novata e curiosa.

Primeiro ele faz-te sentir confortável. Ou melhor, um misto de conforto e autoridade, que é para ficares logo a saber quem é que manda no estaminé. Mas tu também nem sequer tens pretensões de entrar a abrir, afinal é a tua estreia neste estúdio e o teu agente recomendou que não fizesses muitas ondas. “Olá, tu deves ser a Gabi, não é?” Estende-te a mão assim ao de leve para não contares com muitas intimidades, ele já cá anda há muito tempo e tu és só mais uma miúda com uma voz bonita e meia-dúzia de canções decentes. Tudo isto sem sequer se levantar da cadeira que roda em frente à mesa, mexendo nuns botões aqui e ali para ficares impressionada. És novata e curiosa; claro que queres cair nas boas graças dele. É uma questão de brio e de reputação, imagina se não corre bem ou passas por mal humorada, sabia-se logo e ninguém te voltava a pegar.

Ele puxa dum banco para que te sentes ao lado dele, e começa a explicar o processo como se tivesses sete anos em vez de dezassete. Ouves em silêncio e sorris, avisaram-te que se estivesses de cara fechada ias parecer arrogante. És novata e curiosa. Ele manda uma piada que tem tudo menos piada. Não percebeste, mas sabes que é suposto rires. Ao levantar-se para te ir buscar uns phones, ele põe-te a mão na perna como se fosse uma alavanca. Um gesto automático, deduzes. Nem vale a pena pensares muito nisso, ou achas que um produtor como ele iria perder tempo a fazer-se a uma miúda como tu? Ficas só estática até ele te dizer para te levantares e o seguires.

Entram na sala de gravação e ele prepara o micro enquanto te sorri de lado. Está só a tentar pôr-te à vontade, descansa. Ele sabe destas ansiedades. Ao explicar-te a distância a que deves estar do equipamento coloca-se demasiado perto de ti. Tão perto que lhe consegues cheirar o hálito. Não é desagradável, mas incomoda-te porque não é suposto cheirar-te a nada. Nem é suposto ele estar assim tão perto. Assumes que é por a sala ser pequena, mal dá espaço para uma pessoa se mexer, quanto mais duas. Aliás, é a única explicação para ele já se ter roçado duas vezes no teu rabo enquanto procurava um outro tripé. Ele fala sem parar, explicando-te tudo vinte vezes como se fosse doutor em física quântica e tu mal soubesses quanto é quatro vezes dois. Mas também não queres soar indelicada e dizer que já percebeste como funciona. Nem te atreves a mencionar que lá por esta ser a primeira vez no estúdio dele, não é de todo a tua primeira vez num estúdio. Reprimes um suspiro de enfado e rezas para que se despache. Finalmente ele entrega-te os phones, só que em vez de tos dar faz um gesto para colocá-los em torno do teu pescoço. Dás um salto por instinto, mas ele limita-se a rir e insiste que não é preciso estares nervosa. As mãos dele ficam demasiado tempo pousadas na tua nuca, mas não queres dizer nada. És novata e curiosa. Se calhar é mesmo assim e ele faz isto a todas. Se calhar aos homens também.

Respiras de alívio quando ele sai e regressa à régie. Ao menos agora só tens de o ouvir, nem olhar precisas. De qualquer das formas, cantas melhor de olhos fechados. Mais algumas instruções, ele lança o playback. Diz-te para ires sem stress, sem expectativas, é só uma guia. Embora tu saibas perfeitamente que irás dar conta do recado ao primeiro take. Começas. O desconforto que ele te fez sentir desfaz-se à primeira nota. Quando dás por ti, a música acabou. Claro que foi óptimo. Ficas à espera de mais instruções. Ele demora um pouco a reagir, e quando o faz limita-se a um comentário condescendente sobre não ter sido terrível. Convida-te a tentar novamente. Sendo tu profissional como és, repetes a dose. Dás mais um take perfeito. Desta vez ele não tem como negar e diz-te para ires ouvir como ficou.

Penduras os phones no micro e sais. Ele está furiosamente de volta duns botões como se a magia estivesse toda do lado dele, e tu fosses apenas material em bruto. Na verdade, gostarias de o avisar que está a puxar demasiado os médios e que assim a tua voz vai peakar; mas também não queres dar azo a discussões ou parecer que te estás a armar em sabichona. És só novata e curiosa. Ele diz para te sentares, mas quando te diriges para o banquinho que te destinou à chegada, acrescenta que não vais ouvir em condições daí porque não estás a meio das colunas. Arrastas o banco um pouco mais para o centro, mas ele ainda não está satisfeito. “Porque é que não vens para aqui?” Chegas-te um pouco mais para o lado dele, encostando-te ligeiramente à cadeira. Com um gesto entre o firme e o bruto, ele puxa-te para o colo dele. Nem sabes muito bem como reagir. Não queres fazer ondas, tens noção do caro que esta hora está a custar. Ficas o mais rígida possível enquanto ele carrega no play, dobrando-se para a frente e roçando (acidentalmente, sem dúvida) na tua mama direita. Os três minutos e meio da música parecem três horas. E nem sequer a ouviste como deve ser: na tua cabeça havia um buzz de estática a criar uma barreira com a realidade.

Levantas-te de supetão assim que a música termina; ele fica surpreendido. Quer mais um take, diz que a entrada para o segundo refrão ficou forçada. Concordas (sem realmente concordares), mas perguntas se ele não pode colar a do primeiro? É que a tua mãe precisava mesmo que chegasses mais cedo para a ajudares com o jantar de aniversário do teu irmão. Ele parece desapontado mas diz que fará o que for preciso, como se a tua recusa o fosse fazer passar mil horas numa masmorra bafienta até extrair alquimicamente uma pepita de ouro dum monte de merda. Normalmente sentir-te-ias culpada. No fundo, até sentes um bocadinho. Mas o teu instinto de sobrevivência faz-te vestir rapidamente o casaco, agradecer, e caminhar para a porta—que ele faz absoluta questão de ir abrir. Soltas um “tchau!” a que ele responde “então nem sequer mereço dois beijinhos?”. Por dentro até tremes, mas está quase a terminar. Tentas que seja uma coisa de fugida, mas ele demora-se e claro que no final roça os lábios nos teus. Desta vez nem consegues olhar para cima. Sais de olhos no chão, desces as escadas do prédio a trote. Sabes que ele ficou a espiar-te porque ainda não ouviste a porta bater.

Sais à rua enquanto o sol se põe, o teu coração já nem consegue bombear o sangue em condições. Escalda-te a cara como se estivesses a arder em febre, a tua saliva enjoa-te porque se recusa a descer, e tropeças nos teus próprios pés como se estivessem dormentes. Ao virares a esquina, vomitas. És novata e curiosa.

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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