Editorial #1

No caos da vida moderna, cimentou-se a ideia do campo como um espaço silencioso, mas basta um dia fora da cidade para rasurarmos essa conclusão. Por entre os pingos da chuva, o burburinho da floresta ao vento ou os passarinhos que cantam lá fora, a vida desviada da pressão urbana é tudo menos silenciosa. Longe do murmúrio constante da cidade, os sons da natureza talham os nossos dias desde os primórdios: tranquilidade ou perigo, cada som traz a sua própria mensagem, descodificada pelos nossos cérebros como estratégia inata de sobrevivência. Mas este novelo de amplitudes e frequências precede-nos em muito, já que natureza define os próprios ritmos, melodias e harmonias. A música ocupa esse lugar singular no percurso da humanidade: já existia quando aparecemos, permanecendo uma parte fundamental do que somos e de como chegámos aqui.Da flauta neandertal à invenção da escrita, há um salto de mais de 55 mil anos; e, conquanto a velocidade inesgotável da evolução tecnológica, a escrita resiste como uma das formas primordiais de salvaguarda e transmissão de informação – talvez apenas ameaçada pela oralidade, mas a facilidade do registo torna-a menos efémera e, por isso, mantém-se como suporte da sociedade contemporânea. A música sempre existiu, mas a escrita permitiu fixá-la, tornando-a menos fugaz, de poemas trovadorescos a partituras, às impressões que uma peça causa em nós.

Então, escrevemos.

Escrevemos com a urgência dos apaixonados.

Escrevemos, porque amamos e existimos; escrevemos com a emergência de um amor inesgotável, porque a música arranja sempre novos jeitos de nos surpreender, de nos atirar ao chão, e de nos salvar. Porque queremos deixar o registo de um tempo de diversidade e riqueza musicais, recolhendo os estilhaços deste quotidiano de cultura hiperfragmentada. Porque, apesar da explosão de géneros, de palcos e refrões, os comunicados de imprensa replicados em jeito telegráfico por redações delapidadas substituíram lentamente a reflexão sistemática sobre o que andamos a ouvir.

Era suposto este texto servir como uma declaração de interesses do que aqui se vai passar, mas eu tendo a divagar. Para já, fica apenas a promessa de que tentaremos esquivar-nos da fatalidade das exigências deste agora que resume tudo a um ciclo de lançamentos, habitando espaços para lá disso. Escutando e pensando a música que nos rodeia.

Escrevemos porque estamos vivos. Onde há vida, há música. E a devoção do que cava em nós perdura.

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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