A América triste de MJ Lenderman

Tenho passado as últimas semanas a ler On Photography, a coleção de ensaios de Susan Sontag sobre fotografia. Num desses ensaios, intitulado Melancholy Objects, Sontag descreve os pensamentos de Jack Kerouac sobre a fotografia americana: “Para Kerouac, a atmosfera principal da fotografia americana é a tristeza”, enuncia a autora e crítica norte-americana.

Sempre que escuto Manning Fireworks, o quarto e mais recente longa-duração de MJ Lenderman, penso naquilo que Sontag escreveu. No universo de Lenderman, cada canção pinta os contornos de uma fotografia onde a melancolia reina. São canções românticas à americana sobre homens tristes, pinturas rupestres sobre a solidão, devaneios existenciais sobre culpa cristã e falta de fé. Acima de tudo, são canções sobre aquilo que é a “verdadeira” América. Um país triste, recheado de gente que é tão solitária quanto mágica, desprovido de qualquer propósito sem ser aquilo que mais corrompe: o dinheiro. No meio das guitarradas melancólicas perdidas entre Neil Young e os seus Crazy Horse e os Pavement ou Sparklehorse (não falta devoção ao rock alternativo norte-americano dos anos 90 na música de Lenderman), surge a (des)construção do mito americano rumo àquilo que Sontag declama ser o end game da fotografia americana: representar a derradeira visão da perda. Era esse sentimento que Kerouac tentava captar com a sua afirmação e é essa comiseração que Lenderman canta nas suas canções.

Entre o pessoal e o impessoal, o real e o imaginado, em Manning Fireworks Lenderman ergue uma obra onde as perdas (provavelmente as suas) se transformam nas perdas dos que o rodeiam e, finalmente, nas nossas. Os homens patéticos, medíocres, e perdidos no mundo sobre os quais canta são os seus adereços favoritos para comunicar o que sente sobre o que ficou para trás. A máxima que se aplica é a seguinte: se Lenderman perdeu algo, é provável que surja uma grande canção. E Manning Fireworks está cheio delas.

Como guitarrista dos Wednesday, banda da qual faz parte a sua agora ex-namorada Karly Hartzman (cuja voz escutamos de fundo em “She’s Leaving You”), Lenderman afinou os seus dotes enquanto virtuoso do uso de feedback para conferir textura extra ao indie rock adornado de country dos autores do excelente Rat Saw God (2023). Os críticos chamam àquilo que os Wednesday fazem countrygaze (country + shoegaze), e Lenderman é a cara principal desse “som”. Não foi à toa que Waxahatchee, outra mestra do alt-country, recrutou Lenderman para a ajudar com Tigers Blood (2024), o seu mais recente álbum (“Right Back To It”, um dueto entre ambos, é uma das grandes cantigas de 2024).

Conheci pela primeira vez com o trabalho de Lenderman com os Wednesday há cerca de três anos quando apanhei “The Burned Down Dairy Queen” num shuffle de rádio no Spotify (lembram-se quando a rádio do Spotify não era uma merda? Bons tempos). As melodias de voz entre Lenderman e Katy encantaram-me, mas foi o jogo entre as guitarras lideradas por Lenderman e o lap steel tocado por Xandy Chelmis que me fizeram ouvir com mais atenção. Quando a distorção surge em “The Burned Down Dairy Queen”, já sentimos que na abordagem de Lenderman ao seu instrumento existe algo de diferente o suficiente para ser elevado a uma espécie de novo herói da música de guitarra. Em cada acorde que Lenderman toca, um sentimento. Em cada riff, uma melancolia. Em cada pedaço de feedback, uma história é gritada.

A solo, Lenderman não se fica apenas pelos seus dotes de guitarrista; pelo contrário, sabe como transpô-los para o formato de canção para beneficiar a sua ideia . Esta foi uma skill que foi melhorando desde os tempos das canções carregadas de distorção do seu longa-duração homónimo de estreia, lançado em 2019. No muito bom Boat Songs (2022), álbum que o transportou para um maior público e aclamação crítica, Lenderman chegou a um equilíbrio entre ser capaz de comunicar o que queria de forma incisiva e não perder nenhum do seu lado explosivo (algo que se nota bem no seu disco ao vivo de 2023). Porém, em Manning Fireworks Lenderman eleva-se a um novo patamar nesse aspeto: neste álbum, revela-se verdadeiramente como um fantástico autor de canções.

Nota-se que o tempo de estúdio facilitado por maiores recursos financeiros (Manning Fireworks foi editado pela Anti-) ajudou Lenderman a refinar a arte de escrever canções e a explorar outros sons e instrumentos (o violino é um destaque de Manning Fireworks). A complexidade sonora do seu universo aumentou, o misto de sensações gerados pelas suas cantigas também. Gosto bastante de Boat Songs, mas há qualquer coisa de especial quando Lenderman deixa para trás o feedback para chegar a um minimalismo outrora não explorado. Isto tanto se aplica quando Lenderman deixa a atmosfera da canção brilhar, como em “Manning Fireworks”, malha que abre o disco, ou em “Rip Torn”, a canção mais próxima de country de todo o álbum. Ou quando Lenderman tem ouvido para saber quando fazer a malha explodir (a devastadora “She’s Leaving You” é um bom exemplo disso). Quando o solo delicioso surge, já todos os riffs anteriores nos prepararam para o que aí vem. “It falls part / We all got work to do”, canta no refrão Lenderman, como se a persona desta canção, que pode muito bem ser ele mesmo, aceita o fim como a inevitabilidade de tudo. É sinal de um certo cinismo presente em Manning Fireworks que não estava tão presente nos trabalhos anteriores de Lenderman.

Todavia, o cinismo apresentado por Lenderman em Manning Fireworks não se fica apenas pela dúvida. O seu cinismo é uma camada dentro de tantos outros sedimentos existenciais que utiliza como artefacto para explorar o mundo que o rodeia. A sua escrita tem algo de David Berman (não tanto quanto alguns dizem) e bastante de Jason Molina e Will Oldham (tanto quanto o próprio Lenderman afirma). Há humor a dar com um pau em Manning Fireworks, e que é utilizado para enquadrar este cinismo na realidade complexa que é isto de sentir e viver. É um estratagema semelhante às referências a desporto que Lenderman incorporou em Boat Songs. Numa entrevista à Pitchfork, Lenderman confessou que estas serviam apenas como forma de “contar uma história sobre algo maior”; em Manning Fireworks, o humor serve esse mesmo propósito: é um adereço para contar estas histórias.

“Rudolph” é um bom exemplo da forma como Lenderman utiliza o humor em Manning Fireworks. A faixa retrata uma situação caricata onde Faísca McQueen (esse mesmo, o de Carros), podre de bêbado, atropela uma rena. Parvo? Talvez. Mas entre belíssimas e estridentes guitarras, Lenderman exclama de seguida: “How many roads must a man / Walk down ‘til he learns”. No meio do surreal, surge este take cínico sobre solidão. E Lenderman canta o verso como se tratasse de um homem ainda com alguma esperança de encontrar resposta às suas próprias perguntas no futuro. Eis que surge a questão: seria possível que a tristeza existisse sem uma felicidade para a contrapor?

Talvez seja esse o grande dilema que Lenderman explora em Manning Fireworks e em toda a sua obra. Numa entrevista à Interview Magazine, Lenderman descreveu-se como um tipo “bastante cínico na maioria das vezes”, mas como alguém “otimista” nas micro-situações da vida. E se Lenderman pinta estes retratos tristes da realidade que observa e contempla desde MJ Lenderman, como é possível encontrar alguma viva alma nestes cenários que lhe faça sequer ponderar algum certo nível de otimismo? Se eu vivesse na América hoje, otimismo seria a última coisa que sentiria. Mas, felizmente, não vivo na América.

As personagens das canções de Manning Fireworks não sabem que caminho traçar para chegar a algum otimismo. Aliás, talvez nem estejam cientes que buscam esse caminho apesar de ser necessário encontrá-lo para continuarem a viver. Estão a olhar para outro lado e a pensar demais na morte da bezerra para isso. Focam-se demasiado nas notificações do seu Apple Watch (“Wristwatch”), caem de joelhos de tal down bad que estão (“On My Knees”), estão de coração partido (“You Don’t Know The Shape I’m In”) e uivam à lua depois de ficarem até demasiado tarde a jogar Guitar Hero (“Bark at the Moon”). E tal como elas, nós também. Estamos tão focados em merdas irrelevantes que esquecemos como é bom viver. Por isso, tentamos encontrar uma réstia de esperança em coisas como bebida, água como substituto da bebida, amigos, música com amigos, música como amiga, a nossa melhor amiga. E na atmosfera triste de Manning Fireworks, encontramos canções que se tornam amigas, cada vez mais amigas com cada nova audição. No final, sorrimos sempre mais um bocadinho do que na vez anterior. Se a vida é como um barco – e MJ Lenderman é muito fã de barcos – em constante perigo de naufrágio, então é bom que tenhamos canções como as de MJ Lenderman para nos amparar quando o desastre finalmente vier acontecer. Felizmente, parece que as temos.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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Fenomenais canções tristes à procura de otimismo.

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