Os Meus Amigos, Os Meus Amigos, Os Silence 4, e Os Meus Amigos

É uma qualquer tarde fervilhante de Agosto, no Alentejo litoral. Enquanto espero pela ordem de liberdade que me permite ir dar uns mergulhos no tanque da minha tia, faço a digestão esparramada no sofá. Na casa dos meus avós não há televisão por cabo, mas este ano o segundo canal oferece algo bem melhor que telenovelas dobradas ou a aborrecidíssima Volta a Portugal em bicicleta: uma montra diária do que acontece na grande exposição mundial que aterrou em Lisboa. Devoro o magazine assiduamente, como devota de uma fé que não compreendo. O meu fascínio com a Expo 98 inclui ver a Peregrinação diariamente, apesar de os Olharapos serem meio aterradores, e todos os dias quero saber quem toca na Praça Sony. Tenho nove anos e o meu interesse em música é claro, assentando essencialmente sobre três eixos: 1) as escolhas dos meus pais para bandas sonoras de viagem, 2) a Rádio Cidade (cento e sete ponto doissss, ler em pt-br) e 3) colectâneas de grandes êxitos que começo a colecionar com algum afinco (depois de ter fanado um Top Star 94/95 à minha mãe, no natal passado consegui o meu primeiro disco de crescidos, o fantástico Power Play). Daí que saber quem toca em cada noite seja relevante, quase tão relevante quanto o resumo das notícias que faço ao meu avô quando ele perde o início do Jornal da Tarde.

Há uma música em inglês que não pára de tocar este verão. É em inglês, mas é dos Silence 4, que são portugueses. Acho que o meu pai tem o CD de outra banda portuguesa que canta em inglês, são os Blind Zero e eu ouvi uma vez, mas não gostei. Hoje é sexta-feira, e os meus pais chegam para não sei bem quantas semanas de férias. YES – o meu pai comprou o CD! E deixou-me ir ouvir na aparelhagem que está no quarto dos meus pais e é um bocadinho diferente do que estou habituada a ouvir. TCHIKI TCHIKI TCHIKI TCHIIIII Normalmente, ligo na Rádio Cidade e ponho-me a dançar – baixa a música, Rute! – mas não sei bem como se dança isto. É tudo meio calminho, e ainda só sei reconhecer bem os sons de guitarras (ainda não conheço a palavra acústica), uma bateria envergonhada e as vozes de um homem e uma mulher. YOU’RE NEVER WITH ME, YOU’RE NEVER NEAR ME, WHAT TIME IS IT, WHAT TIME? Porque é que ele está a perguntar as horas em inglês? Não percebo bem o que dizem, nem o que quer dizer. I GUESS I’LL TRY AGAIN TOMORROW A melodia é viciante e eu vou ouvir isto até me cansar. Paaaaai, sabias que há duas canções em português? Uma tem o Sérgio Godinho e tudo!

 

É por tudo o que em nós corre
Que se vive e que se morre

 

Entretanto, as férias terminaram, a Expo 98 acabou e eu mudei de escola. Alguns dos meus amigos antigos também vieram para aqui, e claro que os Silence 4 são a banda do momento. Neste recreio, ninguém quer saber dos Excesso. Todos ouvimos “Borrow” e “My Friends”, os mais sortudos também têm o CD ou a cassete lá em casa. As aulas de inglês, que passaram a ser obrigatórias e várias horas por semana, ajudam a descodificar as letras que ainda não tínhamos conseguido decifrar. Cantar em inglês faz-nos sentir mais crescidos, como se entrássemos numa nova dimensão reservada apenas a alguns.

A minha canção favorita é a número cinco. THIS IS ME WITH ANOTHER NERVOUS BREAKDOWN Chama-se “Angel Song” e é a única em que a Sofia canta assim um bocadinho maior sozinha. Apesar de gostar mais da voz do David, é bom ver que a única mulher do grupo também consegue brilhar. Quem me dera cantar como a Sofia, parece um anjo. Já aprendi a usar o botão repeat, às vezes fico horas só a ouvir esta música. Tem cinco minutos e dezassete segundos e é a mais longa do disco, se não contarmos com aquela do fim, que tem uma música escondida que não aparece na contracapa. O Miguel disse que se chama “Sex Freak” e já demos o sistema reprodutor na aula de Ciências, mas acho que me está a faltar aqui qualquer coisa. Daqui a pouco mais de um ano, vou ficar confusa quando os Wheatus lançarem uma versão de “A Little Respect”, e o meu pai vai dizer-me que afinal foram os Silence 4 que copiaram a música de outra banda, e que não é uma cópia, é uma cover e é normal os músicos fazerem isso.

À medida que o meu inglês vai melhorando, vou entendendo um pouco mais o disco. Mas, se calhar, não é só pelo inglês. A faixa número onze é em português e parece que, de cada vez que volto lá, o poema ganha novas camadas. Apaixonei-me pelo meu melhor amigo e nunca lhe disse, mas agora não nos falamos. O meu amigo Guilherme diz-me que não amei de verdade, porque o verdadeiro amor tem de ser correspondido, mas ele namora com a Cláudia, e não sabe o quanto chorei no ano passado. Nunca dei um beijo na boca, nunca ninguém vai gostar de mim.

 

Eu não sei
Tanto sobre tanta coisa
Que às vezes tenho medo
De dizer aquelas coisas
Que fazem chorar
E não me perguntes nada
Eu não sei dizer

 

Arranjei um namorado e talvez o Guilherme tenha razão, este amor é diferente. Já beijei na boca e já gostaram de mim, e já me dedicaram a “Angel Song”. E agora, também já percebo a música escondida.

***

O Silence Becomes It  foi uma das grandes bandas sonoras do início da minha adolescência, e acompanhou-me pelos anos seguintes. A ele juntaram-se o segundo álbum dos Silence 4, Only Pain Is Real (2000), o “best of” da banda, Ao Vivo no Coliseu dos Recreios (2004), e a discografia a solo de David Fonseca até entrar basicamente na vida adulta. E algumas recordações que tenho de cada um quase se diluem umas nas outras. Tenho refrões e álbuns favoritos dentro deste lote, que provavelmente já não coincidem com o que sentia quando os guardei na minha memória permanente. Se calhar há mais de dez anos que não ouvia isto, mas antecipo quebras e solos, reconheço cada som de cada segundo, ainda sei todas as letras. Já não sei se adoro a música, mas o álbum roda e instala aquele quentinho, acolhedor e desconfortável, da nostalgia. Se calhar, nem todas as músicas envelheceram muuuuuito bem, mas realmente a banda tinha qualquer coisa. Aliada às canções e à visão de David Fonseca, a pseudo direção musical do baixista Rui Costa criou uma espécie de novo caminho da música portuguesa. Foi dele que veio a vontade de incluir o toque de Midas de Mário Barreiros na produção, um efeito que transborda por pedaços de música tão bem gravados e misturados. Na semana passada, apanhei a “Sextos Sentidos” a dar na Antena 3 e continua a ser uma canção que dá vontade de ouvir e de cantar.

Mas o impacto desta estreia merece atenção própria, não só pelo que mudou no meu micro-cosmos, mas pelo choque que provocou na indústria nacional. Com um álbum editado em junho de 1998, os Silence 4 tocaram várias vezes na Expo 98 (foram inclusivamente os protagonistas da noite de encerramento), fecharam o Sudoeste desse verão e deram cerca de 90 concertos em cerca de seis meses, incluindo num Pavilhão Atlântico esgotado em dezembro. O álbum foi Disco de Platina seis vezes, vendendo mais de 240 mil cópias. Não foram os primeiros portugueses a cantar em inglês, mas foram os que tiveram maior sucesso, conseguindo a difícil proeza de agradar a crítica, enquanto se tornava num dos maiores fenómenos pop de sempre na música nacional.

Os Silence 4 rebentaram a bolha do preconceito de edição discográfica em Portugal, que não entendia como uma banda portuguesa pudesse cantar em inglês sendo acolhida pelo público. Mas, olhando para trás, era só uma questão de tempo até alguém vingar. Afinal, também eles são fruto das suas circunstâncias: a sua geração foi a primeira a nascer e crescer em liberdade, no pós-Estado Novo. Já longe da censura, os anos 80 foram uma década de abertura e crescente exposição à cultura anglo-saxónica, que passou a ser um dos maiores focos de importação cultural em Portugal (talvez só ombreado pelo Brasil). Era quase inevitável que isso se manifestasse nas expressões artísticas que se seguiram. Sem surpresa, nos anos subsequentes, a cena nacional foi alagada por uma vaga de bandas e artistas pop rock que cantavam em inglês: os The Gift (que se estrearam nesse ano com Vinyl, uma edição independente), os Hands on Approach (o fenómeno do verão seguinte), passando por Ez Special (2003), Fingertips (2003) ou Gomo (2004), para mencionar apenas alguns micro-fenómenos pop com mais airplay. E, claro, David Fonseca, que se estreou a solo em 2003, tendo feito quase toda a sua carreira a cantar em inglês.

25 anos depois, a herança dos Silence 4 na música portuguesa mantém-se viva: continua a haver artistas e bandas nacionais que cantam maioritariamente em inglês e com níveis de sucesso relativamente satisfatórios, mas talvez seja precisamente esse o calcanhar de Aquiles do seu legado. É mais fácil manter na memória coletiva uma canção no nosso próprio idioma. “Borrow” cristalizou e será uma daquelas marcas geracionais dos que habitaram a sua existência, tal como a Expo 98. Já “To Give”, o single de apresentação do segundo álbum dos leirienses, apesar de não ter tido o impacto imediato do seu antecessor, resistiu melhor à passagem do tempo. Se as ouvirmos na rádio hoje, a primeira vale mais pelo seu valor nostálgico, enquanto que a segunda se mantém como um óptimo single que nem uma remasterizaçãozinha pede.

Se durante muitos anos o público clamou por mais, desde cedo ficou claro que a banda não estava interessada nesse revivalismo, vivendo muito bem com isso. Longe dos chamamentos nostálgicos que nos devolveram Ornatos Violeta ou Da Weasel aos palcos de forma regular, os Silence 4 juntaram-se apenas uma vez depois do seu fim, numa reunião alimentada por uma situação limite, uma espécie de celebração da vida de Sofia Lisboa, que sobreviveu a uma leucemia. A série de cinco concertos que deram em 2014 serviu para angariar fundos para a Liga Portuguesa contra o Cancro. Desse reencontro resultou mais uma antologia ao vivo, Songbook Live 2014, e o assunto parece ter ficado arrumado por aí.

Há uns tempos li uma entrevista em que David Fonseca dizia que, apesar da sua visão artística ter mudado naqueles três anos em que trabalharam juntos, a experiência dos Silence 4 tinha, naturalmente, sido essencial na definição da sua estratégia para a carreira a solo. Silence Becomes It foi a pedra basilar dessa fundação. Hoje, são mais óbvias as arestas por limar – das harmonias de David e Sofia, que por vezes soam um pouco dissonantes, às duas versões de “A Little Respect” (bastava uma), além doutros pormenores aqui e ali. No entanto, o disco deixava antever a mestria de David Fonseca na composição musical e nas letras (ele é o autor de quase todas as canções do disco), competências que refinou nos anos seguintes. Pouco a pouco, as suas melodias tornaram-se mais ricas, as estruturas musicais diversificaram-se e os refrões ficaram mais animados e orelhudos. Mas em “Silence Becomes It” ainda se ouve a crueza de quem escreve canções fora da máquina industrial, e talvez seja por isso mesmo que a sensação de dores de crescimento que habita o disco tenha acompanhado tantos adolescentes na altura. Afinal, não eram só as letras que puxavam à auto-descoberta; toda aquela hora de música mostra cada um dos elementos da banda a construir a sua identidade artística.

A 22 de junho deste ano, David Fonseca lançou “Paranoia”, um single em que sampla “Borrow” para assinalar os seus 25 anos de carreira. Na nova vida da canção que o catapultou de imediato para uma liga de consagração pop rara na cena nacional, quase nem se nota a origem daquele som. O pormenor do passado que nos molda parece um segredo. Mesmo sem regressarmos lá, é o que nos torna quem somos.

Silence Becomes It foi editado pela primeira vez em junho de 1998.

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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O álbum de estreia dos Silence 4, Silence Becomes It, foi lançado há 25 anos.

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