mais ouvidos do mundo no Spotify, batendo, pelo caminho, recordes de streaming em Portugal (curiosamente, também alcançados em 2023 por T-Rex com COR D’ÁGUA). O underground está também ele vivo e de boa saúde, com muitos lançamentos, eventos e labels ou selos coletivos a conseguirem ter espaço neste bolo de ouvintes sem comprometerem a sua identidade.
Ainda assim, adivinham-se desafios. As regras da maior plataforma de streaming (o Spotify), vão mudar, pelo menos no que ao dinheiro diz respeito, e os artistas mais pequenos serão, mais uma vez, os mais afetados. Apesar de não ser ainda ponto assente, prevê-se que apenas a partir de um certo número de streams as canções comecem a ser monetizadas, pelo menos no caso do Spotify. Por um lado, é verdade que muitos artistas entram no mundo do rap apenas pela vontade de se expressar e não propriamente pelo dinheiro que possam ou não vir a ganhar; por outro, é fácil prever que este será um factor dissuasor para muitos artistas com públicos mais pequenos. Por entre os jogos das labels, as dinâmicas das playlists e rádios, e o trabalho de difusão das plataformas digitais, nem sempre é fácil filtrar talento e colocá-lo com o destaque merecido.
Falou-se acima da celebração da longevidade de algumas carreiras. Não existirá longevidade sem a criação de espaço para que ela aconteça. O mercado está saturado, é certo, mas não me parece que tirar uma fatia do já de si pequeno bolo das receitas de streaming seja a solução mais indicada para resolver esse problema. O público falará através dos números e, seja esse número 10 ou 10 milhões, deverá ser sempre visto como um prémio para os criadores e não para terceiros. No que toca ao rap, não somos ainda um país com muitos gigs, principalmente gigs pagos, tornando-se, assim, fundamental que os artistas tenham a possibilidade de maximizar todas as formas de receita da sua música.
Será também interessante observar a evolução de sonoridades mais específicas como o trap ou o drill, que Portugal recebeu e abraçou muito bem (apesar de alguma hesitação inicial), mas também das novas tendências como o plugg ou o New Jersey. Sobre as primeiras, o interesse estará em perceber se conseguirão ultrapassar o desafio criado pelo seu próprio sucesso: foram estéticas tão dominantes que podem ser vistas como cansativas para a próxima geração de ouvintes; sobre as segundas, a questão será perceber se vão ser as próximas tendências ou se continuarão nicho ou serão passageiras, sendo substituídas por uma próxima sonoridade que possa vir das terras do Uncle Sam. Aproveitemos a boleia desta menção e debrucemo-nos sobre a cultura do outro lado do Oceano.
Os EUA continuam (e continuarão, provavelmente para sempre) a ser a Meca do hip hop. Foi lá que nasceu, foi lá que cresceu e continuo a sentir que tudo o que vemos espalhado pelo mundo é só uma diáspora dos filhos de Bambaataa e Kool Herc. Sou também da opinião que sem o pensamento tipicamente empreendedor dos norte-americanos, talvez o hip hop enquanto cultura e o rap enquanto música não tivessem atingido os níveis estratosféricos que atingiram. Não quero entrar em discussões políticas; prefiro, genuinamente, deixar isso para outros artigos. O importante a reter aqui é que os EUA souberam abraçar algo que nasceu num meio tão humilde como block parties no Sul do Bronx e transformá-lo em algo dominante e influente a nível mundial, criando uma gigantesca indústria à sua volta que é uma máquina de fazer dinheiro. No entanto, todos os sonhos, até mesmo o americano, trazem alguns desafios pelo meio.
O hip hop tem 50 anos, é maduro, mas está com problemas de identidade. Nem entremos pelo caminho das vertentes e dos elementos; essa via é areia movediça difícil de navegar em apenas um ou dois parágrafos. Se nos cingirmos apenas ao rap, já temos pano para mangas. Comecemos, então, por analisar as duas vias da bifurcação em que o rap se encontra: de um lado, temos ouvintes que parecem colocar o rap numa pequenina caixa, sujeito a uma fórmula específica e a um determinado conjunto de regras para que possa receber selo de aprovação de rap a sério; do outro, temos ouvintes que alargam a definição até englobar qualquer coisa que esteja remotamente no universo estético do hip hop, criando uma caixinha muito maior, mais diversa, mas, também, bastante menos criteriosa.
Ao cruzar-me várias vezes com estas discussões pela internet fora, não pude deixar de pensar sobre o assunto, principalmente sobre os ouvintes da segunda caixinha. Durante muito tempo, vi ambas as opiniões como erradas; uma forma, um pouco mais egocêntrica, de dizer que não concordava com nenhuma.
Hoje, prefiro olhar para o tema e focar-me nas questões que me despertam e para as quais não tenho assumidamente resposta. Será que existe música que não é rap mas faz parte da cultura hip hop? O chapéu-de-chuva desta é grande o suficiente para albergar diferentes formas de expressão, para além do rap? E, acima de tudo, vale a pena estarmos aqui a traçar linhas vincadas sobre o que é rap ou não, ou será que é mais valioso diluir essas linhas pelo bem da inovação artística? Como mencionei, não tenho respostas. São estas as perguntas que levo para a próxima década de cultura. Talvez seja importante abrir mais as portas, permitir mais inovação e forçar mais barreiras. Dessa forma, a música será mais diversa e o mercado ficará menos saturado das mesmas sonoridades, dos mesmos tópicos e das mesmas fórmulas. Ou talvez seja mais importante estreitar a definição e alargar a criação de outros géneros. Citando ORTEUM, há aqui espaço para todos, só não tem de ser o mesmo.
Num terramoto, os prédios que não caem não são os mais rígidos, mas sim aqueles que acompanham o mover da terra. Talvez seja essa a receita secreta que o hip hop tem de seguir para se manter moderno e fresco. O tempo passa, mas o hip hop não passa com ele; cresce, adapta-se e acompanha-o. Nesta que é uma cultura que nasceu da dificuldade, os momentos de transição e o futuro, esse desconhecido, não devem ser olhados com medo, mas sim com curiosidade. Depois de reinventar a música dos nossos cotas, de mudar a forma como nos vestimos, falamos e até pensamos, resta saber como se vai saber reinventar depois dos 50.