Sou muito auto-depreciativo. Inflijo sobre mim uma exigência ininteligível. É constante odiar-me. A mim e a tudo o que faço. Muito do que escrevo – extensões de mim, diga-se – leva com esse mesmo desprezo, essa mesquinhez em rebaixar-me. Escrevo, apago, reescrevo, apago, e o ciclo repete-se até à exaustão, até conseguir tolerar minimamente o que teclo. Porquê? No fundo, existir dói e nem todos sabemos amenizar esse sofrimento. Eu, certamente, não sei.
Enfim, insistimos que a vida tem de ter um sentido e tentamos tirar sentido precisamente disso. Por aí, andamos à procura, seja a escrever ou noutro qualquer ofício, de brotar qualquer sentido de utilidade. À procura de encontrar razões para lutar pelos oásis que criamos e que achamos que por eles devemos lutar. Objetivos, diz-se comummente. Coisas que se inventam para persistir em respirar. Que nos enganam a continuar.
Quem lê, questiona-se (e bem), porque é que um puto mimado, com o privilégio de poder escrever umas merdas, se confessa desta forma numa revista musical? Primeiro, porque sou estúpido. Segundo, porque me deixam – vão culpar quem o faz. E terceiro, já que é para falar de David Berman, que seja com um texto banhado a honestidade e com a perpétua dor de pensar, viver e, fundamentalmente, de existir.
Volto a escrever feito egoísta. Ainda não parei de tagarelar sobre mim – veja-se o chato que sou. Mas o que pretendo aqui fazer é um agradecimento. E num agradecimento há sempre um nucleozinho que remete para nós. Ficamos gratos a quem nos ajuda. A quem, vá, nos impele a melhorar. O que pretendo aqui escrever, será então, sobre mim, mas mais especificamente, sobre a minha relação com a arte de David Berman. Tentando (sem sucesso) colmatar esta eterna e incessante saudade. Não irei documentar a sua vida – dessa já se falou muito bem pela Internet fora.
Não me irei aprofundar em como os seus Silver Jews marcaram o panorama do indie rock, com o seu som apimentado de alt-country e lo-fi, adornado pela sua idiossincrasia lírica e estética. Como estes carregam dísticos de clássico nos discos The Natural Bridge (1996) e American Water (1998). Também não irei abordar como o seu colega de banda, Stephen Malkmus, a partir destes judeus prateados, acabaria por criar os icónicos Pavement – cujo nome do próprio disco de estreia (Slanted and Enchanted) é inspirado na obra de Berman. Não falarei muito da sua agreste relação com o seu pai – para isso oiça-se a belíssima “How To Rent A Room” – nem sobre a sua atração por Nashville, Tennessee ou a nostalgia que sente pela Virginia.
Não escreverei sobre o belo e duro livro de poesia Actual Air nem sobre o enternecedor livro de desenhos The Portable February – apesar de querer deixar aqui um excerto ou outro. Há muito sobre o qual não pretendo aqui falar, porque já muita tinta (nunca suficiente) correu sobre a sua obra. Pretendo, então, fazer do meu coração texto e nele esboçar o vazio que Berman me deixou. A forma como a sua despedida em formato disco, com a estreia homónima de Purple Mountains, me marcou, assombrando e salvando, e o quão grato eu me sinto por alguém que nunca conheci, mas que tanto me dói saber que perdi.
*
Suícidio. Foi a palavra com que há umas semanas a esta parte comecei este artigo. Em seguida, desconstruí-a, na tentativa de demonstrar o porquê desta ser a mais aterradora palavra que se conhece. Num artigo que já há tanto tempo mora na minha cabeça, muito para cá anda com necessidade de ser escrito, mas pouco sai quando à frente do computador me sento. É um luto. Nada parece correto de se dizer, nem portador de uma ínfima parte da carga emocional que pretendo depositar. Não sei o que de momento tenciono fazer, mas percebi que talvez não devia começar de tal forma, tão triste e macabra. Preferi ser honesto, confessando uma mazela interior, com uma dose de leveza, tal como Berman faria. No entanto, seria desonesto se não admitisse que a questão da morte paira muito na minha cabeça quando ouço ou me lembro de Berman.
Passado 11 anos depois do seu último registo discográfico, com o muito sólido Lookout Mountain, Lookout Sea (2008), Berman despedia-se de Silver Jews e do seu hiato musical com a chegada da sua nova banda Purple Mountains, ao lançar um disco com o mesmo nome a 4 de julho de 2019. No dia 7 de agosto chegou a notícia da sua morte.
A minha relação com a música de Berman já tinha começado com umas audições de Silver Jews anos antes. Apesar de receber com muito bons ouvidos, não mantive a atenção; atenção essa que acabaria por chegar, de forma mais fervorosa, com Purple Mountains. Na altura, considerei-o um dos discos que mais gostei lançados em 2019 (agora, é de longe o meu favorito). Quando chegou a notícia da morte de Berman, o disco foi ganhando ainda mais atenção e o significado que esse acabaria por ter em mim começava a revelar-se. Mas foi só no verão do ano seguinte, com uma pandemia pelo meio e com morte por tudo o que era televisão, que numa tarde extremamente veranil, de regresso da praia, que me meti a ouvir o disco e a cantarolá-lo enquanto o laranja do sol, que se despedia, iluminava o interior do carro. O fascínio pela dual tristeza jovial continuava a crescer. Como é que se sorri tristemente a cantar músicas catitas e aprazíveis que tanto desalento proclamam? Como é que canto alegre e gritantemente “All My Happiness is Gone”? Mal sabia oque me esperava.
Momentos decisivos da vida de um jovem chegaram. Erros e azares ocorreram. Desde 2020 até cerca de metade de 2022, longe de um abrigo, a felicidade e bem-estar foram-se tornando incognoscíveis. Purple Mountains já não era mais um disco que me fascinava por ser tão cativante como depressivo. Era um disco com o qual me relacionava amargamente. Berman era uma pessoa com a qual me identificava demasiado. Evidente que limpei a discografia de Silver Jews à busca de mais uma faixa repleta do seu humor grosso, descrente e catártico. Também por lá me perdi com faixas como a acima mencionada, “Pet Politics”, “Random Rules”, “Honk If You’re Lonely Tonight”, “Punks In The Beerlight”, “Suffering Jukebox”, “We Could Be Looking For The Same Thing”, “Trains Across The Sea”, “The Wild Kindness”, entre outras. A sua discografia é das que mais consistentemente revisito. Porém, cada vez mais ouvia as letras que se proclamavam por aquelas montanhas púrpuras e nunca me saía da cabeça que aquilo era um último suspiro. Foi a despedida de Berman escondida por refrões orelhudos e a suavidade do seu característico indie rock acountryzado.
Houve dias em que pensei em David Berman de manhã à noite. Podia nem estar a ouvir a sua música, mas havia sempre letras que ressurgiam, e o que lhe aconteceu perpetuava-se no meu peito.
“Feels like something really wrong has happened
And I confess I’m barely hanging on”
Ele era tão honesto nas suas músicas que não havia espaço para hipérboles ou eufemismos. Sim, Berman era um poeta. Mas nunca romantizou a sua realidade. O videoclipe de “Darkness & Cold” prova mesmo isso. Berman era apenas direto (e sarcástico) acerca dos seus demónios.
Destrói-me ver esse videoclipe. A música fala sobre a separação do cantautor da sua mulher, e ex-Silver Jews Cassie Berman, com a qual ainda residia e se mantinha próximo. No vídeo, vemos a própria Cassie a interpretar a luz da vida de Berman que este perdera, enquanto este se foca, com olhos de alma escondida, na câmara. Prosseguia, mais vago, em “She’s Making Friends I’m Turning Stranger” e completa-se, de certa forma, com a música que finda o disco, a solitária “I’m The Only One For Me”, onde canta os versos geniais: “If no one’s fond of fucking me / Maybe no one’s fucking fond of me”. Já em “That’s Just the Way That I Feel”, canção de abertura de Purple Mountains, David dava-nos uma atualização do seu estado, recorrendo a uma referência da já supracitada “How to Rent a Room”.
“Well, I don’t like talkin’ to myself
But someone’s gotta say it, hellI mean, things have not been going well
This time I think I finally fucked myself”
Em “Nights That Won’t Happen” torna-se cada vez mais evidente que a despedida de Berman foi em prol de uma busca incessante por paz: “The dead know what they’re doing when they leave this world behind / When the here and the hereafter momentarily align”. “Margaritas at the Mall” prova o seu desconforto e a constante descrença da sua existência.“Drawn up all my findings / And I warn you they are candid / My every day begins / With reminders I’ve been stranded on this / Planet where I’ve landed/ Beneath this gray as granite sky/ A place I wake up blushing like I’m ashamed to be alive”. A descrença da sua existência é um tema recorrente na sua vida e discografia,o vazio de olhar para um céu e a sua batalha com a crença (ou melhor, a crescente falta dela – Berman já fora crente, como revelado no documentário Silver Jew). Canta outra vez. “How long can a world go on under such a subtle god? How long can a world go on with no new word from God? / See the plod of the flawed individual looking for a nod from God / Trodding the sod of the visible with no new word from God”. O choro de luto de “I Loved Being My Mother’s Son”, que reluz o amor tenro que sentimos pelos nossos. Para culminar ainda temos a típica tristeza citadina que Berman tanto gostava de musicar, em “Snow is Falling in Manhattan” e a prazerosamente desengonçada e triste “ Storyline Fever”.
Bem, dispersei-me. Não queria de todo perder-me a falar do disco. Mas penso que seja o que acontece quando um trabalho nos é tão querido e importante. Houve momentos que parecia que só existiam dois artistas neste universo para mim. Ouvia Phil Elverum e Berman como quem respira. Era neles que me refugiava. Mas a obsessão por Berman chegou quase a ser preocupante. Passava os dias amargurado. Andava desolado e isso levava-me ao coração partido com que ficava de pensar na dor por que Berman passou. Envisionar esta sua batalha e recordá-la mentalmente sem fim. Pensar num David cabisbaixo, com cerveja ou gin na mão, interpolado por cigarros, a tentar agarrar-se (ou não) a tudo isto. Mas então pensava no quão consciente ele estava do seu abismo e mesmo como em entrevistas se notava o seu cansaço e o peso elefante da sua consciência. Felizmente, já não é diário voltar a pensar em Berman, se bem que a sua música faz, certamente, parte da pessoa que hoje sou. Não só a sua música como a sua poesia. Atente-se uma das minhas passagens favoritas do seu reportório:
“It is a certain hill.
The one I imagine when I hear the word hill
and if the apocalypse turns out
to be a world-wide nervous breakdown,
if our five billion minds collapse at once,
well I’d call that a surprise ending
and this hill would still be beautiful,
a place I wouldn’t mind dying
alone or with you.”
Self-portrait at 28 – Actual Air, 2008
A forma realista, ora bucólica, ora citadina, com desejo do cataclismo ou ciência de catarse, lançando pitadas de um humor ácido, sem nunca perder tempo para deixar umas larachas políticas, ou uns versos românticos, é transversal à obra que ele nos deixou. Mesmo nos seus desenhos, que tal qual o que sonoriza, são simples, diretos ao assunto, com uma estética própria e nos fazem soltar um sorriso, apesar de sabermos o que podem representar.
É uma miscelânea de emoções inexplicáveis. Um indivíduo ferido, num mundo onde o cacófato apazigua e tristeza pode ser passada alegremente. Ninguém nos ensina a viver. Isto é tudo muito confuso. Muito complexo. Ao ouvirmos Silver Jews ou Purple Mountains, sentimos. Ponto. Sentimos qualquer coisa. Alguma coisa… Cada vez estamos mais desapegados de sentido porque sobrevalorizamos a pertinência de existir um sentido para tudo. Raramente abraçamos o mundano porque há tanto mais para explorar. Esta dualidade, este conflito, é esse tal algo que se sente a ouvir o reportório deste Senhor com S grande.
David Berman ajudou-me muito e por isso guardar-lhe-ei sempre muito apreço – não se notou nadinha, pois não? Mais uma vez, não sei o que quis alcançar com este devaneio. Na próxima segunda faz quatro anos que ele nos deixou. Queria meter coisas cá para fora e guardar para a posterioridade o respeito que sinto por ele e o vazio que cá dentro tenho por saber o que lhe aconteceu. Além disso, acho que a sua arte é extremamente acessível. É das coisas com que mais facilidade recomendo. Dói, mesmo que fosse ínfima a chance, saber que não vou poder agradecer-lhe pessoalmente. Dói imenso. Saber que não vou poder ter uma conversa adornada de cerveja, cigarros e todos os impulsionadores de um bom diálogo com uma pessoa que tanto me ajudou. É ingrato, pois não sou certamente o único que foi ajudado.
Berman já cá não está. O mundo é mais pobre por isso. Não digamos que ele será imortal, pois parece-me que ele odiaria tal clichê.
Mas temos a sua arte, os seus textos, poemas, canções, desenhos e por aí fora, portanto enquanto tudo isto a tanta gente fizer sentido (e enquanto amigos o homenagearem tão bem), ou até o apocalipse chegar, certificar-nos-emos que a sua dor não foi em vão.
Obrigado, David.