No momento em que escrevo este editorial o acesso ao aborto acaba de se tornar um direito constitucional em França. Claro que, como tudo o que possui algum peso estratégico, o timing desta conquista foi sobejamente aproveitado como manobra política; aliás, nem haveria outra forma de explicar a aparente contradição dum presidente que num mês anuncia um conjunto de medidas para encorajar o “rearmamento demográfico do país” e noutro apoia incondicionalmente uma lei que aparenta (e friso o “aparenta,” porque estas coisas são feitas e desfeitas por demagogias) contradizer essa urgência em popular o futuro próximo com francesinhos e francesinhas. Desde que sejam o tipo certo de francesinhos e francesinhas, bem entendido.
Não quero, no entanto, manchar esta vitória com cinismos que, apesar de justificados, só diminuiriam o que ela representa: uma garantia de autonomia corporal cujas ramificações se estendem a todos os outros domínios da vida pública e privada. Foi através dum controlo patriarcal que durante séculos insistiu em tratar o corpo em redor dum útero como mero invólucro descartável (algo comprovado pelo súbito “desaparecimento” das mulheres pós-menopausa do discurso público) que se perpetuou uma opressão social, intelectual, e efectiva, vedando o acesso às esferas criativas e científicas – ou pelo menos, fomentando uma redução da visibilidade no que respeita às contribuições femininas.
A música é um exemplo flagrante deste fenómeno. De paternalismos tóxicos (“até tocas bem para rapariga”) à ostracização desencadeada pelo mais tímido reclamar da auto-determinação performativa (podes ser objecto sexual, mas só se for nos termos estipulados pelo discurso normativo masculino), passando pelos inúmeros me toos cuja ponta do icebergue só agora começamos a vislumbrar, quaisquer conquistas no meio foram tudo menos fáceis para nós. Mas enquanto esbracejávamos, muitas vezes sem sabermos sequer se valeria a pena mantermo-nos à tona, sobrou-nos tempo para imaginarmos uma alternativa melhor. Uma espécie de utopia em que a condição feminina abarca todas as possibilidades criativas e identitárias de forma incondicional, em que o futuro que não está automaticamente determinado pelo abraçar (ou rejeitar) da maternidade, e em que se tem os filhos que se quer e não aqueles que Deus dá, como dizia (escandalosamente) ainda no tempo da outra senhora Albino Aroso, pai do planeamento familiar em Portugal.
“O que é que elas querem mais?”, questionou a advogada Leonor Caldeira no 34º aniversário do jornal Público. No seu discurso, detalhava como as mudanças legais que têm melhorado substancialmente os direitos das mulheres nos últimos 50 anos em Portugal eram, não obstante a luta permanente, provavelmente a parte mais fácil da jornada. A grande transformação que precisamos é cultural; apesar das alterações legislativas ajudarem à mudança de mentalidades, não chegam. Sem respaldo, este caminho demora muito mais.
Quase um ano depois do início da Playback, é com muito orgulho que observo que mais de metade das capas que fizemos foram dedicadas a artistas mulheres: Rita Onofre, Iolanda, Inês Apenas, Milhanas, Isaura, Ana Lua Caiano, Dama Bete, HADESSA, Mimi Froes, Inês Monstro, Malva, Carolina Miragaia e, hoje, Dia Internacional da Mulher, um ensaio sobre as vozes femininas da música pimba da década de 1990. É que as mulheres não são só o presente e o futuro da música nacional, são também um passado ignorado por quem se ocupa de escrever as narrativas de cada estilo musical. Ainda há cinco anos, a investigadora Soraia Simões interrogava onde estavam as mulheres num concerto que, supostamente, celebrava toda a História do Hip-Hop Tuga, mas cuja lista de 40 artistas elencados para subir ao palco tinha apenas uma mulher, Capicua. Este apagamento das mulheres na história não é exclusivo da música, claro, mas um movimento cíclico que não estamos mais dispostas a aceitar. E por isso, continuamos a escrever – porque a história é, sobretudo, escrita – para que as narrativas das mulheres da música nacional não se percam nos labirintos de uma sociedade erguida sobre fundações patriarcais.
Mas hoje celebramos: a vitória das nossas irmãs francesas, esperando que um dia a possamos ter para nós também, e todas as vitórias da nossa música – das cantoras e instrumentistas, das jornalistas musicais, das promotoras e assessoras de imprensa, das técnicas de estúdio e designers de capas, de todas nós que amamos música tanto, tanto, que continuamos aqui. A cantar, a escrever e a lutar.