Denzel Curry e o sublime objeto da consistência

Na música, há muita coisa que insiste em acontecer. A Ivete Sangalo no Rock in Rio, a chuva no Primavera Sound, o comerciante musical canadiano recentemente enterrado no “beef do século” fazer música desinspirada e preguiçosa, a Ice Spice usar o mesmo flow sempre que pega num microfone. Enfim, a lista podia continuar que nunca seria fácil dar-lhe um termo, mas o bom destas coisas é que elas podem mudar um dia.Em sentido contrário, quando nos acostumamos a uma coisa boa, queremos é que ela persista, mas sabemos bem que é difícil coisas boas perdurarem. Mas quando tal acontece, deve ser celebrado. No mundo do ritmo e poesia, embora a lista de rappers que sejam consistentes a brindarem-nos com coisas boas seja extensa, há um nome hoje em dia que se deve ter muito em conta: Denzel Curry.

Nascido em Carol City, Florida em 1995, Denzel Curry começou a rimar no 6º ano e deu início à sua carreira com apenas 16 anos, aquando do lançamento da sua primeira mixtape (King Remembered Underground Tape 1991 – 1995), que lhe conferiu alguma notoriedade regional. Tal notoriedade viria a crescer quando este ingressou no coletivo Raider Klan (estilizado como RVIDXR KLVN), crew de hip-hop oriundo da sua cidade. Ao lado de outros elementos do coletivo, Denzel Curry ajudou que este se tornasse num dos grupos mais influentes do boom de rap que ocorreu no Soundcloud no início da década passada. O sucesso dos Raider Klan acabaria por crescer em simultâneo, em estilo quase de simbiose competitiva e consideravelmente respeitosa, com os seus predecessores Odd Future e até mesmo os seus sucessores A$AP MOB.

Em 2013, Curry anunciou a sua saída do grupo criado por SpaceGhostPurrp e estreou-se nos álbuns com o lançamento de Nostalgic 64. Nesse seu álbum de estreia, Curry apresentou uma caneta de 18 anos feroz. Através de inflexões dinâmicas, muita garra nas barras e instrumentais que navegavam entre o rap sulista ostensivo e o boom bap mais consciente, Curry surgiu com o ímpeto e fulminância de um jovem que tinha muito cuspo e palavra para colocar neste mundo. Produções intensas e obscuras, a espelhar a influência de nomes como Three 6 Mafia, e que, de certa forma, são um bom exemplo daquele melting pot entre cultura urbana e o advento do digital na divulgação e produção de música que marcou o pós-2000, de onde também saíram nomes como Lil Ugly Mane – que larga um verso na faixa “Mystical Virus, Part 3 The Scream”.

Muitas das características de Nostalgic 64 acabaram por se verificar basilares da arte de Denzel Curry daí para a frente. Performances eletrizantes, a mestria no uso da língua e uma aura de super-herói – ou vá, anti-herói, pela sua atitude implacável, destemida e positivamente convencida. Sempre assente nas suas origens, com energia ora sombria, ora festiva que consome qualquer sistema de som, Curry nunca deixou de se aventurar a nível sonoro. Daí para a frente, explorou outras influências sem nunca parar de construir um catálogo diverso e excecional. A sua polivalência, aliada à sua destreza criativa, permitem-lhe que se reinvente projeto após projeto, sem nunca perder a sua essência. Em boa verdade, Denzel Curry, que ainda nem completou 30 anos, já conta com uma carreira invejável. A sua autoconsciência do seu próprio engenho e o ímpeto com que chega a um microfone fazem dele o mais próximo que temos de um Super Saiyan do rap – até porque Curry é um autêntico cientista da cultura pop.

Se Nostalgic 64 foi uma boa demonstração de um talento fora-de-série, Imperial, o seu segundo álbum de estúdio, foi a afirmação de que estávamos perante um verdadeiro peso-pesado. Lançado em 2016, um ano depois de viralizar com o lançamento do seu “meme-hit” single “Ultimate”, onde infelizmente se associava mais o seu nome a garrafas de água acrobáticas do que à sua mestria em produzir bangers explosivos, Curry soa feroz, com cada sílaba do disco a ser proferida como se este quisesse dominar o mundo. Um bom exemplo disso é logo a forma como abre as hostilidades do álbum com “ULT”. Daí para a frente, continuando a navegar por instrumentais guiados a fortes 808s e com a energia pesada a que já nos tinha habituado, Imperial não é apenas uma montra para boas barras em performances maníacas. Serve também como plataforma para a introspecção e comentário social de Curry, abordando temas como a violência policial, criminalidade, racismo e marginalidade – como se pode escutar em faixas como “Sick & Tired” ou “Narcotics”. Na segunda metade do disco, o rapper explora sonoridades mais suaves e começa a brincar mais a sério aos refrões. Canções como “Me Now” ou a grande malha quasi-romântica “This Life” revelaram esse lado de Curry, que também experimenta incursões por boom baps jazzísticos como “Zenith”, com a sua colaboração adequada com Joey Bada$$. Foi com Imperial que Curry demonstrou a ciência de Denzel em como conseguia construir um projeto completo e sólido. Curiosamente, foi para apresentar Imperial que Curry tocou a única vez em Portugal – em 2016, no Musicbox, em Lisboa.

A qualidade de Imperial garantiu a Curry uma merecida visibilidade e reconhecimento. O disco foi muito bem recebido pela crítica e Curry figurou na até então ainda minimamente relevante XXL Freshman Class de 2016, sendo um dos destaques do icónico cypher que ocorreu nesse ano – até hoje, é o vídeo mais visto no canal de YouTube da revista norte-americana.

Em retrospectiva, é bastante relevante abordar a presença de Denzel Curry nesta seleção de rappers. Kodak Black, 21 Savage, Lil Uzi Vert e Lil Yachty são, sem dúvida, dos nomes mais mediáticos do trap internacional dos dias de hoje, bem como dos maiores nomes que saíram da era do SoundCloud rap. Mas na altura Curry, em comparação com os seus camaradas, apelava aos fãs deste trap ostensivo que tanto caracterizava estes seus colegas de classe como aos fãs de rap mais consciente e incisivo. Este sweet spot em que se encontrava colocava Curry num lugar de posição privilegiada. Era uma das mais intrigantes vozes de um género em constante mutação e a fasquia estava mais elevada do que nunca para um terceiro álbum.

Em 2018, dois anos após o sucesso de Imperial, Denzel Curry fez-nos chegar TA13OO (pronuncia-se taboo). Para qualquer entusiasta do cenário do hip hop estadunidense da década passada, a relevância desta peça conceptual não há-de ser estranha. Dividido em três Actos (Light, Gray e Dark), este projeto era o mais ambicioso do rapper da Florida até ao seu lançamento e um dos mais importantes e impactantes desse mesmo ano no cenário do hip hop. E olhem que 2018 foi um ano de pesos pesados para o género. Álbuns como o homónimo de KIDS SEE GHOSTS, Veteran de JPEGMAFIA, Some Rap Songs de Earl Sweatshirt, DAYTONA de Pusha T, ou até mesmo Die Lit de Playboi Carti, são tudo projetos que ainda hoje ocupam o seu lugar no cânone do hip-hop. Pode-se até dizer que 2018 foi, provavelmente, o ano mais forte da década passada em termos de lançamentos de hip-hop – mas isso seria todo um outro artigo.

Em TA13OO, Curry continuou a agilizar-se estilísticamente e, desta vez, expandiu-se esteticamente. Um vislumbre da capa do disco prova exatamente isso. Para além disso, Curry aprofundava como nunca a sua caneta sobre temáticas pessoais, políticas e sociais. No primeiro acto (Light), o rapper capricha nos refrões e melodias para refletir sobre a sua fama e o descontentamento pelo lado materialista que esta lhe trouxe, resultando em malhas orelhudas como a intro “TABOO l TA13OO” ou “BLACK BALLOONS l 13LACK 13ALLOONZ”. O segundo ato, Gray, contém o ouro do disco e as visões sobre a realidade de Denzel Curry. O comentário social do jovem rapper nunca foi tão aguçado, ao mesmo tempo que insiste em construir músicas cada vez mais cativantes. Veja-se o exemplo da politicamente carregada “SIRENS l Z1RENZ”, que não só é adornada por um refrão infeccioso – que até conta com uma ajuda de Billie Eilish -, como é liricamente flamejante, tanto pelos arremessos da caneta de Denzel, como pela do seu contemporâneo JID.

As valências e grandes virtudes do disco, contudo, estão habilmente concentradas no single “CLOUT COBAIN | CLOUT CO13A1N”. Não é por isso de admirar que este seja um dos maiores sucessos do artista, onde este se debruça sobre os perigos da veneração e perseguição da popularidade e a estetização de problemas de saúde mental. Já no terceiro acto (Dark), Curry demonstra que o seu ego-trip, tão presente nas suas origens, bem como o trap de alta-voltagem, não ficavam para trás inteiramente. Bangers como “VENGEANCE | VENGEANCE”, com JPEGMAFIA e ZillaKami, demonstrava a habilidade com que Curry sabia convidar e incluir compinchas no seu trabalho.

Depois do sucesso do seu terceiro álbum, o momentum de Curry permitiu-lhe dar um novo ímpeto à sua carreira. O público do hip-hop estava consciente de que qualquer lançamento que tivesse o nome de Curry atrelado já seria sinónimo de qualidade e um forte potencial para ser um dos discos do ano. Mas a fase pós-TA13OO da sua carreira foi marcada por uma total despretensiosidade, simplicidade e uma tremenda facilidade em fazer canções. Começou com ZUU (2019) que, em contraste à ambição e complexidade do seu antecessor, é o projeto mais simples e direto ao assunto do rapper. Com uma energia soalheira e jovial, contrastando com o cinzento e grimy com que ingressou na sua carreira, em menos de 30 minutos Curry sonoriza uma viagem energética, colorida e sempre cativante à sua Flórida. Mais uma vez, nunca esquece as suas origens e muitas destas faixas parecem única e exclusivamente hinos para sonorizar as festarolas da sua Carol City – oiça-se “WISH”, “Speedboat” ou “SHAKE 88”. Para além disso, “RICKY” é uma bonita e mui-cativante homenagem ao seu pai. Menos introspectivo do que nos seus antecessores, em ZUU, Zel – alcunha pela qual é conhecido –  apenas quis meter o volume no máximo e fazer a festa.

No fundo, Denzel Curry ama o que faz e diverte-se muito a fazê-lo. O sucessor de ZUU é a representação disso. UNLOCKED, álbum colaborativo com Kenny Beats, surgiu após terem gravado o episódio do programa do produtor The Cave. No episódio, é notável ver a capacidade de improviso de Zel, que serviu de catalisador para grande parte da génese do projeto, onde ambos os artistas afirmam que a sua composição foi à base de se divertirem e tentarem fazer algo no estilo de influências em comum – o psicadelismo, J Dilla, The Alchemist, Madvillainy. Kenny Beats passa o tempo de UNLOCKED a mostrar como se consegue divertir a cruzar estes universos sonoros. Denzel Curry, por outro lado, passa o tempo todo a brincar estilo recreio com as palavras, emanar a energia de battle rapper e droppa barra após barra nas lides de um MF DOOM, de uns Wu-Tang Clan ou até mesmo um DMX, e o resultado é um projeto que pode ser descrito como um all killer no filler. Com menos de 20 minutos, UNLOCKED é uma experiência tão compacta e alucinante que nem é justo realçar faixas. O projeto foi ainda apresentado no formato de vídeo-álbum, onde a animação de cada música é feita num estilo de animação diferente, cada uma correspondendo aos estilos de animação favoritos de Denzel.

O visual é também uma parte importante do engenho de Denzel Curry. É neste espaço onde Curry espelha muitas das suas outras paixões: a cultura anime, muay thai, o cinema e os cartoons (Curry é um exímio ilustrador). Não é à toa que muito do ego-trip de Curry surja  de colocar-se numa condição de super-humano e/ou justiceiro. Por alguma razão, alguns dos seus pseudónimos/alcunhas são nomes como Black Metal Terrorist ou Zeltron.

Tais influências visuais acabaram por ser grande parte da inspiração para o seu regresso aos longa-duração em 2022 com Melt My Eyez See Your Future, o seu projeto mais ambicioso até à data. Juntando um elenco de colaborações e de produtores de luxo que, por norma, é tudo malta amiga, e inspirado pelos filmes de Akira Kurosawa, Zeltron surgiu nesse disco mais introspectivo e eclético que nunca. O pós-covid de Denzel revelou-se ter sido um período de crescimento pessoal, onde o próprio admitiu tentar distanciar-se sonicamente de tudo aquilo que tinha feito, chegando mesmo a admitir que este é o seu álbum preferido.

Melt My Eyez See Your Future é realmente o projeto mais requintado de Zel, onde este se ostenta de muita influência de jazz e soul – não sendo surpresa que até exista uma versão mais extensa do disco com versões soul acústicas das canções -, que acaba por emparelhar com uma produção aromatizada de psicadelismo sem nunca se esquecer da energia que sempre nos habituou. É insano olharmos para a diversidade sónica deste projeto e pensar na fluidez com que isto tudo acontece. Tanto estamos no jazz glamoroso de Robert Glasper, em “Melt Session #1”, como passamos para a caminhada profética do boom trap sulista de “Walking”. Saboreamos os problemas que se tentam curar ao som do pop rap de “Troubles”, com a participação do conterrâneo de estado T-Pain, a energia que a assembleia de talento de “Ain’t No Way” proporciona, que só demonstra mais uma vez como Denzel gosta de criar um certo senso de comunidade nos seus trabalhos, ou ainda assistimos a uma aula de como rimar num beat estilo Atlanta em “X-WING”. É quase como se Curry, consciente ou inconscientemente, quisesse mostrar aos seus contemporâneos do trap como fazer malhões nos seus próprios estilos de rap. E tudo isto faz sentido, tudo isto é coeso, tudo isto é… consistente.

No mundo do nerdismo musical já se tem vindo a criar uma “cultura de meme” em torno desta associação de Denzel Curry ao conceito de consistência. Uns apontam para as notas que o autoproclamado “nerd mais ocupado da internet” Anthony Fantano lhe dá (8 em 10 a todos os projetos à exceção da sua estreia). Outros vão para além dos álbuns e denotam a capacidade que o rapper tem de “roubar” as faixas nas quais entra, sendo muitas das vezes o salvador das mesmas (notar que nenhum animal de vidro foi ferido nesta frase). Mas como já foi supracitado, a consistência de Denzel, para além da sua assiduidade de lançamentos, virtua na sua capacidade para nos surpreender. Seja até a executar uma memorável e insana versão da música “Bulls On Parade”, dos Rage Against The Machine – que lhe rendeu muitos fãs metaleiros -, qualquer vídeo deste a improvisar ou ainda a atuar num festival de cadeira de rodas, este jovem parece não ter limites. Mas também se os tivesse, ele muito provavelmente iria elevá-los. Não houve assim espanto quando, findado mais um ciclo de dois anos após um longa-duração, no passado dia 19 de julho, Denzel Curry lançou o seu sétimo álbum, King Of The Mischievous South Vol. 2, e adivinhe-se: é um bom projeto.

Capa King Of The Mischievous South Vol. 2
Capa King Of The Mischievous South Vol. 2

Mascarado de mixtape, este seu mais recente disco é a sequela do seu primeiro volume (King of the Mischievous South Vol 1 Underground Tape 1996), mixtape lançada em 2012, e funciona como uma clara homenagem não só ao southern rap em geral como às suas próprias origens musicais. Regressando aos temas de ostentação e auto exaltação, típicos dos movimentos que homenageia, Denzel Curry reúne mais uma vez um elenco de luxo que vai desde nomes que o inspiraram como Juicy J ou Kingpin Skinny Pimp, a nomes mais mediáticos como A$AP Rocky ou Ty Dolla Sign, e ainda a novas cartas do cenário sulista como That Mexican OT, para nos entregar 34 minutos de um rap despretensioso, ruidoso e intenso. Tal como ZUU, King Of The Mischievous South Vol. 2, por ser um projeto menos introspectivo e ambicioso do que os seus álbuns mais aclamados (Melt My Eyez See Your Future e TA13OO), está cheio de malhões energéticos que bem podem ficar entre os melhores do ano no hip-hop – e não só. É o caso do single “HOT ONE”, que junta A$AP Ferg a TiaCorine, sendo esta última a melhor feature de todo o projeto.

Portanto, este seu mais recente longa-duração, espante-se, continua a ter as melhores qualidades de um álbum de Denzel Curry, que já percebemos há muito não ser o mesmo jovem que em tempos fez parte do coletivo Raider Klan. Curry sabe o espaço que conquistou e faz de tudo para homenagear todos os responsáveis por inspirá-lo, bem como para representar as suas origens. Também já não é o puto com sonho de singrar, pois isso já fez; Zel usa e abusa da liberdade criativa que conquistou sem nunca arredar pé da luta para ser melhor. Curry está no circuito há anos, mas ao fim ao cabo, lembremo-nos: Curry ainda nem tem 30 anos. Imagine-se o que uma maior maturidade artística – que já é difícil -, poderá trazer ao mundo discográfico. Não sabemos qual será o próximo passo de Curry, mas sabemos uma coisa: neste momento, ele é o super-rapper do hip-hop estadunidense.

Nascido e criado em Faro, divide o seu coração entre as suas duas grandes paixões, o cinema e a música. Aspirante a cientista da comunicação, já passou pelo Espalha-Factos onde foi um dos autores do À Escuta. Conseguem apanhá-lo em festivais de música e em cineclubes!
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O super-rapper da Flórida.

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