Desde que me lembro, sempre tive um fascínio pela linha esborratada entre o roto romantizado e a miséria triste causada por más escolhas de vida. Como se a decadência tivesse um charme próprio, uma estética suja que, paradoxalmente, convida ao olhar. Diria que tudo começou quando o meu pai me mostrou Trainspotting e, no meio do nojo e do desconforto, surgiu um encanto inexplicável por esse quadro degradante. Havia algo ali, algo que não devia ser belo, mas que, de alguma forma, era.
Fascinava-me a materialização de ideias artísticas provenientes de algo que, à partida, não deveria fazer sentido, como se a degradação humana pudesse ser transformada em poesia visual, um grito silencioso estampado em imagens e palavras. Talvez fosse a forma como a realidade crua se tornava um quadro vivo, talvez fosse a coragem de expor o que a sociedade prefere esconder. O meu fascínio não estava apenas no que via, mas no que sentia ao ver.
Nesta busca pela arte do degredo surge, entre muitos outros discos, Maxinquaye de Tricky, que faz este mês 30 anos. Antes de se aventurar a solo, Tricky fazia parte dos Massive Attack, pioneiros do trip-hop e arquitetos de um som que definiu uma época. No entanto, dentro do coletivo, as limitações criativas começaram a pesar, e Tricky decidiu seguir o seu próprio caminho. Em 1991, durante esta transição, cruzou-se com Martina Topley-Bird. Martina, com apenas 16 anos, cantava casualmente na rua, num estado de ligeira embriaguez, quando chamou a atenção de Tricky. Este encontro fortuito resultou numa colaboração que seria essencial para o tom e a textura de Maxinquaye.
Com uma aura profundamente sombria, Maxinquaye é uma obra que nos faz sentir uma mistura complexa de emoções. A música transmite uma melancolia quase palpável, amplificada pelos vocais angélicos de Martina Topley-Bird, que contrabalançam a escuridão com uma beleza inquietante. Embora existam batidas que sugerem movimento, o tom sombrio e pesado domina, deixando-nos presos nessa atmosfera.
Este foi o primeiro vislumbre que Tricky nos deu da sua mente conturbada. A voz de Martina tornou-se o canal perfeito para transmitir as suas ideias, criando um contraste que, em vez de parecer mórbido, acerta precisamente no alvo. Tricky também contribui com vocais esparsos, murmúrios e sussurros (proto-ASMR?) que funcionam como toques subtis de sal e pimenta, assegurando que o ouvinte nunca conheça conforto nas suas músicas.
Entre as faixas mais marcantes do álbum, “Hell Is Around the Corner” destaca-se como um dos momentos mais emblemáticos. Para os mais familiarizados com trip-hop, pode evocar imediatamente “Glory Box”, dos Portishead. Ambas partilham a mesma base, um sample retirado de “Ike’s Rap II”, de Isaac Hayes, que, por si só, já é uma cantiga carregada de emoção e profundidade. No entanto, apesar deste ponto de partida comum, o resultado final não poderia ser mais distinto.
É fascinante ouvir as duas faixas lado a lado e perceber como um mesmo fragmento sonoro pode ser moldado de formas tão diferentes. “Glory Box” mergulha num registo etéreo, sensual e envolvente, uma espécie de lamento apaixonado tingido de melancolia. Por outro lado, “Hell Is Around the Corner” é uma descida a um universo mais sombrio, introspectivo e cru. A voz arrastada de Tricky, sussurrada e cheia de peso, adiciona uma camada de inquietação, transformando a faixa numa confissão murmurada, quase paranoica e sombria.
Sombrio é a palavra-chave do disco. Em Maxinquaye não há espaço para beleza convencional. Em “Suffocated Love”, o sexo é abordado de forma distorcida e perturbadora – é uma música que, por mais vezes que a oiça, nunca deixa de me causar um certo desconforto. Em “Ponderosa”, o uso de drogas, tão proeminente no Reino Unido decadente ainda a lidar com as consequências do neoliberalismo de Thatcher, é retratado. Tudo em Maxinquaye parece envolto numa névoa densa de paranoia e decadência, tudo é permeado por uma androginia subentendida. Apesar dos temas explorados, como drogas, alcoolismo e sexualidade, que facilmente poderiam cair em clichês machistas, há uma fluidez constante entre o masculino e o feminino, tornando tudo mais ambíguo, mais intenso e mais humano, mas acima de tudo, mais interessante.
Tenho um carinho especial por “Black Steel”, uma versão dos Public Enemy que acaba por ser a faixa mais punk do disco. Embora Tricky seja um grande aficionado pelo hip-hop, chegando até a colaborar por volta desta altura com os Gravediggaz, projeto do grande RZA, ele não se contenta com apenas reinterpretar a música: em vez disso, desconstrói-a por completo. Arranca-a das suas raízes clássicas do rap e reergue-a numa sonoridade industrial e brutalista, onde a revolta e o confronto continuam intactos, mas agora num formato que desafia qualquer categorização.
Neste disco não há uma única falha, e como todas as faixas são tão distintas torna-se difícil aborrecer-nos mesmo depois de já o termos ouvido tantas vezes. É um ótimo exemplo do que torna o trip-hop tão intrigante: é tudo e, ao mesmo tempo, não é nada. Um género que parece escapar a qualquer definição rígida, movendo-se num espaço onde diferentes influências colidem sem aviso. Se pesquisarmos pelo nome de Tricky na Wikipédia, vamos encontrar a palavra “rapper”, mas de rap este álbum tem muito pouco. No entanto, também não é rock, nem jazz, nem puramente eletrónico. Talvez seja precisamente essa falta de uma identidade fixa que tenha levado o trip-hop a esmorecer com o tempo, não por falta de qualidade, mas porque nunca foi um género propriamente definido. Um acaso feliz que, contra todas as probabilidades, funcionou.
Parte do que torna Maxinquaye tão único é a sua abordagem intuitiva e quase caótica à criação musical. Tricky não tinha formação teórica, não se preocupava com escalas, tons ou tempos compatíveis. Pedia simplesmente ao produtor para samplar músicas com métricas completamente diferentes, guiando-se apenas pelo instinto. Essa falta de regras faz com que o disco soe imprevisível, como se cada faixa estivesse sempre à beira de se desfazer, mas, paradoxalmente, tudo se encaixa de uma forma orgânica.
Além das músicas sampladas, há também fragmentos do seu quotidiano espalhados pelo álbum. O som metálico de pistolas a serem carregadas ou portas a ranger como se escondessem algo sombrio são detalhes que não servem apenas como efeitos, mas que aprofundam a atmosfera densa e opressiva do disco, tornando-o quase palpável, como se o ouvinte estivesse a caminhar por um cenário real, onde cada som conta uma história.
Embora no ano seguinte tenha lançado outro grande disco, Nearly God, nunca mais surgiu um álbum da mente de Tricky que se aproximasse do impacto e da qualidade de Maxinquaye. Talvez porque um disco como este não possa ser replicado. Não é apenas uma coleção de músicas, mas um vislumbre raro de um universo que parecia destinado a existir apenas naquele momento.