“‘Eva’ vincula Dino ao éden universal onde os artistas genuínos bebem a seiva da criação”. São estas as palavras com que Abraão Vicente, atual Ministro da Cultura e da Indústrias Criativas e Ministro do Mar de Cabo Verde, finda o “prefácio” presente no folheto da edição física de Eva.Universal. Genuíno. Criação. Três palavras que dessa frase se retiram. Três conceitos que são alicerces da música de Dino d’Santiago. Universal, porque a sua música é alérgica a barreiras. Genuíno, porque na sua voz não mora presunção, senão a de ser ouvido. Criação, porque Dino é profeta e é com a sua obra que roga por um mundo melhor.
Antes do nome Dino D’Santiago ressoar nos círculos mediáticos nacionais (e não só) e uns quantos anos após Claudino Pereira descobrir o canto em Quarteira no coro de uma igreja local, houve toda uma jornada até Santiago se juntar a Dino – propósito, estética e musicalmente falando.
Começou nas margens do hip hop e do R&B, onde os seus dotes vocais ajudavam a melodizar refrões para músicas de rappers. Foi por essas mesmas margens, e já depois de ter figurado (com distinção) no programa televisivo Operação Triunfo e de ter corrido o país como parte da formação ao vivo dos Expensive Soul, que se lança no mundo discográfico enquanto Dino and The Soul Motion, com o trabalho Eu e os Meus, lançado em 2008. O disco, com um vigor soul que tanto tem o olho no hip hop como no funk, conta com participações de nomes como Sam the Kid, Valete, Virgul ou Pac (Pacman, vulgo Da Weaseleano de Carlão). Esta sua sonoridade, também presente no núcleo dos Nu Soul Family (grupo a que pertenceu juntamente com Virgul, B@ssman e DJ Alan Gul), é ainda distante da sonoridade que o fez conquistar prémios – já agora, Prémios Play ou Prémios Dino? – e se tornar num dos fenómenos mais fascinantes que a música portuguesa já teve. Apesar disso, muitas das influências que bebia desses tempos, como é o caso de D’Angelo e as basslines endiabradas de Pino Palladino, seriam fulcrais mais tarde no desenvolvimento do seu (re)começo, da sua nova génese.
Se foi com Mundu Nôbu, lançado em 2018 e onde talhou a sua sonoridade com as eletrónicas multifacetadas de Kalaf, que conquistou o país e o mundo – que se cortem os eufemismos e se discriminem hipérboles, mas talvez esse seja o disco mais importante lançado em Portugal na década de 2010 -, foi em Eva que Dino se tornou d’Santiago. Isto pode parecer um comentário óbvio, tendo em conta que Eva foi mesmo o primeiro disco que assinou enquanto Dino d’Santiago. Porém, a associação do seu diminutivo à ilha cabo-verdiana de onde são oriundos os seus pais não marcou apenas uma nova era de Dino, mas sim uma nova era da lusofonia. Foram os primeiros passos daquilo que se acabaria por afirmar (e confirmar) em Mundu Nôbu. Dino personifica Santiago, personifica Cabo Verde e leva na voz toda a herança que lhe foi dada. Toda uma nação, mas acima de tudo, toda uma cultura. Sonoriza tradição, mas fá-lo mirando progressão – como diz em “Nôs Tradison”, faixa inaugural do disco, “Bu tem ki bai, só ka bu skesi tradison / S’é pa nu labanta nu tem ki bai / (Só ka bu skesi tradison)”. Decide cantar na língua de Cesária Évora – aura e ícone que Dino leva sempre consigo – e descobre que é nas mornas, nas koladeras e nos batukos, onde está o combustível que lhe aquece o âmago. É na pureza dos arranjos, no timbre que carrega choros e alegrias de gerações que lhe antecedem, na plenitude dos acordes que emanam uma fluidez orgânica que parece que faz dos nossos peitos aparelhagem, onde Dino dá o primeiro passo rumo ao mundu nôbu que tanto profetiza. Para existir Mundu Nôbu, teve de existir Eva.
Para termos um mundu nôbu, temos de estar conscientes do que o conceito de Eva é para nós. “Eva é raíz. O porto onde nos ancoramos na partida, mas também a razão de ser de todos nós. Nossas mulheres, nossos sentires”, citando, novamente, o belíssimo “prefácio” de Abraão Vicente. Acrescenta ainda: “Dino d’Santiago questiona pelas ‘Evas’ que nalguma parte do nosso ser nos habita, nos guia e nos mostra o caminho para o reencontro”.
Eva é o “regresso” de Dino aos caminhos que não percorreu, mas que o levaram a tornar-se quem é. Um pensar das suas origens. É um disco nitidamente marcado pelas suas visitas a Cabo Verde – note-se que a sua gravação durou 4 anos -, não só por todo o engenho aqui suado, mas porque quando escutamos Eva, este transporta-nos para a Ilha de Santiago, do Sal, de São Nicolau, de todo o arquipélago. Estamos no coração de Dino, no seu mundo. No mundo de Cesária, no mundo de Ferro Gaita, Tito Paris, Tcheka, Os Tubarões. Acima de tudo, estamos no mundo dos cabo verdianos, dos familiares de Dino, dos relatos que por lá ouviu e no que lá assimilou para a sua nova (e futura) génese. Quem escuta Eva pode não sair da sua bolha e do seu mundo, mas não será o mesmo depois disso – especialmente se se permitir à consciencialização daquilo que o trouxe até onde está de forma a entender (melhor)para saber para onde vai (e vamos) a seguir.
Se o teor conceptual (e transcendental) não for suficiente para encorajar uma visita à génese da discografia de Dino d’Santiago, ou para assumir, com esta sua década de existência, que se trata de um marco na música portuguesa contemporânea (curiosamente, o disco teve mais sucesso fora de portas que dentro), -, então, lembremos. O espírito de rambóia oferecido pela textura acústica da versão da tradicional “Djonsinho Cabral”, que fecha o álbum. A dor de migração sentida na tocante e emotiva “Ka bu Txora”. A orelhuda “Pensa na Oji”, com uma bonita participação do cantor angolano Paulo Flores, tão cantável que até já parece um clássico com décadas. O arranjo crú de “Herança de uma Cantadeira”. A jovial rendição de “Monti Graciosa”, original de Vadú.
Mas falar em destaques de Eva não me parece ser muito sensato. O grande destaque do disco é ser a génese de Dino d’Santiago. Mas se tivesse de escolher só um destaque, teria de ser a simples e imaculada “Eva”, faixa que carrega o nome do disco. É um ótimo exemplo da capacidade de Dino enquanto letrista, compositor, mestre de harmonias, autêntica prova da sua voz cristalina. A faixa culmina com um excerto de uma entrevista a Amália Rodrigues, um piscar de olho intergeracional, um spoiler da forma como o universo da lusofonia é fado, mas não é só fado. Anos mais tarde, em “3,14”, Slow J, com quem Dino dividiria “Esquinas” em BADIU, apontaria no mesmo sentido: “Tuga é ser crioulo, é ser mangope, é nossa a música / Tuga é ser o Dino, é ser Amália, a escolha é múltipla”.
Eva não foi o primeiro disco que ouvi de Dino. Também cheguei a ele pela febre do Mundu Nôbu. Lembro-me de ouvir “Nôs Funaná” numa FNAC, enquanto vasculhava por CDs, e ficar deveras intrigado pelo que estava a ouvir.Lembro-me perfeitamente de estranhar, não sei se pela ignorante (ou inocente) associação que fiz ao kizomba, mas pareceu-me algo, não só novo, mas que parecia ir contra estereótipos do que receberia tal mediatismo. Não soube quem cantava, mas a intriga ficou por lá, especialmente depois de ouvir umas quantas mais vezes o single na Antena 1 – ainda sem saber quem era o cantor. O mesmo sucedeu com “Como Seria”.
Um dia, meti no motor de busca o refrão dessa música e descobri Dino d’Santiago. Associei de imediato o nome, que já tinha apanhado pela cobertura jornalística que o disco recebeu à altura. Decidi então ouvir Mundu Nôbu. Descobri uma pólvora.
Com a música de Dino, e não fosse ele próprio um algarvio orgulhoso – como eu -, viajei até a memórias de infância, algumas acho que nem existiam, mas uma é-me nítida, que foi o lembrar-me das canções que a minha mãe ouvia na cozinha – portuguesa, nascida e criada até à adolescência em Angola. Mas o que mais me espantou foi o impacto emocional que o disco tinha em mim. Apesar dos meus dotes de crioulo serem nulos, o meu coração aquecia. Ainda hoje, “Raboita Sta. Catarina”, uma das minhas músicas favoritas de Dino, me faz chorar. A música fala de uma coisa tão simples como um vulcão. É onde está a beleza da obra de Dino. Na voz de Dino mora uma língua universal. E Eva foi o primeiro passo para Dino atingir esse estatuto.
Dino d’Santiago celebra dez anos de Eva com dois concertos, um em Lisboa, a 24 de novembro, no Tivoli BBVA, e outro no Porto, a 6 de dezembro, na Casa da Música.