Deveria ter uns 13 ou 14 anos – oitavo ou nono ano, portanto -, quando, numa sala de aula, entre o sussurro de clandestinidade à professora e a matéria leccionada, descobri o nome de Slow J numa troca de bitaites musicais com um amigo. Ambos andávamos “com o hip hop na veia”, como se costuma dizer, e a partilhar um com o outro os type beats que andávamos a tentar sujar de rimas – sendo ateu, graças a Deus que nada disso viu a luz do dia. Certo dia, o meu camarada enviou-me um vídeo no Youtube de uma faixa intitulada “Tinta da Raiz”. Guardei para ouvir quando chegasse a casa depois das aulas. O que aconteceu depois, bem, se estás a ler isto, é provável que tenha gostado. Muito.
Desde a linha de baixo infectante ao groove simples e orgânico, da sua poesia luminosa ao flow de titânio e métrica zigzag, “Tinta da Raiz” apoderou-se de mim com muita facilidade. A partir desse dia, nasceu um fascínio que persiste até aos dias de hoje. Na altura, o que havia para explorar de Slow J era ainda limitado – se a memória não me falha, existia o EP The Free Food Tape e o single “Comida” -, mas mais que suficiente para obcecar com o seu engenho. Para nós (eu e o meu amigo), Slow J começou a ser um ídolo. Musicava-nos convívios, caminhos para casa, experiências – muitas delas da introdutória boémia. Era uma espécie de guia para a rebeldia de ser adolescente.
Mais rotação, menos rotação (ignoremos o possível jump cut aqui), eis que surge ao mundo The Art of Slowing Down, disco de estreia de João Batista Coelho. Era 2017 e o hip hop tuga estava prestes a virar por causa de Slow J. Ao mirar a não-catalogação, Slow mudou o game. O melhor género para descrever esse disco é o homónimo. À altura, mudou tudo com faixas como “Pagar as Contas”, com Papillon e GSON, hino do proletariado, “Arte”, com o seu riff pujante, ou a paredesiana “Sonhei Para Dentro” (porque dentro de J já existia, em 2017, algum fado a ser cantado). Hoje, sabemos ser um disco geracional de um artista geracional (curioso que Slow J tenha mão nos dois discos portugueses que marcaram a minha adolescência – The Art of Slowing Down e Deepak Looper, de Papillon).
Em 2017, vi Slow J ao vivo pela primeira vez no já extinto (ou migrado, nem sei bem) Et Cetera., em Faro. No pico da minha era de fanboy, tive a sorte de o conhecer no final desse gig. Trocamos umas palavras, uma foto e cantámos a “The Prayer” do Kid Cudi. Poucos meses depois, ainda em 2017, este dava, em plena Receção ao Caloiro do Algarve (imagine-se), o melhor concerto da minha adolescência (e dos que guardo com maior carinho) – há qualquer coisa de muito especial quando um artista desce propositadamente do palco para agradecer a devoção de um fã. Seis anos mais tarde, quando vi Slow J no Festival F em setembro, apercebi-me da grandiosidade que seria o seu próximo disco. O nome desse disco é Afro Fado.
Portanto, se supostamente isto é uma crítica a Afro Fado, porque é que ainda não falei dele? Primeiro: sou tolo. Segundo, achei que na minha mariposa narcisista conseguia realçar o fenómeno que é Slow J (nota, esta afirmação advém de uma deliberação consideravelmente isenta do fascínio adolescente que já aqui morou). Terceiro, se isto fosse o meu último texto, não me importaria.
Afro Fado é a utopização de tudo o que Slow J nos rogou até agora. Uma “Mun’Dança” onde a diferença é valência e a mistura a cura. Não existiria Afro Fado sem The Free Food Tape, The Art Of Slowing Down e You Are Forgiven, predecessor deste novo editado em 2019 (é um belo exercício terapêutico, que antecipa essas mesmas nuances presentes em Afro Fado, mas situa-se num feeling musical bastante diferente da restante obra de Slow J).
João valoriza o passado, mas nunca de forma saudosista – mesmo quando coloca Eusébio e Amália Rodrigues na capa. A herança é uma arma de arremesso voraz para um mundo melhor, que no respeito pelo que o trouxe aqui, impele à progressão e ao abraçar do que o rodeia. Na lindíssima “Tata”, onde mais uma vez na sua obra centraliza as suas preces na figura do seu pai, Slow J apresenta uma constante vontade de satisfazer o que o passado lhe traz e a pretensão do que ele quer trazer ao futuro. E se há dúvidas que é na progressão que se rege, então: “Se o Dino falou em mudar o hino, falou”.
O que impulsiona Afro Fado é a forma autoconsciente com que Slow J aborda o seu sucesso e o poder que tem em mãos. Note-se a diferença da sua postura entre discos. Colaborar na íntegra com os gémeos GOIAS, dar mais entrevistas, tornar o álbum num evento. Slow J, espelhando a mensagem principal de Afro Fado, quer utilizar a sua plataforma para ajudar a tentar criar um mundo onde, como canta em “Origami”: “Quero ensinar ao meu filho que antigamente / A cor da pele dele era como um dístico / Isto já numa terra depois do racismo”. Se em You Are Forgiven Slow J propôs-se (literalmente) a combater os seus demónios e despir-se de pretensões e batalhar (novamente) com os seus “porquês”, Afro Fado é um statement. Oiça-se a grandiosidade de “Ultimamente”; a feature de Teresa Salgueiro (Madredeus) na mui-lisboeta “Nascidos & Criados”; o ego-trip humilde de “Fogo” – com uma das inflexões estéticas mais vistosas de Slow J; o melodrama profético de “Terra”; tentar assumir-se como uma voz de uma nova e utópica superestrutura nova e utópica com “Pirâmide”. Além disso, não era um disco de Slow se os singles não batessem. “Sem Ti” tem um dos melhores refrões do artista e “WHERE U @” – vou dizê-lo – é *o* veneno do ano.
Num mundo perverso como o que vivemos, onde há quem ache que se anda a morrer pouco, onde todos somos produto e onde cada vez se é mais desprovido do que se é e se quer ser, profetizações de um mundo melhor, cientes da falha e de fragilidade a que todos somos sujeitos, são sempre bem vindas. Precisamos de mais discos como Afro Fado – porque precisamos urgentemente de novos mundos.