Vou começar este texto com uma confissão. Estes últimos anos, abusando do eufemismo, não foram grande coisa. Não bastava vivermos no mundo em que vivemos, como também tive de combater com o meu maior inimigo: eu. Acordarmos num poço de autodepreciação, repletos de culpa, descrentes do que estamos a fazer da vida e sem motivação para levantar da cama, é uma masmorra triste da qual não só é difícil sair, como também nos vai matando aos poucos. Felizmente, ao longo do último ano, tenho conseguido libertar-me dela – muita força para quem ainda lá se encontra. Posso dizer que, finalmente, o céu já não está nublado.Interessante que este foi dos anos em que menos música ouvi. O que é irónico, tendo em conta que sempre me refugiei muito nos sons, por estes terem em mim um efeito terapêutico. Porém, esta superação pessoal resultou de facto numa mudança inevitável na música que tenho consumido diariamente – consciente ou inconscientemente, nem sei bem.
Passei de ouvir David Berman e Phil Elverum como quem respira – esta será, sem dúvida, uma conversa para outro dia -, para ter longos hiatos musicais, e até embarcar em viciosos ciclos de obsessão por artistas, de uma forma tão específica como aleatória. Foi neste último que, num misto entre acaso e vontade incessante de o fazer, tomei a célebre decisão de dissecar a discografia de um dos artistas portugueses mais respeitados e celebrados de todos os tempos, o incontornável, Jorge Palma. Ciente do seu estatuto enquanto exímio contador de histórias e mágico de letras, além do facto de ser um ícone para as gerações que me educaram, depressa percebi que a sua vasta obra está repleta de tesouros por tudo o que é estrofe. Não foi difícil perder-me em canções e ouvi-las até à (não) exaustão. A certo ponto, cheguei até a reger quase toda a minha experiência musical quotidiana a partir das músicas deste senhor.
Ao culminar a prazerosa travessia pela discografia de Jorge Palma (que foi repetida múltiplas vezes), concluí que não sabia qual seria o meu longa-duração de eleição – tal é a sua mestria. É tanta invenção e reinvenção (que difere de versão para versão ou de concerto para concerto) – todas com a sua relevante adição de irreverência – que se acaba por distribuir o fascínio por toda esta carreira, mais que cinquentenária. Com ele, criei empatia. Uma forte ligação. Como se nos conhecêssemos ternamente. Como Phoebe Bridgers olha para Elliott Smith, em “Punisher”, eu sinto que Jorge Palma fala comigo em “Cantiga do Zé” – e acreditem, não é só pelo nome. Todavia, apesar de não me conseguir decidir entre a língua aguçada de Asas e Penas e a beleza nobre de Só, ou o romanticismo cético de Voo Nocturno e o cataclismo emocionante de Norte, consigo definir que Com Uma Viagem Na Palma da Mão, além de ser um disco extremamente subvalorizado no rock português, contém nomeadamente a faixa que é o meu tema favorito de Jorge Palma (e, honestamente, dos pedaços musicais que mais amo): “Monólogo de um Cidadão Frustrado”.
Escrevo feito egoísta. Escrevo para mim, sem juízo por quem leia. Mas não será que toda a criação brotará deste princípio? No fundo, tudo isto são monólogos. Foram precisos muitos monólogos para eu me encaminhar e acredito que Jorge Palma tenha passado pelo mesmo, até porque a sua arte transpira muita introspecção madrugadora.
Podemos andar às voltas e tentar fugir a esta questão, mas o princípio do que aqui andamos a fazer advém sempre de um olhar para dentro, de uma conversa solitária entre a nossa materialidade e a nossa consciência. Podem chamar a isto uma rubrica, um artigo, um ensaio ou um rascunho que nem devia ver a luz do dia; mas no fundo, sou apenas eu, num quarto, rodeado de discos, livros por ler, loiça que nem devia estar aqui, roupa para lavar e outros demais objetos que preenchem este espaço, enquanto estou para aqui a teclar num computador (juro que o quarto está arrumado!). Sim, é solitário, é um monólogo. Toda a criação o é.
Evidente que, quando apalavramos sentimentos, tem-se, por si só, uma natureza unilateral. Mesmo que, daqui a pouco, quem venha editar o que para aqui escrevo, sugira que altere partes, o princípio de tudo isto adveio da minha cachimónia, que me fez crer que o regresso de Jorge Palma aos discos, com o álbum Vida, era a altura certa para meter cá para fora, o amor que sinto pelo seu trabalho. Seguindo a lógica, estes pareceres que serão deixados pelos editores, também serão fruto dos seus próprios monólogos (forte abraço Ana e Miguel).
Dei o nome a este texto de “Monólogo de Um Puto Frustrado”. De momento, não o sou. Já fui e certamente que o voltarei a ser. Já tive muitos monólogos frustrados (e frustrantes). Também voltarei a tê-los, até porque estes são fulcrais ao crescimento e evolução. Precisamos de nos enfrentar para seguir em frente e, acima de tudo, para saber o que precisamos de deitar cá para fora – nem que seja para evitar diálogos frustrados, pois esses não tendem a acabar muito bem.
Uma coisa é certa: frustração não é coisa que habite no meu ser quando escuto “Monólogo de um Cidadão Frustrado” (vá, talvez um pouco, só por não ser portador da genialidade que nele está embutida). Assim que os seus pianos fundidos com trompetes e percussão surgem triunfalmente, sou mergulhado em doses colossais de dopamina. Como se hipnoticamente me tornasse a mais celebrada estrela de rock dos 70s. Eléctrico, brilhante, irrequieto e com uma incessante vontade de partir tudo.
“Monólogo de um Cidadão Frustrado” constrói-se entre crescendos e constantes amálgamas exuberantes de melodias, culminando em constantes explosões orquestrais, onde todos os instrumentos, apesar de perfeitamente distinguíveis, virtuam em uníssono. É um belo casamento cacófato entre uma pujança rock, a sensibilidade cantável que nos guia ao piano e a irreverência anti-regime do imaginário português da primeira metade da década de 70. Adicionando à mestria sonora, tem-se a caneta poderosa de Jorge Palma e a sua interpretação, que emana toda a frustração que se sente num dia da semana após oito horas de trabalho. Veja-se a relutância com que se aborda o patronato quando diz “Calma, está quase / Lá vem o patrão” e em seguida a satisfação com que exclama um “Porra, já está / Aguentei outro dia”.
Nessa nota, “Monólogo de Um Cidadão Frustrado” é um hino do proletariado. Palma revela-se aqui vigoroso nas críticas que tece, cético e quase niilista na ótica ao futuro. Ameaçado pelas radiações e pela fome de capital, solta toda a frustração de um exílio e da tarefa, por vezes inglória (infelizmente), de se ser um cidadão. É a sonorização de um pensativo cigarro. E por falar em tabaco, veja-se a resolução à tarefa dolorosa de pensar, que não poderia ser mais portuguesa: “Outro cigarro, outra imperial / Agora já me sinto melhor”.
Apesar de todo o desgosto e descrença, há um certo brilho nesta voz apaziguadora. É esse mesmo brilho e jovialidade que me fazem sentir tanto alento nesta música. Talvez tenha encontrado em Palma uma utopia necessária para manter a crença que as coisas possam, mesmo que infimamente, correr bem. Como o próprio diz, é valorizar um sorriso em vez do grito que não demos, expelir a frustração com positividade.
Jorge Palma era pouco mais velho do que eu quando gravou este disco em 1975, o que me faz admirar a maturidade, tanto artística como humana, que tinha na altura. Contudo, esse dado faz-me perceber o porquê de me relacionar tão bem com estas canções. Até porque há muita coisa que é intemporal e que apela a qualquer jovem: “Quero lá saber / Eu quero é ganhar / Até que possa viver só / Sem ter que dar satisfações” ou “Vejo o relógio / Engolir o dia / E os preços a subir de novo / Em Novembro”.
Perdi-me na discografia de Palma numa altura chave. Meses depois de um momento de viragem na minha vida e de longos meses de constante esforço e desgaste emocional, estava finalmente a ver o fruto de tudo isso e a ter a estranha sensação de olhar para o futuro e não ter total descrença do que este me trará. E a sua música é muito sobre isso. Ter consciência das nossas fragilidades, mas saber apreciar a beleza das coisas, porque, por mais difícil que a vida seja, “A gente vai continuar”.
Já que comecei este texto com uma confissão, terminarei com outra: não sei como acabar isto. Neste momento, surgem-me questões que me incomodam. Porque será que estou a escrever isto? Consegui traduzir aquilo que sinto? Será que quem está a ler sentiu alguma coisa? Enfim, é inevitável. Serei sempre assombrado por questões existenciais. Tal como Palma: “Caio na cama / E fico a cismar / Será mesmo assim / Ou serei eu que estou louco?”, canta no seu monólogo que alimenta este meu devaneio. Portanto, resta-me tentar aproveitar o mundano, conjugar a sobrevivência com o viver, aguentar os dias e ver soltar um “Porra” ao deitar, pronto para o próximo que há de vir.
Entretanto, e também para evitar que isto se torne num dos meus monólogos existenciais – para esses, já não vos convido -, surgiu-me uma forma de concluir este texto. Vão ouvir este homem, celebrem-no e façam jus ao hino que é “Monólogo de Um Cidadão Frustrado”.
Por me ajudar a lidar com mais calma com a imprecisão de tudo isto e por me confortar sonoramente sempre que preciso, resta-me dizer: Obrigado, Jorge!