De quotas, da rádio e da música portuguesa

As quotas de música portuguesa na rádio remontam a 2006, numa altura em que apenas cerca de 5% da música que passava era nacional. A Lei da Rádio voltou a ser revista em 2009, mantendo obrigatoriedade. Desde então, a maior parte das rádios nacionais deve assegurar que 25 a 40% da música que transmitem é portuguesa. Esta quota não é requerida a todas as estações, contudo. Existem exceções, como os casos de estações com serviços de programação especializado (cerca de 10% do total de estações, mas o grupo inclui estações particularmente populares junto dos mais jovens, como a Cidade FM, a Nova Era e a Mega Hits), e também os canais da RTP, cujas obrigações de serviço público são mais exigentes. Existem, ainda, subquotas de novidades.

Dependendo do horário e da estação, entre blocos de notícias, locuções e intervalos publicitários, 60 minutos de rádio chegam para sensivelmente 12 a 13 músicas. Programas de horário nobre em estações mais populares tendem a ter mais conversa, painéis de continuidade fora do drive time consomem mais refrões. Talvez importe contextualizar que a quota mínima é decretada anualmente. O mínimo dos 30% foi inicialmente imposto por Graça Fonseca, sendo uma das medidas de apoio ao sector durante a pandemia de COVID-19, mas durante a presente legislatura Pedro Adão e Silva recuou e voltou aos 25%. A proposta das esquerdas acatada pelo atual Ministro da Cultura vai, então, no sentido de subir a quota mínima em cinco pontos percentuais, colocando-a nos 30%. Isto significa que a cada hora deverá passar mais uma música portuguesa: em vez de três, serão quatro. Uma fartura.

O que mais me chocou foi a postura de Luís Mendonça, presidente da Associação Portuguesa de Radiodifusão, que assegura não haver “produção suficiente para assegurar esses valores”. Estas declarações são, no mínimo, absurdas. Só este ano, já tivemos álbuns ou EPs de Cláudia Pascoal, INÊS APENAS, Margarida Campelo, Beatriz Pessoa, Ana Lua Caiano, Amaura, MARO, Milhanas, João Não, xtinto, Pedro Mafama, EU.CLIDES, Império Pacífico, Humana Taranja, Scúru Fitchádu, Violet, Photonz, Cobrafuma, Profjam, Bárbara Tinoco, Carolina Deslandes, Pedro Ricardo, ben yosei, X-Tense, Carminho, Isaura, Fernando Daniel, Pedro da Linha, Stereossauro, Veelain e certamente tantos outros que não me lembro de cor. Isto não inclui as dezenas de singles que chegaram fora de formatos um pouco mais alargados. Os dados cedidos pela Audiogest à campanha Mais Música Portuguesa indicam que, mensalmente, são lançadas 60 novas canções em Portugal, números que provavelmente deixam de fora várias edições independentes. Do metal ao hip-hop, da electrónica ao fado, da pop orelhuda às aventuras instrumentais, e tanta coisa entalada entre rótulos menos óbvios, felizmente para nós o que não falta em 2023 é música assinada por artistas nacionais. E há muitos anos que é assim.

Uma análise conduzida pelo Interruptor em 2020 mostra uma correlação positiva entre a entrada em vigor das quotas de música portuguesa na rádio e a presença de artistas nacionais nas tabelas de vendas. Aliás, entre 2004 e 2019, os cinco artistas com maior número de entradas são todos portugueses. No ano seguinte, outra análise demonstrou que a música nacional tem conquistado mais ouvintes também no Spotify, sobretudo nos géneros de música dita urbana, como o hip-hop. Se calhar, ao fim de quase vinte anos, a exceção das rádios temáticas ligadas a estes géneros já não faz tanto sentido. Para referência, esta semana, 40% do Top 10 às 10 da Mega Hits é composto por música nacional.

Como tantos outros assuntos, as quotas de música nacional na rádio não são um exclusivo português. Mesmo em países particularmente protecionistas da sua língua e cultura, como a França, a imposição governamental tem gerado várias polémicas. Por lá, desde 1994 que é obrigatório que 40% da música transmitida seja de expressão francesa. Cerca de vinte anos depois da sua implementação, a medida foi amplamente contestada em 2015 pelas estações quando um grupo de deputados propôs que a quota imposta tivesse reflexo na diversidade da música que preenchia as quotas. Acontece que, nos últimos trinta anos, a quantidade de música produzida em francês diminuiu acentuadamente. Mas será difícil justificar que 74% das quotas sejam mantidas pelas mesmas dez canções, como era o caso da NRJ. Em 2016, a quota mínima de música em francês acabou reduzida para 35%.

A ingerência governamental em questões de conteúdo tem um fundo potencialmente problemático. Num país onde a liberdade de imprensa e expressão estão plasmadas na lei, é ideologicamente difícil não contestar esta ideia. Se somos livres de dizer e escrever o que pensamos, também devíamos ser totalmente livres para ouvir e passar a música que bem entendemos. Este é dos poucos argumentos legítimos contra a imposição de quotas. No entanto, convém frisar que uma boa parte dos serviços de programação são automatizados,  não havendo real liberdade de escolha de um locutor sobre a música que passa. A lista de reprodução é um exercício essencialmente praticado por máquinas, sujeitas a uma delicada esquadria desenhada pelo gosto de diretores e programadores musicais e tendências de mercado, que dita a frequência com que cada música ou artista passa numa determinada estação.

Ainda que não se possa resumir a justificação desse resultado às quotas, a ERC reconhece que tem havido um “acréscimo significativo” da produção discográfica nacional nos últimos anos. Com efeito, a vasta maioria das estações nacionais (97-98%) não só cumpre, como ultrapassa as quotas impostas, mesmo quando a percentagem exigida subiu. Mas, não havendo dados oficiais sobre quais as músicas mais passadas, se calhar, por esta altura talvez interesse mais debater sobre se o bolo destas presenças obrigatórias é partilhado pelos artistas de forma justa.

É difícil argumentar contra as quotas quando é tão claro que têm tido um efeito positivo nas dinâmicas de produção musical em Portugal, tanto ao nível de quantidade, como de qualidade e diversidade de géneros. Se a receita está a funcionar, para quê deixar de a usar? Na Rádio Comercial, 40% do Todos no Top desta semana são músicas de artistas nacionais; na RFM, o Top25 tem os mesmos resultados – bem acima dos 30% agora pedidos. Mas o sucesso da medida deixa em aberto a grande questão: se deixassem de existir quotas, a música portuguesa teria a força e a popularidade necessárias para aguentar o embalo ou seria devorada pelos êxitos internacionais? Pessoalmente, não me parece que faça sentido arriscar. Pelo menos, não por agora.

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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Felizmente para nós o que não falta em 2023 é música assinada por artistas nacionais. E há muitos anos que é assim.

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