Eu tinha uma abordagem indiscriminada quando se tratava de música: se tocava na rádio, eu adorava. Presumi que as pessoas que tocavam música na rádio sabiam exatamente o que estavam a fazer e não tocariam, em qualquer circunstância, música que não fosse perfeita. Todas as semanas eu ouvia a contagem decrescente do Top 40 Americano de Casey Kasem e decorava as músicas que ele tocava. Não tinha favoritos – eu amava todos igualmente e religiosamente, dos Eagles aos ABBA, de Bob Seger a Barry White, a Paul McCartney e Wings. Simplesmente aceitei que todas as músicas tocadas na rádio eram dignas de minha adoração completa e indivisível.
– Moby, em Porcelain – A memoir, Faber & Faber
De 1999 saíram vários hinos do eurodance/trance recentemente reinventados para novos tempos de glória graças a samples e/ou ao TikTok: “Better Off Alone” do projeto neerlandês Alice Deejay, “Blue (Da Ba Dee)” dos italianos Eiffel 65 ou “9 PM (Till I Come)” do alemão ATB são bons exemplos disso. Revestida de múltiplas formas, é inegável que a música de dança estava em alta. Também nesse ano, tivemos “Praise You” de Fatboy Slim, “Red Alert” dos Basement Jaxx, “Sing It Back” de Moloko, “Canned Heat” de Jamiroquai ou “Hey Boy, Hey Girl” de Chemical Brothers, para nomear apenas alguns dos temas que o tempo cimentou como clássicos. Mas a erosão das tribos de gostos musicais é uma das marcas da viragem do milénio.
Olhando apenas para artistas que alcançaram o topo das tabelas de vendas nos EUA e no Reino Unido, observamos vários fenómenos:
- um pequeno boom de música latina com Ricky Martin, Jennifer Lopez e Enrique Iglesias,
- o início da nova era das princesas pop, com as estreias de Britney Spears e Christina Aguilera,
- boy e girlbands proliferando de ambos os lados do Atlântico, tanto em formatos pop (casos de *NSYNC, Boyzone ou Westlife) como R&B (TLC e Destiny’s Child),
- o peso do rock ainda expressivo e o nu metal a ganhar terreno: Faith No More, Foo Fighters, Korn, Limp Bizkit, Nine Inch Nails e Red Hot Chili Peppers todos tiveram álbuns no #1
Perante este cenário de amálgama sonora não é de estranhar o surgimento de híbridos, e Play, o quinto álbum do norte-americano Moby, é provavelmente um dos melhores exemplos disso. Play foi lançado a 17 de maio de 1999, com o selo da Mute Records. Por essa altura, já tinha dois singles cá fora, “Honey” e “Run On”, mas só chegaram a um insignificante #33 na tabela de álbuns britânica, na semana de estreia, e depois disso foi sempre a descer. Essencialmente, ninguém quis saber. Nada particularmente surpreendente, já que o maior sucesso comercial de Moby até então tinha sido Everything Is Wrong (1995), que vendera apenas cerca de 250 mil cópias. Apesar de ter uma boa reputação no circuito da música de dança, o trabalho de Moby teimava em não conquistar o grande público, sendo que a maior parte da crítica nem sequer quis ouvir o disco inicialmente. Face ao desastre comercial, a solução foi começar a licenciar canções de Play para anúncios publicitários, até pelo óbvio retorno financeiro. A estratégia resultou e, em menos de um ano, o álbum foi progressivamente ganhando airplay, chegando à platina em mais de 20 países. É um dos álbuns de música electrónica mais vendidos de sempre: cerca de 12 milhões de cópias.
Assim, o disco teve repercussões óbvias nas estratégias de marketing de artistas cuja música podia ou não ter direito de antena na rádio. Na década seguinte, a inclusão de temas em campanhas de relevo tornou-se um factor decisivo para a carreira de inúmeras bandas – é difícil imaginar de que forma canções como “Bohemian Like You” dos Dandy Warhols, “Are You Gonna Be My Girl” dos Jet ou “Young Folks” de Peter Bjorn and John poderiam ter a mesma exposição se não tivessem entrado em anúncios da Vodafone ou da Optimus (para os mais novos, o nome da NOS antes de ser NOS), obrigando os comuns mortais a levar com aqueles refrões meses a fio. Algo que, de uma maneira ou de outra, perdura até hoje.
No entanto, o maior legado do álbum é a maneira como reconfigura o sampling enquanto instrumento musical e ferramenta de criação de novas narrativas. Play é uma obra-prima do sampling ao nível de 3 Feet High and Rising (1989), dos De La Soul. Uma boa parte das vozes que ouvimos faz parte do cânone de blues e folk americanos compilado por Alan Lomax, um dos etnomusicologistas mais importantes da história americana, responsável por inúmeras gravações de campo hoje arquivadas na Biblioteca do Congresso, num esforço notável de preservação de património imaterial musical. Pesam, naturalmente, várias considerações éticas em relação aos processos de gravação e exploração, reflexos das dinâmicas de uma América cujo tecido social continua enraizado na herança da segregação e do período esclavagista.
Além do trabalho de Lomax, os samples que Moby inclui no disco espraiam-se por coros de gospel, bandas sonoras de filmes, maxi-singles de trance, e nomes tão distintos quanto Tom Jones e Afrika Bambaataa. Tal como a estreia dos De La Soul, Play inaugura caminhos até então desconhecidos nos desígnios da indústria. A mistura constante de géneros dificulta a imposição de rótulos, mas é a amplitude com que Moby demonstra as suas intenções que o torna fundamental. Para todos os efeitos, Play é um álbum de música electrónica. Só que não. É uma reinvenção da tradição musical americana que a incorpora num registo contemporâneo sem a descaracterizar, provando que visitar o passado pode e deve ser feito a pensar no futuro. E, claro, que a inovação parte de influências cruzadas, ao invés de trincheiras.
Hoje, como há 25 anos, é difícil encaixar a maioria das suas canções numa pista de dança “convencional” (à falta de melhor palavra). Entre samples de folk americana e gospel (“Honey”, “Find My Baby”, “Why Does My Heart Feel So Bad”, “Natural Blues”, “Run On”), e uma melancolia persistente (“Rushing”, “7”, “If Things Were Perfect, “Everloving”, “Guitar, Flute & String”, “The Sky Is Broken”, “My Weakness”), convenhamos que o material de Play não é bem o tipo de música que esperamos ouvir numa festa. Mesmo as canções mais mexidas, “South Side” e “Bodyrock”, oscilam entre rock electrónico e hip-hop com big beat, bem longe do habitual house ou techno. Na verdade, o álbum também tem techno, e até trance, mas nenhuma destas foi single e dificilmente agradaria a um público generalista, seja pela velocidade e peso incessantes da batida em “Machete”, seja pela energia de trip esotérica em “Inside”. E depois há “Porcelain”.
Mexida e melancólica ao mesmo tempo, “Porcelain” serve-se de um sample invertido de cordas (retirado banda sonora do filme Exodus (1960), de Otto Preminger) para criar a base de um loop hipnótico, completado com camadas de sintetizadores, uma linha de piano relativamente simples, e um ritmo a puxar ao breakbeat. A unir as várias peças, o contraste entre a voz monocórdica de Moby e a profundidade de Pilar Basso. Na Europa, o vídeo era só um grande plano de um olho verde, a pupila a abrir e a fechar, o reflexo de Moby – cápsula perfeita do exercício contemplativo a que “Porcelain” nos vota de cada vez que invade os nossos ouvidos. Sim, é a minha canção favorita do álbum, uma daquelas que provavelmente nunca me cansarei de ouvir. Não devo ser a única, já que a música foi samplada por dezenas de artistas, incluindo Fountains of Wayne e A$AP Rocky.
Podemos posicionar Play como percursor de Discovery (2001) dos Daft Punk, na maneira como ignoraram todas as convenções daquilo que seria expectável de um álbum de música de dança. Apesar de não estarem relacionados, ambos glorificam solos de guitarras eléctricas enquanto usam o sampling para pescar influências em amplitudes díspares e pouco habituais, sobretudo numa altura em que a tribo ainda ditava o que era ou não permitido em determinado espaço. Mas enquanto os franceses calculavam meticulosamente o seu caminho para o sucesso, Moby lançava um último esforço antes de decidir retirar-se da música. Erradamente confiante de que seria o final da sua carreira, redefiniu o que tinha direito a ser pop e mudou a compartimentalização de géneros na indústria musical.