lado b.

Quando começou a escavar, depressa sentiu que não iria sair dali tão cedo. Nem tinha intenções de se lançar dedos e unhas à terra assim, de forma completamente selvagem e desprevenida, mas algo dentro dele lhe dizia que não havia maneira de ignorar e simplesmente seguir o seu caminho como se nada fosse.

Passados uns segundos, deu por si a rir baixinho. Ria da situação caricata em que se encontrava, como se estivesse a olhar de fora e conseguisse ver a cena à filme em que se tinha colocado. No meio duma floresta meio abandonada à saída da autoestrada, carro parado de porta aberta sem qualquer preocupação (afinal, conseguiria ouvir a tempo se alguém se aproximasse com intenções obscuras), de joelhos a meio duma clareira, jeans sujos de terra a condizer com as botas que já não iam limpas, agarrando furiosamente bocados de pedregulhos, folhas secas, ervas daninhas, e outros elementos que tais e atirando-os para o lado sem qualquer pudor.

Ao longe, o sol punha-se naquela doçura típica de final de verão, e uma brisa leve começava a correr indicando que se não se despachasse o mais certo seria ter de ir buscar uma camisola ao carro. Mas também com o suor que lhe escorria do rosto, pingando uma ou outra vez no buraco que insistia em fabricar, não é que antecipasse ter propriamente frio. Alternava pensamentos inúteis destes com pedaços de músicas que lhe passavam em loop pelo cérebro, como se fossem um disco saltando sempre na mesma parte da canção, sem conseguir avançar. De certa forma, não deixava de espelhar o que se passava cá fora, até porque se aparecesse alguém e lhe perguntasse se ainda faltava muito, não saberia responder. Aliás, nem saberia responder se lhe perguntassem o que estava a fazer sequer.

Enquanto as mãos esgravatavam mais e mais fundo como se fossem entidades com vontade própria separadas do resto do corpo, tentou reconstituir os últimos passos que o tinham levado até ali. Estava a conduzir calmamente numa A1 praticamente deserta quando sentiu que precisava de fazer um desvio. Como se tinha tratado dum chamado tão imediato e inquestionável, nem pensou muito no porquê e assumiu só ser aquele xixi que achou não ter necessidade de fazer antes de se meter à estrada. À primeira saída que avistou, deu pisca e foi por ali dentro sem grandes ponderações. Mas ao entrar numa espécie de mata selvagem, algo puxou o carro como um íman. Seguiu sempre, quase sem pisar no acelerador, até que finalmente parou numa clareira. Já estava com a mão no fecho éclair pronto para a mudança de águas quando o corpo lhe disse que não era isso. Saiu do carro e, como que puxado pelo mesmo íman que o tinha atraído até ali, deu uns passos até perto duma árvore. Aí, caiu de joelhos no chão e começou a escavar com quantas forças tinha. Isso tinha sido há pelo menos meia hora—sabia-o porque entretanto tinha escurecido significativamente, não porque tivesse parado para olhar para o relógio. 

Já estava quase a anoitecer e em breve não veria nada, porque as luzes da autoestrada estavam longe demais e não havia nada em redor. Panicou ligeiramente. Será que conseguiria parar para ir acender os faróis? Ou talvez este circo acabasse de vez, embora o desesperasse ainda mais não saber o que procurava. Tudo isto lhe passava pela cabeça quando sentiu a mão direita embater contra algo duro. Não duro como pedra; este objecto soava mais a coisa feita por humanos. Por momentos, o frenesim parou. Entre o medo e a curiosidade, afastou o resto da terra que estava por cima e conseguiu ver o que era: uma cassete Sony, daquelas para gravar em casa, com a caixa de plástico meio riscada mas ainda intacta. O cartão interior estava virado para dentro, portanto não conseguiu perceber logo se tinha algo escrito. Sacou-a para fora e abriu-a para examinar melhor. Apesar de não saber se tinha algo gravado ou não, reparou que a fita estava a meio—portanto o mais provável era ter. Ficou um pouco desiludido por o cartão não conter qualquer tipo de informação, algo que indicasse o que poderia conter, ou a quem pertenceria. Fora todo o aparato absurdo que rodeava a descoberta, tratava-se de uma cassete bastante comum; nem sequer era muito antiga, aqueles modelos ainda se vendiam no início dos anos 2000.

Levantou-se e meteu a cassete ao bolso, olhando em volta para tentar perceber se estaria mais alguém por perto. Mas fora a noite que entretanto tinha caído, nada tinha mudado; só aquele ataque febril é que já parecia tão distante como se nunca tivesse acontecido. Entrou no carro e ligou os faróis, fazendo cuidadosamente a manobra para regressar à autoestrada. De vez em quando lançava um olhar rápido para a cassete, agora no banco do passageiro, como se tivesse medo que fosse desaparecer de repente. Lamentou-se dos carros já não trazerem aquele auto-rádio clássico com deck de cassetes, mas ao mesmo tempo não sabia se teria sido sensato pôr aquilo a tocar enquanto conduzia.

Voltou a entrar na autoestrada e seguiu caminho, remoendo na história de vez em quando com a certeza de que todo o mistério seria desvendado assim que ouvisse o que continha a cassete. Ainda bem que estava a caminho de casa dos pais, eles ainda tinham uma daquelas aparelhagens antigas com rádio, gira-discos, e dois decks de cassetes que aguentavam guerras e terramotos e continuavam a funcionar.

Impaciente, acelerou mais um pouco, até porque com a novela toda ia bastante atrasado; ainda deu uma olhadela ao telefone, também no banco do passageiro, mas ninguém tinha tentado ligar. Ao erguer os olhos reparou que tinha deixado o vidro da porta do lado aberto até meio—não admirava que começasse a sentir frio. Carregou no botão ao lado da manete de velocidades para o fechar, mas tinha encravado outra vez. Suspirou audivelmente de enfado, esticando-se para alcançar o botão na própria porta e assim fechar a janela. Apesar de ir alternando a atenção entre o volante e o vidro, não reparou no camião que vinha a toda a velocidade na faixa do meio, e que tentava fazer uma ultrapassagem. Nem sequer reparou quando este o abalroou, buzinando misericordiosamente como se isso fosse adiantar alguma coisa. O carro fez um pião, capotou, e saiu da estrada. Antes de perder os sentidos, voltou a olhar para o banco, agora no ar e ao contrário como tudo tinha ficado em segundos. Através dos estilhaços da janela ao lado, viu algo brilhar na penumbra por entre as ervas da berma. Ao menos a cassete tinha-se salvado.

tripeira de nascimento, parisiense por adopção. já escarafunchou muita arte, pisou muito palco, escreveu para muito sítio, e deitou muita carta. doutora em quebrar corações (e não só) e eterna electroclasher.
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