Cantigas do Maio, Mudam-se Os Tempos, Os Sobreviventes: A trilogia que preconizou Abril

A França teve sempre um peso importante no processo de resistência portuguesa durante o Estado Novo, fosse de forma directa (como refúgio para quem precisasse de dar o salto) ou indirecta (em jeito de inspiração social e política, sindical e reivindicativa). Mas o país ganharia ainda outra camada de simbolismo ao tornar-se na meca acidental duma trilogia que, três anos antes de abril, preconizou a iminente queda do regime.

Em 1971, Zeca Afonso, José Mário Branco, e Sérgio Godinho agiram como uma espécie de supergrupo efémero que, apesar de não ter produzido nenhum lançamento em nome conjunto, deu à luz um grupo de álbuns que ficariam eternamente associados à revolução dos cravos: Cantigas do Maio, Mudam-se os Tempos, e Os Sobreviventes. Gravados de forma praticamente simultânea no Château de Hérouville, uma propriedade do século XVIII nos arredores de Paris transformada em estúdio de gravação pelo músico e arranjador Michel Magne, os três registos representam uma espécie de quintessência suprema da chamada música de intervenção portuguesa.

Capas Abril
Capas de Mudam-se Os Tempos, Mudam-se as Vontades, Cantigas do Maio e Os Sobreviventes

Apesar dos subsequentemente baptizados Strawberry Studios virem a adquirir uma proeminência excepcional no imaginário musical internacional devido à quantidade de músicos que por lá passariam nas décadas seguintes (Elton John, David Bowie, Marc Bolan, Bee Gees, Iggy Pop, Pink Floyd, Fleetwood Mac, ou Nina Hagen são apenas alguns dos nomes mais sonantes), é curioso lembrar que os álbuns de Zeca Afonso, José Mário Branco, e Sérgio Godinho estiveram entre os primeiros desta confecção musical de luxo. Se nos lembrarmos que as instalações estavam a ser usadas com esse propósito (pelo menos de forma oficial) há apenas coisa de meses, a tríade de cantautores foi inadvertidamente estrear o terreno dum lore pop que ainda hoje é mencionado nas inúmeras biografias e relatos duma elite artística universal.

Claro que ser-se estrangeiro numa terra estranha impele sempre a que se estreitem laços com os nossos conterrâneos, portanto não é de espantar que cada um dos músicos tenha participado nos álbuns dos colegas: José Mário Branco, em particular, agiu como espécie de elo de ligação ao musicar duas faixas d’Os Sobreviventes e tocar vários instrumentos em Cantigas do Maio. Sérgio Godinho, por sua vez, retribuiria o favor com quatro letras, sendo que esta simbiose acabaria por fazer com que uma faixa, “O Charlatão”, fosse incluída tanto no alinhamento de Mudam-se Os Tempos como no d’Os Sobreviventes.

A contracorrente de protesto e poder popular gerada pelo poder aurático destes três álbuns quase que os transforma numa entidade energética sobrenatural por direito próprio, seja pela exasperação de “A A E I O,” pelo instigar mais ou menos directo de “Que Força É Essa,” ou pela faixa-título de Mudam-se Os Tempos, adaptada dum poema de Camões numa intemporalidade lusitana que se quer simultaneamente romântica e reivindicativa. Mas seria de Cantigas do Maio que sairia o opus máximo destas sessões, com o álbum a constituir a primeira vez que “Grândola Vila Morena” conheceria edição comercial. Rascunhada desde 1964, a canção tomou a sua forma mítica final ao justapor a lírica incisiva e despojada de Zeca Afonso aos arranjos portentosos de José Mário Branco, ambos nessa altura desconhecendo ainda a importância e simbolismo que o desenrolar da história lhe haveria de ditar.

Francisco Fanhais, Zeca Afonso e José Mário Branco em Paris.
Francisco Fanhais, Zeca Afonso e José Mário Branco em Paris.

Cantigas de Maio e Mudam-se Os Tempos foram lançados no final de 1971, enquanto que Os Sobreviventes só veria a luz do dia no ano seguinte. Confirmando os três músicos como vozes incontornáveis dum crescendo que em breve se tornaria ensurdecedor (tanto José Mário Branco como Sérgio Godinho eram estreantes nos longas-durações), este triângulo mágico concebido além-fronteiras forjaria a pedra angular do género interventivo nacional, resgatando-o dum passado de relativa negligência a nível de contribuição musical efectiva para promover a sua consagração definitiva e irrevogável por direito próprio.

Mas tal como nenhum sonho é apenas um sonho, nenhuma música é apenas música. As ferramentas de transformação social, cultural, e política nunca estarão completas sem a presença do grito de guerra, da palavra de ordem, da canção cantada e quarenta mil vozes que quase enrouquecem num misto de raiva e esperança. Aos cinquenta anos de abril, mais do que nunca, a força é renovada ao lembrarmo-nos de que todo o mundo é feito de mudança. Portanto cabe-nos a nós trocar-lhe as voltas porque a revolução ainda é uma criança.

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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