sinestesias.

Assim que o Tiago pegou no disco, algo de extraordinário aconteceu. Costumava ser um ritual bastante simples: ia à prateleira buscá-lo, admirava-lhe a capa por uns segundos, retirava-o da bolsa de cartão e do plástico interior, colocava-o no prato, e por fim baixava a agulha. Mas assim que a safira deu o primeiro sinal de vida nos grooves como um monitor cardíaco que recebe o impulso dum coração que se julgava esgotado, uma sensação estranha tomou conta do Tiago. As forças falharam-lhe. As pernas amoleceram como manteiga. Caiu ao chão e perdeu os sentidos.

Quando acordou, tinha o seu cão Xavier a puxar-lhe por uma manga. O tapete estava enrolado debaixo dum braço, e doía-lhe a anca no sítio onde tinha embatido contra a estante. Tentou não fazer movimentos bruscos enquanto recuperava a consciência de onde estava e do que se tinha passado. Sabe-se lá, até podia ter partido alguma coisa. Não tinha a certeza de quanto tempo tinha passado, mas como conhecia aquele disco de trás para a frente fez uma estimativa pela faixa em que ia. Assim que se certificou de que não iria precisar de cuidados de maior, outro pânico apoderou-se dele: o que teria sucedido? Nunca tinha desmaiado na vida, nem daquela vez em que decidiu que era boa ideia ir para um teste de directa e sem nada no estômago. Agora que pensava nisso, nem tonturas tinha sentido. Apagou, simplesmente.

Toda e qualquer explicação racional parecia passar-lhe ao lado. De alguma forma, Tiago sentia que a causa era mais externa do que interna, portanto tentou recriar os passos dessa manhã até ao momento em que caiu. Não tinha feito nada de excepcional – até a escuta dum disco era norma recorrente a essa hora. Depois lembrou-se que, apesar de ser um dos seus preferidos, não o ouvia há algum tempo. Sentado no sofá enquanto fazia a chamada de todos os membros do corpo, tentou recuar até à última vez em que tinha tocado esse álbum duma ponta à outra—mas claro que essas memórias são praticamente impossíveis para quem tem uma discoteca daquele tamanho.

De repente, uma cor. Um azul meio pálido, depois mais escuro. Não tinha a certeza do que era, mas sabia ter algo a ver com o disco. Estava prestes a explorar mais a fundo quando a agulha recuou, assinalando o final do lado A. Hesitou ao levantar-se para ir virar o disco, não lhe fosse dar a fraqueza outra vez. Embarcou na tarefa com os olhos postos no sofá como se estivesse pronto a correr para lá mal sentisse que algo não estava certo. Mas desta vez nada aconteceu. Respirou de alívio e voltou a sentar-se, pensando no tal azul. Pouco depois, teve a sensação de que algo viscoso lhe escorria por entre os dedos. Olhou para as mãos, mas estas não eram as mãos que tinha conhecido toda a vida. Estavam translúcidas, e conseguia ver o sangue pulsar em correntes fluorescentes nas veias. A cabeça ribombava, mas era mais medo do que quebra. Estaria a enlouquecer? Não tomava alucinógenos há muito tempo, e de qualquer das formas isto era muito diferente de todas as vezes em que o tinha feito.

Ao fundo, meio abafado pelo bater ensurdecedor do coração nos ouvidos, o disco continuava a tocar. Tinha mudado de faixa e agora era uma das preferidas do Tiago. Os primeiros acordes desdobraram-se numa explosão, como se algo o rasgasse por dentro e lhe arrancasse as entranhas para as atirar contra a parede. Gritou enquanto o corpo era sacudido por espasmos. A um canto, o Xavier abanava a cauda nervosamente, mas não parecia muito incomodado com esta entidade sobrenatural que atacava o dono. O episódio durou toda a faixa, e ao terminar o Tiago estava coberto de suor. Ainda ponderou levantar-se para ir parar o disco e acabar com esta insanidade duma vez por todas, só que isso não teria feito qualquer sentido. Além de que se afigurava ser uma tarefa absolutamente impossível, porque agora o corpo pesava-lhe tanto como se estivesse colado ao sofá. Só lhe restava esperar que o resto da escuta fosse menos violenta; fechou os olhos, encostou-se para trás, e aguardou até ouvir o braço do gira-discos recuar.

Nesse momento, o Tiago apercebeu-se de que tudo tinha mudado. Ou melhor, tudo estava igual a antes, mas só aparentemente: as cortinas eram as mesmas, mas também eram novas e desconhecidas; o tapete ainda era o da avó, mas o Tiago nunca o tinha visto antes; a mesinha de apoio tinha sido comprada pelos pais numa feira quando ele era miúdo, mas fazia agora a primeira aparição no seu mundo. Só o Xavier lhe era familiar. Levantou-se devagarinho, dando passos lentos até chegar ao prato. Pegou na capa para arrumar o disco e por momentos hesitou, temendo novo apagão geral. Mas quando ergueu a tampa do gira-discos, nada aconteceu. Lá fora um carro buzinava. Ouvia-se o barulho das crianças do segundo andar que brincavam no patamar. A dona Lurdes conversava animadamente com a vizinha, que tinha encontrado ao sair do talho. Ainda semi-catatónico, Tiago devolveu o disco à prateleira. Voltou a tentar lembrar-se da última vez que o tinha escutado, mas além do tal azul pouco havia como referência. Encolheu os ombros e ponderou deixar uma marca qualquer no disco, uma data que o fizesse lembrar-se desta experiência bizarra, ou até um post-it de aviso para a próxima vez que pegasse nele. Depois sorriu e decidiu que não. O que quer que tivesse acontecido, Tiago queria voltar a senti-lo assim, de forma completamente inesperada e assustadora, como se fosse a primeira vez.

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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