A trilha sonora da minha viagem até São Paulo

Poderia escrever uma breve e introdutória descrição sobre a lista de músicas que descobri durante a minha viagem a São Paulo, mas preferi focar-me no ato de recomendar. Não “aconselhar”, porque isso pode soar condescendente, nem “dar dicas”, porque não estou apenas a oferecer respostas para problemas – embora, por vezes, a música tenha essa capacidade. Estou a falar de recomendar. Recomendar um livro, um filme, uma música, tem a mesma dedicação que oferecer uma prenda. É um gesto carinhoso que podemos fazer uns pelos outros. Não é gratificante quando alguém leva as nossas recomendações a sério? Quando há uma troca de impressões ou de recomendações?

Apesar de todo este pensamento parecer um grande clichê, o que quis mostrar nesta lista é que cada uma destas canções tem associada uma sensação, uma memória, um sentimento. Quis demonstrar ainda que, embora a música brasileira já tenha um enorme respeito e adoração fora do seu país, existe tão boa música que está a florir pelas diferentes zonas do continente.

A ordem das canções é irrelevante e não há preferências. E da mesma forma que, hoje, estas músicas me causam borboletas no estômago, arrepios ou intensificam os meus cinco sentidos, gostaria que, para quem ler, elas criassem novos e diferentes significados. E, claro, recomendem, recomendem e recomendem…

“Saídas E Bandeiras” de Milton Nascimento 

São Paulo alimentou o meu espírito de colecionador de discos de vinil graças à enorme feira na Galeria da metrópole, ou a concentração porta a porta de lojas de discos que faz da Galeria Nova Barão um lugar especial. A minha primeira recomendação não será uma música, mas sim um disco, que acabei por comprar por 50 reais (equivalente a 7 euros) na feira de vinil: Milton (1976) de Milton Nascimento. Tendo já como ótima referência o Clube da Esquina (1972), confiei na recomendação da Sophia e levamos para casa. 

Coloquei a agulha, deixei o disco girar, encostei-me no sofá e dei uma leitura nos créditos do disco. Para minha surpresa, o disco foi produzido com a colaboração de Herbie Hancock ao piano. Em Milton, parece que se respira um ar completamente puro, cheio de vida e frescura. Impossível sentir-se impotente depois de ouvir a primeira faixa, “Raca”. “Saídas E Bandeiras” tornou-se na minha faixa preferida à primeira escuta, com o seu instrumento quase mítico e a sua ancestralidade, onde a letra se constrói ao longo da canção.

“Fora da Ordem” de Caetano Veloso

“Fora da Ordem” é o pico de um grande e profundo iceberg chamado Circuladô, o disco de 1991 que marca de ponto assente a maturidade das letras, composições e experimentalismo de Caetano Veloso. Não me parece descabido que seja um dos favoritos de Sophia, e que acabe por passar a ser também o meu. 

Escolhi a faixa “Fora da Ordem” pelas linhas de baixo e bateria viciantes, que contrastam com as letras reflexivas e cruas que manifestam a revolta de um país abandonado e ignorado pelo resto do mundo (“E o cano da pistola que as crianças mordem/ Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito mais bonita/ E muito mais intensa do que no cartão postal). No entanto, escolhi também a primeira canção do disco para explicar que é impossível não ouvirmos a próxima e a próxima que se seguem. Aliás, na faixa seguinte, Caetano Veloso revela outras formas de construção e divisão da métrica das letras, inspiradas pelo movimento artístico concretista, recitando um dos poemas do autor Haroldo de Campos – “Circuladô de fulô”.

“Fullgás” de Marina Lima

Esta recomendação surgiu numa espécie de pingue pongue de músicas portuguesas e brasileiras entre mim, a Sophia e a Francesca (melhor amiga e produtora da Sophia). A certa altura, decidi jogar um trunfo: “Mexe-te Mais um Pouco” da Ágata. Divertidas com a canção, retribuíram com algo que lhes parecia semelhante: “Fullgás” de Marina Lima, que dá nome ao seu álbum de 1984. 

Esta é uma canção com uma força incalculável movida pela fórmula clássica do disco dos anos 80, capaz de pôr qualquer pessoa na pista de dança. A sua estrutura é uma subida de êxtase e emoção que termina num clímax feito pela frase arrebatadora: “Você me abre os seus braços e a gente faz um país”.

“Eu Menti Pra Você” de Karina Buhr

Karina Buhr foi-me apresentada numa das várias viagens de carro que fiz com a Sophia pela cidade de São Paulo. Foi um percurso curto, mas ouvimos quase toda a sua discografia, e a vontade de assistir a um concerto de Karina Buhr ficava ainda maior. 

“Eu Menti Pra Você”, canção que dá o nome ao próprio disco, tem uma musicalidade muito meiga e suave. Porém, se prestarmos atenção à letra, é toda uma enorme controvérsia satírica, o que a torna numa canção ainda mais divertida. Acredito que este tema sirva como amostra do trabalho de Karina Buhr: emancipada e satírica. É difícil rotular ou colocar a discografia de Karina Buhr em apenas um género. Por isso, encosto-me para trás e ouço os álbuns de fio a pavio saboreando uma sonoridade atípica e diversa.

“Raio de Sol” de Jadsa

Para quem teve a oportunidade de assistir ao concerto da artista Jadsa no Square, como o nosso camarada Eduardo, espero que a sua música ao vivo seja tão memorável como os seus discos. 

Foi-me apresentada a “Raio de Sol”, canção que conta com as colaborações de Ana Frango Elétrico e Kiko Dinucci e que faz parte do disco Olho de Vidro (2021). Tem uma tonalidade vanguardista, desconstruída, mas acompanhada por um groove criado pelo refrão repetitivo e a métrica hipnotizante que Jadsa incorpora à sua letra. Como é mencionado na reportagem do Eduardo, a artista irá lançar em breve outro álbum, e eu não poderia estar mais entusiasmada para o ouvir. Até lá, fico-me pelos seus trabalhos anteriores.

“Maria Da Vila Matilde”, adaptação de Elza Soares

Lembro-me especialmente de quando a Sophia me mostrou a adaptação de Elza Soares de “Maria Da Vila Matilde”. Tínhamos acabado de comer o nosso clássico café da manhã: café filtrado e pão francês na chapa. Sabiam que o pão francês não é oriundo de França? Paradoxal. A Sophia explicava-me que existia um bairro em São Paulo, chamado Vila Matilde, que por acaso era uma zona onde concentravam ótimos restaurantes e pastelarias. A meio do raciocínio fez-se o clique de ligação. 

“Maria Da Vila Matilde” é uma energética e adaptação feita por Elza Soares do tema original de Douglas Germano. A faixa é vista por muitos como um manifesto contra a violência doméstica. “Cê vai se arrepender de levantar a mão para mim”, canta Soares com os dentes cerrados. Como todas as canções acima recomendadas, escutem o resto do álbum A Mulher Do Fim Do Mundo (2015), para conhecerem a fera que é a Elza Soares. Tinha 85 anos quando o lançou!

“Rastilho” de Kiko Dinucci

Vamos desacelerar e descomplicar um pouco com Kiko Dinucci. Apesar da minha primeira abordagem à sua música ser uma versão muito mais derretida do álbum Rastilho (2020), isso não fez com que a minha curiosidade ficasse restrita ao concerto que assisti do mesmo durante a minha estadia. O seu minimalismo e criatividade exploratória da guitarra ao longo do disco são as razões que me levaram a escutar o álbum até ao fim, do qual, por coincidência, foi a última faixa a que mais me fascinou. 

“Rastilho” é um ótimo remate para o disco, apresentado-nos dois finais: um catártico reproduzido pela guitarra de Kiko e um coro saudoso e célebre que se encontra presente em peso no disco. É uma canção orgânica e tocante, e que de forma satisfatória faz um ciclo perfeito com o início de Rastilho.

“O Pato Vai ao Brics” de Negro Leo

Sem dúvida que Negro Leo é um artista contemporâneo que não podemos ignorar. A sua composição e criatividade têm uma identidade própria e há tanto para conhecer e aprender com ele. Será pop? Será eletrónica? Ou “putaria contemporânea”, como dita a sua biografia no Spotify? 

Podia recomendar o seu mais recente e irreverente disco RELA (2024), mas trago-vos algo mais antigo, talvez mais frito e excêntrico. O “Pato Vai ao Brics”, do álbum Action Lekking (2017), é uma canção que junta a música tradicional brasileira com o delirante, o heterodoxo. Estranhamente, nesta grande confusão, achamos o agradável e o dançável. É um tema cheio de revolta e repulsas que é automaticamente passada até nós.

“OHAYO SARAVÁ” e “NOVA ERA” de Sophia Chablau e Felipe Vaqueiro

Encerro a minha lista de sugestões com o duplo single que oficializa a amizade e a química entre Sophia Chablau e Felipe Vaqueiro (vocalista dos Tangolo Mangos, que já agora recomendo imenso darem uma espreitadela). Para aqueles que estavam habituados ao rock alternativo e cru de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, “OHAYO SARAVÁ” e “NOVA ERA” são um mote para um outro universo exploratório da artista. São duas faixas que revitalizam pela enorme luz que carregam, e que dão um empurrão para a mudança pela mensagem que trazem. Depois deste duplo single, é certo que vamos ouvir muito mais, até talvez ao vivo, sendo que este lado A + B nasce também graças à parceria entre as editoras selo RISCO (Brasil) e Cuca Monga (Portugal), casa dos Capitão Fausto.

Escuta a playlist abaixo com estas canções.

Matilde Inês é uma pessoa que se emociona com os pequenos pormenores. É mais provável ouvimo-la a cantar as back vocals ou solos de guitarra, do que a letra principal. Recém licenciada em Ciências da Comunicação e que, atualmente, trabalha como radialista e jornalista na Rádio Voz de Alenquer. De vez em quando, escreve aqui e ali sobre música.
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Porque as músicas com emoções associadas sabem tão melhor.

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