Há algumas semanas, aquando do lançamento do cartaz do Primavera Sound Barcelona de 2025, discuti com um amigo meu sobre a megalomania do festival espanhol. O cartaz, como sempre, é ridículo. Stacked, como se diz na Internet nos dias de hoje. Se pensarem num artista que está a bater, é muito provável que ele esteja no cartaz do festival catalão.
O meu amigo comprou bilhete para ir pela primeira vez a Barcelona. O argumento dele é de que o cartaz é demasiado bom para não ir ao festival e que justificava o preço de 283€ (em momento inicial – o passe do festival custava 350€ sem o desconto Revolut e encontra-se já esgotado). Podemos argumentar que nenhum festival justifica esta price tag (oi Jessie J – que não está no cartaz do Primavera Barcelona) e eu concordaria. Aliás, dei esse exato argumento como justificação para indicar que o Primavera de Barcelona não valeria tanto a pena, até por comparação com o Primavera Sound Porto, cujo passe ainda se encontra disponível pela “módica” quantia de 180€ (162€ com desconto Revolut).
Porém, o meu maior argumento para justificar que a ida a Barcelona não valeria tanto a pena é precisamente a de que o cartaz é gigante. Demasiado gigante.
Um dos grandes trunfos do Primavera de Barcelona, da experiência que vende, é a de um FOMO infinito. Se não fores, não vais ver estes artistas todos, artistas que provavelmente gostas se és um melómano com um gosto variado.
Porém, na compra do bilhete, há letrinhas pequenas associadas a essa experiência. O cartaz é tão stacked que é impossível veres tudo aquilo que queres. Uma amiga minha que foi ao Primavera de Barcelona de 2022 disse-me que viu menos concertos nesse ano do que eu vi no Porto. Em 2023, foi igual (ignoremos o que aconteceu em 2024 no Parque da Cidade por um segundo). Portanto: cartaz gigante, sim, com grande qualidade, mas que se torna impossível de ser verdadeiramente desfrutado porque os palcos são demasiados e longe uns dos outros, e existem demasiadas sobreposições. Parece-me uma experiência frustrante já por si só e ainda há o fator extra de custar quase 300€ – isto sem contar com viagens e estadia em Barcelona. Será que vale tanto assim essa “experiência”?
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No início de novembro, a Pitchfork anunciou que a edição de 2025 do Pitchfork Music Festival, que acontecia há 19 anos em Chicago, não iria ocorrer. Não existem novidades ainda sobre as restantes versões do festival espalhadas por várias cidades, mas acabarão por surgir.
A notícia chegou no rescaldo de um 2024 complicado para a Pitchfork. Começou com múltiplos lay-offs em janeiro e o anúncio de que iria ser absorvida pela GQ por parte da Condé Nast, conglomerado de média que é dono da Pitchfork desde 2015. Depois, uma mudança de corpo editorial, com a entrada de muitos jovens ligados ao blog nova-iorquino No Bells. Como seria um cartaz do Pitchfork Music Festival de uma Pitchfork encabeçada por esta malta? Por agora, não saberemos.
O anúncio de que o Pitchfork Music Festival não iria ocorrer em 2025 surge numa altura curiosa para a indústria da música. Os jornalistas norte-americanos que sigo no Twitter (sim, ainda estou nessa plataforma do diabo e só irei sair de lá por arrasto) disseram, e bem, que o festival era um dos últimos locais físicos onde escribas se podiam encontrar em pessoa para se conhecerem e falarem sobre música. As relações interpessoais nesta indústria não se podem ficar apenas pelo computador, 240 caracteres ou DMs do Instagram. Há cada vez menos press trips, cada vez menos encontros entre jornalistas, fomentando assim uma experiência cada vez mais individualista e competitiva no meio. Conhecer pessoas, por muito complicado que seja, importa. Permite a partilha de gostos e experiência que é importante para a fomentação de um coletivo.
Além disso, o Pitchfork Music Festival cimentou aquele que talvez seja o formato “ideal” para um festival: três palcos. Como Ethan Elis escreveu no The Current, o formato de três palcos do festival funcionava mais como um “menu de degustação”. “Tinhas variedade, mas também eras forçado a descobrir coisas novas”.
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O mais próximo em Portugal que existe do modelo do Pitchfork Music Festival é o modelo atual do Vodafone Paredes de Coura, com os seus dois palcos, sendo que o secundário funciona também como palco de after – ou seja, três palcos, portanto.
Tal como o Pitchfork Music Festival, o Vodafone Paredes de Coura funciona muito como um festival onde se encontram artistas maiores, mas onde também se descobre cenas novas com hype que à partida não se teria ouvido falar antes. A experiência que vende do Couraíso é falsa, mas de todos os festivais portugueses, é aquele que hoje em dia mais expõe o grande público a coisas minimamente interessantes. O Primavera Sound Porto, curiosamente ligado ao Paredes de Coura devido à relação Ritmos/Pic-Nic, conseguia fazer algo semelhante, mas as duas últimas edições afastaram o festival desse ideal. Durante anos, o Primavera Sound Porto foi o melhor festival em Portugal, mas as duas últimas duas edições indicam que talvez já não o seja. Veremos o que 2025 tem para oferecer.
Os restantes festivais em Portugal obedecem à ideia de serem, acima de tudo, centros-comerciais a céu aberto onde música toca de fundo. Há marcas por todo o lado a fazer barulho – e o Primavera Sound Porto e o Paredes de Coura não são exceção a essa regra –, há público que se desloca pelo recinto gigante sem grande rumo, e para onde quer que se olhe, há um palco com uma merda aleatória a acontecer. Palco Comédia? Sim, senhora. É para ver um homem branco a contar piadas más que paguei 80€ por um diário do NOS Alive, sim. (Acho curioso que esse palco esteja muitas vezes cheio durante os dias de festival, portanto se calhar o problema sou eu.) Um palco com eletrónica a bombar às 18h? Siga – para alguns, a melhor hora para a pastilha é qualquer uma. E por cada confirmação Tiktokiana do Alive 2025, um prego no caixão dos festivais. No final? Vamos todos rir-nos de uma indústria que é incapaz de aprender algo.
A existência de dois ou três palcos apenas garante que é possível, enquanto festival, gerir melhor as sobreposições e garantir uma melhor curadoria. Quando se começa a obedecer à lógica capitalista de continuar a crescer, e mesmo que a curadoria seja boa, como é o caso do Primavera Sound Barcelona, perde-se o resto. A experiência que se vende não é a da curadoria ou a da música, mas sim a ideia de que, se não fores, vais perder um evento único. É a individualização da experiência em prol do lucro. Esta é a única experiência que estes festivais multi-género e megalómanos ainda conseguem vender ao grande público. E apesar de existirem fortes indícios de saturação por parte de um público para com estes grandes festivais, parece não existir grande alternativa a eles se festivais como o Pitchfork Music Festival estão em vias de desaparecer.
Por cá, as dificuldades não são muito diferentes para festivais como o Amplifest, o Mucho Flow, o próprio Bons Sons. Festivais onde, acima de tudo, a curadoria importa, e onde o público vai porque o cartaz lhes irá revelar algo de novo. O aumento de custos de produção destes eventos vai levar a que apenas superestruturas, como é caso do Primavera de Barcelona ou cá, do NOS Alive ou do Rock in Rio, se mantenham seguras com a queda inevitável do capitalismo.
Em 2025, é quase certo que irei ao Primavera Sound do Porto para ir ver artistas como Charli XCX, Cap’n Jazz, Magdalena Bay ou Chat Pile. De outra forma, não os conseguirei ver sem ser em setting de festival. Jurei que não iria cair na armadilha outra vez, mas aqui estamos. Como e calo, ignoro e rio com a tentativa péssima da criação de um dia para celebrar a música eletrónica (o Rui Moreira há-de aprovar o isolamento dos pastilhados, com certeza), e rezo para que pelo menos a edição de 2025 não seja o desastre da de 2024.